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Solução para os distratos?
Como o PL 1.220/15, em tramitação no Senado, impacta incorporadoras e investidores
Solução para os distratos?

Ilustração: Rodrigo Auada

O mercado imobiliário tem presenciado um agravamento dos distratos desde 2014, devido à crise econômica do País. Segundo Emílio Fugazza, diretor financeiro e de relações com investidores da Eztec, a taxa de compradores que cancelam contratos de aquisição de imóvel chegou a 50% nos últimos três anos. Nesse cenário, o projeto de lei (PL) 1.220/15 surge como um alento. Ele disciplina os distratos imobiliários, padroniza os percentuais e prazos de devolução e tira da Justiça a prerrogativa de decidir os valores a serem ressarcidos aos compradores — em alguns casos, eles chegavam a 90% do montante já pago pelo imóvel, corrigido pela inflação. Não à toa o projeto, que aguarda votação do Senado, foi bastante apoiado pelo setor de construção.

Para discutir os impactos desse PL para incorporadoras, investidores e instituições financeiras, a CAPITAL ABERTO, em parceria com o NFA Advogados, realizou o Grupo de Discussão “Distratos estabelecidos”, em setembro. O encontro contou com a participação de Daniela Veltri, legal manager real state no Itaú-Unibanco; Emilio Fugazza, diretor financeiro e de relações com investidores da Eztec; Luiz França, presidente da Abrainc; Mário Okazuka Junior, gerente da área de produtos estruturados da Votorantim Asset e Ricardo Negrão, sócio do NFA Advogados. Confira a seguir alguns dos melhores momentos da discussão.

CAPITAL ABERTO: Qual a jurisprudência em torno dos distratos?

Ricardo Negrão: No Brasil, ela se desenvolve a partir de 1990, com o Código de Defesa do Consumidor. No Código Civil, que trata da compra e venda de imóveis como um todo, também há regras que estabelecem tanto o direito de arrependimento quanto à renúncia a esses direitos. A cláusula de revogabilidade e retratabilidade dos contratos acabou se tornando um padrão e passou a ser usada de maneira corriqueira no setor, até mesmo para negócios que não envolvem a compra e venda de imóveis na planta. O Código trata da possibilidade do consumidor receber de volta aquilo que pagou, dizendo que não pode haver a perda total desse valor. A partir dessa disposição legal, a jurisprudência entendeu que havendo relação de consumo, o adquirente pode pedir o distrato sem justa causa.

CAPITAL ABERTO: Qual a necessidade de uma lei que regule os distratos?

Ricardo Negrão: As relações de compra e venda no setor imobiliário não são tão homogêneas quanto em outros setores. O comprador de um imóvel pode ter perfis diferentes, situações econômicas diferentes, e que deveriam gerar decisões diferentes. O tribunal de São Paulo sumulou há algum tempo que é possível pedir a rescisão do contrato e rever as quantias pagas. Essa súmula — assim como a do STJ — não estabelece o percentual de devolução, apenas diz que há o direito a restituição. A questão evoluiu de forma que, hoje, é certo o direito do consumidor de pedir a rescisão. Nessa situação, o imóvel retorna ao estoque da incorporadora, algo que levou ao crescimento desse entendimento jurisprudencial, que pode revendê-lo. Por muito tempo, as incorporadoras não tiveram uma postura muito firme em relação a essa onda jurisprudencial, porque o mercado estava indo bem. A discussão no caso a caso ficava limitada a quanto poderia ser retido. Outro questionamento era se o Código de Defesa do Consumidor deveria ser aplicado apenas ao cliente que realizou a compra como adquirente final – ou seja, com o intuito de usufruir do imóvel — ou também ao investidor.

CAPITAL ABERTO: E como o PL 1.220/15 resolve essas questões? Quais são seus preceitos?

Ricardo Negrão: O projeto de lei nasceu há anos e acabou sendo encampado pela indústria da construção. O projeto põe um ponto final nos embates entre o Código do Consumidor e o Código Civil e consagra o direito à rescisão. Ele fixa os percentuais de devolução e os prazos para que isso ocorra, mas também deixa muitas janelas abertas para discussão. Segundo o projeto, caso haja culpa da incorporadora, a restituição deve ser integral. Caso a decisão pelo distrato seja unilateral, sem justa causa, o comprador deve pagar uma multa não superior a 25%. Uma posição polêmica do projeto é que, havendo o patrimônio de afetação, essa multa pode ser elevada para 50%.

CAPITAL ABERTO: Um projeto de lei como esse, que está parado no Senado, é capaz de recuperar a segurança jurídica e a confiança do setor?

