O colegiado da Comissão de Valores Mobiliários (CVM) comandado por Marcelo Barbosa mal completou seis meses, mas provavelmente já precisará arbitrar uma notável disputa entre controlador e minoritários. A contenda envolve temas caros ao mercado de capitais, como equidade entre as partes em casos de alienação de controle, segurança jurídica e limites da atuação do regulador. De um lado está a chinesa State Grid, que comprou a CPFL Energia em setembro de 2016 e agora tenta fazer uma oferta pública de aquisição (OPA) das ações remanescentes da CPFL Renováveis, companhia aberta controlada pela CPFL Energia. Em contraposição alinham-se investidores institucionais de peso, descontentes com o valor proposto. Entre os litigantes, uma postura incomum e polêmica da Superintendência de Registro de Valores Mobiliários (SRE): os técnicos desautorizaram a OPA após concluir que o preço por ação oferecido pelos chineses é injusto.
A State Grid recorreu da decisão no dia 7 de março. A partir dessa data, a SRE tem dez dias para avaliar o recurso e apresentar uma posição. Se a OPA for novamente barrada — hipótese que a maior parte dos advogados ouvidos pela CAPITAL ABERTO considera a mais provável —, os chineses poderão tentar reverter a situação em apelo ao colegiado. Nesse caso, o recurso entrará na agenda semanal de discussão do grupo, sem uma data específica para julgamento e com difícil prognóstico, dado o curto histórico de decisões. Enquanto a pendenga não tem novos episódios na CVM, os envolvidos se cercam dos mais renomados escritórios e advogados de direito societário do País. Já são dois pareceres em favor dos minoritários e cinco fundamentando os argumentos da State Grid.
O caso
A CPFL Renováveis está no centro do que se conhece como aquisição indireta de controle, situação que se configura quando um comprador adquire uma empresa que controla outras unidades de um mesmo conglomerado empresarial. Assim, quando os chineses compraram o controle da CPFL Energia, indiretamente também adquiriram o comando da CPFL Renováveis, que tem parte de seu capital detido por minoritários. Diante disso, conforme manda a Lei das S.As., a State Grid entrou, em fevereiro de 2017, com um pedido na CVM para levar adiante uma OPA para comprar as ações da CPFL Renováveis. A OPA da CPFL Energia, motivada por alienação de controle (o chamado tag along), havia sido concluída no mês anterior. Cabe destacar que, assim como ocorre na OPA por alienação direta, na indireta o valor a ser pago aos minoritários deve ser o equivalente a 80% do que foi desembolsado pelas ações do bloco de controle — percentual que sobe para 100% se a empresa estiver sob as regras do Novo Mercado (situação original das duas CPFLs). O problema é que na OPA por alienação indireta a fixação do preço se torna mais complexa: afinal, nem sempre na transação de compra da empresa que encabeça o grupo está detalhado o valor de cada uma das controladas.
No caso da CPFL Renováveis, o preço por ação — de 12,20 reais, calculado com base no Ebtida da companhia nos quatro trimestres anteriores à aquisição da CPFL Energia —constava do contrato de aquisição da CPFL Energia. E esse foi o valor oferecido pela State Grid na OPA. Um grupo de acionistas minoritários, entretanto, não concordou com o valor presente no documento. Em junho do ano passado, dois fundos de participações do Pátria, Fundo Brasil Energia, GMR Energia, fundo Arrow, DEG (Deutsche Investitions) e International Finance Corporation (IFC) questionaram, na CVM, a demonstração justificada de preço (DJP) — documento que apresenta as premissas para o cálculo do valor de uma controlada — apresentada pela State Grid.
Em atitude incomum, técnicos da CVM desautorizaram a OPA após concluir que seu preço é injusto
Eles discordam da escolha do Ebitda passado como critério para determinação do preço da OPA. A companhia fundamentou sua decisão na simetria com a avaliação da controladora CPFL Energia, mas, na visão dos minoritários, a adoção da mesma premissa para as duas empresas não faz sentido, uma vez que elas estão em estágios bem diferentes de desenvolvimento. O raciocínio é simples: para uma companhia que opera num nicho com enorme potencial de crescimento (energia renovável) e com possibilidade de conquistar novos contratos e agregar fontes de receita seria injusto não usar como base do cálculo o fluxo de caixa futuro.
A reivindicação dos minoritários encontrou respaldo na SRE, que solicitou à State Grid um laudo para testar as premissas da DJP. O trabalho, feito pelo banco Fator, foi entregue em novembro. No fim de fevereiro, a SRE apresentou sua avaliação em relação ao pleito dos minoritários — para desgosto da State Grid, alegria dos investidores institucionais e surpresa de muitos participantes do mercado.
Razoável?
