Pelo menos desde o fim da Segunda Guerra Mundial, sempre que as estruturas globais foram abaladas por uma crise generalizada todos os olhos se voltaram para a inequívoca liderança dos Estados Unidos — seja em busca de uma diretriz geopolítica, seja em função da robustez econômica do maior PIB do planeta. Como uma espécie de reserva moral de estabilidade e segurança, os americanos serviram, nas últimas décadas, de anteparo para as dificuldades. Mas engolfado por uma polarização interna que já beira a insanidade — como comprovam as inacreditáveis imagens de invasão do Capitólio, o Congresso americano, por apoiadores fanáticos de Donald Trump no dia 6 de janeiro —, o país começa o ano no topo da lista de riscos para 2021.
É o que diz um relatório da consultoria Eurasia Group, que elaborou um top 10 de ameaças globais esperadas para 2021. Integram esse indesejável rol desde a gestão da pandemia agora que vacinas eficazes já estão disponíveis até questões relativas às emissões de carbono, passando por conflitos cibernéticos e Europa pós-Merkel.
Desigualdades na América Latina
Está na lista uma provável deterioração das condições sociais e econômicas na América Latina, uma região do mundo particularmente atingida e com populações inadequadamente atendidas durante a pandemia. Ao contrário dos ricos europeus, os latino-americanos ainda vão demorar a ver vacinações em massa e efeitos do esperado arrefecimento da crise da covid-19.
Com governos depauperados, incapazes de sustentar auxílios emergenciais por mais tempo, envolvidos com eleições presidenciais e legislativas, não será uma surpresa se em 2021 houver insurgências populares — ou, no mínimo, incômodos declarados. É fato que, nessa região do mundo, a pandemia jogou luz sobre as imensas e insuportáveis desigualdades. O estudo observa que ao longo deste ano haverá eleições legislativas na Argentina e no México e pleitos presidenciais no Equador, no Peru e no Chile.
Trump sai, mas ainda tumultua
Interessante notar que o risco número um do ano já havia conquistado o posto mesmo antes do cenário de selvageria do dia 6 em Washington. Os analistas da consultoria observam que o fato de a votação de Trump ter sido elevada (11 milhões de votos a mais do que em 2016) dá a ele capital suficiente para continuar insuflando extremismos e, mesmo fora das estruturas formais de poder, complicando a vida do presidente eleito Joe Biden. Esse cenário de conflagração evidencia a possibilidade de a moderação do democrata não ser o ingrediente necessário para recolocar a América no prumo. Haverá, ainda, negociações difíceis no Congresso, num jogo político que contrapõe democratas e os próprios republicanos entre si (alas anti e pró-Trump).
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Vale lembrar que Biden entra na Casa Branca tendo que enfrentar um número ainda estarrecedor de mortes de americanos por covid-19 (em 8 de janeiro a cifra atingiu 4 mil vítimas), uma economia ávida por recuperação e os escombros da passagem de Trump — que fazem um link com a quarta ameaça global mencionada no estudo do Eurasia Group, a tensão entre Estados Unidos e China. Apesar de a chegada de Biden representar um certo respiro na contenda, é provável que as duas maiores potências globais continuem na briga para “curar” (por meio de vacinas) e “limpar” (via agenda de sustentabilidade) o mundo, endereçando os riscos número dois (pandemia) e três (emissões de carbono).
Lacuna de liderança
A questão central dessa ameaça primordial é que os países começam esta segunda década do século sem poder contar com a liderança dos Estados Unidos, com a qual já estavam acostumados. Um mundo em plena transformação socioeconômica impulsionada por uma pandemia sem precedentes terá que se acomodar, portanto, sem uma liderança forte. Em tempos modernos, é um cenário inédito. Segundo a análise, podem faltar um modelo político consolidado, padrões de comércio e uma “arquitetura internacional a ser seguida”. Parece muito com um barco à deriva.
Também existem dúvidas quanto à capacidade (ou a mera possibilidade) de Biden atuar como um estadista global com tantos problemas internos para administrar. Um dos pontos citados no estudo é que tipo de relação o democrata teria com presidentes flagrantemente alinhados a Trump, como Jair Bolsonaro e o turco Recep Erdogan.
Marcas persistentes da pandemia
Embora o cenário esteja um pouco melhor com o desenvolvimento a jato das vacinas, a pandemia certamente deixará suas marcas também em 2021, avalia o estudo, que coloca a emergência de saúde como o risco de número dois. Tanto em termos sanitários quanto econômicos, as condições dos países ainda são muito díspares, o que tende a acentuar as desigualdades globais.
Não está descartada, por exemplo, a ocorrência de crises financeiras entre os emergentes, muito menos capazes de arcar com os gigantescos ônus da disseminação do novo coronavírus. Estados sem capacidade de investimento vão ter que lidar com milhões de desempregados e administrar eventuais convulsões sociais decorrentes dessa circunstância — e, talvez, essa situação abra mais espaço para uma nova rodada de ascensão de líderes populistas.
Clima, Oriente Médio e Europa
Os analistas igualmente colocam como risco global as questões climáticas — afinal, enquanto em 2020 todas as atenções estiveram direcionadas para a pandemia, o planeta continuou esquentando. O fato de, sob Biden, os Estados Unidos estarem de volta às negociações multilaterais relacionadas ao clima é uma boa notícia, mas não suficiente para tirar esse tema da lista de ameaças. Simplesmente porque faltará um trabalho coordenado. Afirma o estudo do Eurasia Group que a agenda da mudança climática em 2021 deixará de ser um playground de cooperação para se transformar numa arena de competição.
À parte Estados Unidos e China, o estudo igualmente identifica riscos na situação político-econômica da Turquia, no sempre conflituoso Oriente Médio (desta vez por causa dos baixos preços do petróleo) e da saída da primeira-ministra da Alemanha, Angela Merkel, que deve deixar o cargo depois de 15 anos. Sem ela, teme-se pela frágil base europeia — que, no final das contas, é ponto em comum dos europeus com o resto do mundo. Em meio a tantas ameaças, reforçar os alicerces globais provavelmente será tarefa adiada para anos menos turbulentos que 2021.
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