Emílio Fugazza: Vou me ater à resposta pelo lado do incorporador. Tomamos a decisão de incorporar no momento em que compramos o terreno. Contudo, a verdade é que, ao fazer o lançamento de um projeto, temos o período de teste definido pela Cláusula Suspensiva — em geral, ela prevê a continuidade de determinado projeto após seis meses ou com 50% do empreendimento vendido. Em geral, qualquer projeto do setor imobiliário é composto de equity — que vem no momento da aquisição do terreno —, de dinheiro do consumidor, que paga em torno de 20% a 30% para ter as chaves, e de financiamento à produção, concedido pelos bancos. Em troca, as instituições financeiras exigem dois tipos de garantia: a hipoteca do terreno e os recebíveis daquele empreendimento. O conceito de recebíveis é uma garantia, em geral, de 20% — ou seja, do que for liberado para a produção, é necessário, ao final, ter ao menos 20% a mais de recebíveis. Então, à medida em que as vendas ocorrem, cria-se uma garantia maior e os bancos liberam mais financiamento à produção. Ocorre que o percentual de distratos, que era de aproximadamente 15% do total vendido ao longo do processo de produção, saltou para 50% nos últimos três anos. Quando se enfrenta essas dissoluções, o nível de garantia no financiamento vai desaparecendo, pois o banco tem o direito de parar a sua liberação. Isso coloca em risco todo mundo em uma incorporação.

CAPITAL ABERTO: Como ocorre a devolução do dinheiro aos consumidores distratantes? O projeto de lei promove algum avanço nesse sentido?

Emílio Fugazza: O dinheiro vem da parcela dos demais compradores, que permaneceram na incorporação, ou do financiamento à produção. Do ponto de vista de fechamento das contas e de segurança do negócio, principalmente para quem fica e para quem financia, entra-se em uma situação de deterioração dessa relação. O projeto de lei começa a endereçar algo importante, que é o fato de a devolução do dinheiro ocorrer após a entrega do empreendimento, após o habite-se. Isso não resolve o problema por completo, mas ajuda, ainda mais diante das dificuldades enfrentadas pelas incorporadoras. A última vez que o setor deu lucro líquido positivo foi em 2014. Olhando para essa situação, é fácil perceber que para conseguirmos começar a desembolsar e distribuir dividendos, tendo recursos excedentes para pagar inclusive um consumidor que distrata, a incorporadora precisa estar com pelo menos 80% do empreendimento vendido. Então, quando discutimos se o projeto de lei endereça as questões relativas ao problema que vivemos, a resposta é não, pois é só o princípio daquilo que precisa ocorrer.

Luiz França: Quando me falam que o distrato é algo bom nas condições atuais, costumo fazer a seguinte comparação: uma pessoa quer fazer uma peça de roupa e vai à costureira ou ao alfaiate. Ela escolhe o modelo, o tecido e paga um determinado valor como entrada para o profissional. Dias depois, essa mesma pessoa encontra uma costureira que faz a mesma roupa por um preço menor. Se você fosse essa pessoa, voltaria na primeira costureira e pediria a devolução do seu dinheiro? Sempre me respondem que isso é um absurdo. Mas é isso que acontece com o incorporador. Quando o incorporador entra com o equity, com o recurso do cliente, que é pago mensalmente, ele transforma aquilo na evolução da obra. Como ele devolve esse dinheiro? Não tem como. O setor de incorporação é o único segmento da economia brasileira na qual o consumidor tem direito à devolução. E se a lei do distrato não sair, isso trará consequências sérias inclusive para o comprador, porque ele que pagará o preço. Com a insegurança jurídica, o volume de incorporações vai diminuir. Caso o Brasil volte a uma situação de economia estável daqui a alguns anos, a tendência é que as pessoas voltem a adquirir imóveis de médio e alto padrão e não haverá o estoque necessário para atender a essa demanda, fazendo os preços subirem. Ninguém olha a questão do distrato do ponto de vista do comprador. Se não resolvermos essa insegurança jurídica, o mercado de média e alta renda terá problemas. Nos últimos quatro anos, 1,2 milhão de empregados foram demitidos em função da crise e do boom dos distratos, que turbinou a crise no segmento de incorporação.


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CAPITAL ABERTO: As incorporadoras devem sentir os efeitos colaterais dos distratos ainda por muitos anos?