A SRE considerou que não eram razoáveis as premissas adotadas para a elaboração do laudo. Um dos pontos que a incomodou, de acordo com relatório ao qual a Capital Aberto teve acesso, foi a consideração apenas do Ebitda dos projetos em operação ou em fase de construção da CPFL Renováveis — não foram incluídos no cálculo projetos que vigorarão a partir de 2025, o que acabou por reduzir o fluxo de caixa da empresa e levou a uma avaliação inferior das ações. Diante disso, a área técnica resolveu ela própria calcular o preço da OPA com base em cinco critérios além do Ebitda passado — e todos os resultados foram superiores ao preço unitário por ação oferecido pelos chineses. O valor variou entre o mínimo de 16,69 reais (fundamentado numa média de preços-alvo de analistas de mercado na época da alienação das CPFLs) e o teto de 20,48 reais (conforme o patrimônio líquido contábil da CPFL Renováveis no primeiro trimestre de 2016).
Diante disso, a SRE concluiu que o valor que garantiria ao acionista minoritário da CPFL Renováveis tratamento igualitário àquele dispensado ao antigo controlador seria, no mínimo, igual a 16,69 reais. Caso a decisão da SRE seja eventualmente acompanhada pelo colegiado, o valor do desembolso dos chineses com a OPA crescerá 1,1 bilhão de reais.
Letra morta
A posição da área técnica agradou Mauro Cunha, presidente da Associação dos Investidores do Mercado de Capitais (Amec). “A CVM tem a obrigação de evitar que laudos fajutos sejam usados como base para OPAs, sob pena de tornar o artigo 254-A [da Lei das S.As] letra morta”, defende Cunha. Advogados ouvidos pela reportagem, entretanto, dizem que a CVM extrapola seus limites ao se manifestar sobre qual seria o preço justo da OPA. “A área técnica está confundindo seu papel. Ela não tem a prerrogativa de determinar preços. Parece ter escolhido um lado, o dos minoritários, mas deveria aplicar a lei de forma equilibrada, cuidando da segurança jurídica”, afirma uma fonte a par do caso e que atua em prol da State Grid. “É válido que a CVM questione as premissas adotadas, mas deveria ter pedido mais informações em vez de apresentar seus próprios parâmetros de preço”, observa Erik Oioli, sócio do escritório VBSO Advogados. “Ideal seria a área técnica ter solicitado que se refizesse ou se ajustasse o laudo, sem puxar para si o papel de avaliador”, endossa a advogada Paula Magalhães, do escritório Tauil & Chequer Advogados.
O problema é que nem sempre na compra da empresa que encabeça o grupo está detalhado o valor de cada uma das controladas
A atuação da SRE se apoia numa jurisprudência criada em caso parecido. Em 2007, ao analisar as premissas para o cálculo do valor a ser pago a minoritários da Arcelor Mittal Brasil constantes de uma DJP de aquisição indireta (venda do controle da Arcelor no exterior), a área técnica da época discordou do critério usado (Ebitda passado, em vez de valor de mercado) e chegou a mencionar qual seria o preço justo. A discussão chegou ao colegiado, que decidiu rever a decisão da instância inferior ao aceitar o Ebitda passado como critério-base, com algumas correções. No fim das contas, a companhia acatou os ajustes determinados pela área técnica para o preço, que resultou superior ao inicialmente proposto.
Preço antecipado
O enrosco do preço mínimo já provocaria confusão suficiente. O fato de a State Grid ter explicitado, já no contrato de aquisição da controladora do grupo, o preço das ações dos minoritários da controlada CPFL Renováveis joga ainda mais lenha na fogueira. Isso significa que a CVM e os investidores sabiam desde o início que o valor seria 12,20 reais.
Ao se deparar com esse detalhe contratual, a SRE valeu-se de outro antecedente. Também em 2007, uma decisão do colegiado a respeito de OPA da Petróleo Ipiranga dava conta de que mesmo quando o contrato discrimina os valores da controlada eles “não são objeto de uma real negociação entre o adquirente e o alienante, já que, para este último, a distribuição do preço entre os ativos indiretamente alienados pode ter pouca ou nenhuma relevância”. Nessas situações, ressaltou um dos integrantes do colegiado na época, o laudo e outros critérios poderiam ser utilizados como meios auxiliares na determinação do preço da oferta. No caso da CPFL Renováveis, a SRE considerou que a importância da companhia para sua controladora foi subestimada. Procurada pela reportagem, a CVM não quis comentar as críticas à atuação da área técnica.
Caso chegue à análise do colegiado, a disputa não será um problema fácil para os diretores. Se acolher a argumentação do controlador, o órgão poderá ser acusado de ratificar o desequilíbrio entre as condições usufruídas pelos vendedores do bloco de controle, de um lado, e pelos minoritários, de outro — e isso em relação a uma empresa listada no mais alto nível de governança corporativa. Se, ao contrário, deixar prevalecer a avaliação da área técnica, poderá ser acusado de extrapolar os limites regulatórios. “Quanto mais as normas estão sujeitas a interpretações e avaliações subjetivas, maior a insegurança jurídica”, sentencia Henrique Filizzola, sócio do Stocche Forbes. Qualquer que seja o desfecho, este será certamente um teste para o recém-nascido colegiado da CVM.
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