Emílio Fugazza: Infelizmente, sim. Só não tivemos uma enorme crise no setor imobiliário porque os agentes financeiros olharam para isso — talvez por causa de tudo o que passaram no caso Encol em 1996 — e entenderam que, na prática, tirar todas as garantias do incorporador e levá-lo à falência cria um problema sistêmico no setor. Quando o assunto são os distratos, também fala-se muito sobre a hipossuficiência do cliente, mas ela é verdade em partes. A venda de apartamentos não é uma venda pura e simples, não existe um único tipo de comprador. Uma relação de aquisição que existe é a do Minha Casa, Minha Vida. Outra é a de uma incorporação com dez apartamentos no Jardim Europa ou no Itaim. O incorporador tomou a decisão de fazer o empreendimento porque existiam cinco ou seis compradores interessados. Se no meio do caminho três desses compradores distratarem, o incorporador quebra. A hipossuficiência está no incorporador naquele momento, e não mais no consumidor. Então, quem sai prejudicado nessa história? Cabe observar ainda que boa parte dos distratos foi feita por pessoas das classes média e alta, que perderam renda por causa da crise econômica. Foram elas que alimentaram a geração de riqueza do boom imobiliário.

CAPITAL ABERTO: O projeto de lei dá mais segurança para a instituição financeira no processo de financiamento às incorporadoras?

Daniela Veltri: O PL dita regras para alguns pontos que estavam soltos, como os percentuais de devolução, mas o ponto da garantia é o principal para nós. Os bancos precisam ter cuidado com as garantias — que são os recebíveis e a própria hipoteca do empreendimento — no financiamento imobiliário à produção. O projeto de lei trouxe um reforço para o patrimônio de afetação, que é bem visto pelas instituições financeiras e também é uma segurança a mais no financiamento. Uma preocupação dos bancos é que mesmo depois da entrega da unidade, quando já houve o financiamento e o contrato de compra e venda já terminou, alguns tribunais ainda cogitam a possibilidade de rescisão desse contrato. Para nós, isso deveria estar melhor expresso, explicando que uma vez quitada a compra e venda, essa relação está terminada de fato e essa discussão não entra para o contrato de financiamento imobiliário. A manutenção da garantia do financiamento é a nossa maior preocupação.

CAPITAL ABERTO: Existe o consenso de que existem dois tipos de comprador: o consumidor e o investidor. A lei consegue fazer essa separação?

Daniela Veltri: Na nossa observação, não. Mas, de fato, uma coisa é a pessoa que vai efetivamente comprar o imóvel para morar, outra é que vai investir naquele lugar. Não deveria haver o mesmo percentual de devolução para os dois casos. O projeto de lei é omisso nisso.

Ricardo Negrão: Essa distinção poderia estar no contrato. Seria a forma mais objetiva e específica de fazê-la, pois é quando nasce a relação jurídica. A relação fica mais clara se, desde sua origem, estão estabelecidas as intenções de cada uma das partes. A questão é que, no lançamento de um prédio com 500, 600 apartamentos, fica difícil fazer isso no momento da venda. Por isso, os contratos são padronizados. Além disso, muitas vezes se observa, na jurisprudência, que o contrato é quase que menosprezado pela decisão judicial. Então, duvido um pouco dessa solução, apesar de vê-la como o melhor caminho.

CAPITAL ABERTO: Qual o papel das incorporadoras nessa distinção?

Luiz França: Na verdade, essa distinção é impossível de ser feita. Na classe média, trabalha-se muito com upgrade. Vamos supor que a pessoa more em um apartamento onde esteja confortável e aparece uma oportunidade, na qual se sai de R$ 5 mil para R$ 10 mil por m² no momento em que o apartamento é entregue. Essa pessoa era uma compradora, mas, pelo ganho que terá, pode se transformar em alguém que está fazendo um bom negócio — quase um investidor. Então, é bastante difícil caracterizar um investidor. A autodeclaração é quase impossível, na minha opinião, pois nenhum investidor vai se declarar como tal. O ideal seria ter essa separação, mas é muito difícil de ela acontecer.

CAPITAL ABERTO: Como uma gestora de ativos encara essa questão dos distratos no momento de tomar uma decisão sobre investimento?

Mário Okazuka: Do ponto de vista do investidor, os distratos afetam demais o aspecto do fluxo de caixa esperado. Uma das fórmulas do financiamento à produção é a securitização dos recebíveis, e entra-se nesse contexto sem saber quanto de recebíveis se terá de verdade. O que vai acontecer se houver um distrato? Quando se tem dívidas, não se quer receber ativos, pois eles terão que ser vendidos depois. E esses ativos serão parte do patrimônio da securitizadora ou não? Outro ponto importante são os dividendos oriundos de um determinado projeto imobiliário. Muitas incorporadoras emitiram debêntures que tinham como garantia justamente a alienação fiduciária das cotas da SPE, e o fluxo de pagamento para essa dívida era oriundo dos dividendos que receberiam. A partir do momento em que não há a venda do imóvel, não há o dividendo; sem dividendo, não existe uma outra forma de financiamento às incorporadoras. Isso também acaba inibindo o crescimento de fundos imobiliários de desenvolvimento, porque, com tantas inseguranças, o investidor médio não topa colocar recursos.


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