Punição a insider trading secundário é utopia
Apresentação de provas materiais é empecilho para condenação na Justiça
Punição à insider trading secundário é utopia

Ilustração: Rodrigo Auada

Desde 2001 o crime de insider trading integra o ordenamento jurídico brasileiro, obra da inclusão do artigo 27-D à Lei 6.385/76. Mas as quase duas décadas de tipificação pouco significaram em efetivas punições na esfera criminal. Foi apenas em 2017 que foram decretadas as primeiras prisões — as de Wesley e Joesley Batista, donos da JBS. Pouco depois foi promulgada a Lei 13.506/17, que ampliou a caracterização do crime de insider: passaram a ser consideradas criminosas não só as pessoas que, com dever de manutenção de sigilo sobre uma informação relevante e ainda não pública, operassem para obter vantagens, mas também aquelas que mesmo sem ter o dever fiduciário agissem com esse propósito. Ficou assim estabelecido o crime de insider secundário, antes só punido na esfera administrativa pela Comissão de Valores Mobiliários (CVM). Pois a nova redação ainda nem completou um ano e agentes do mercado de capitais e advogados já se debruçam sobre uma questão inquietante. Se nem o insider primário é largamente punido no Brasil, como as autoridades vão conseguir enquadrar também os insiders secundários?

De fato, existe uma série de barreiras que os órgãos oficiais devem transpor antes de serem efetivadas as punições. E o que vale para o insider primário, cabe destacar, quase sempre fica ainda mais complexo para o caso do secundário. “A grande dificuldade é demonstrar que o investigado sabia deter informação privilegiada”, destaca Pablo Renteria, diretor da CVM. Diferentemente dos insiders primários, que geralmente exercem cargos nas companhias emissoras de valores mobiliários que lhe possibilitam acesso inegável a negociações e decisões, os tippees (nome, em inglês, dado aos que recebem “dicas” para negociar) não costumam ter ligação direta com as empresas. Por isso, não há presunção de que tiveram acesso a informações sigilosas dessas organizações e que sabiam de sua relevância. Assim, para que possa abrir um processo sancionador contra um insider secundário, a CVM precisa coletar indícios — como, por exemplo, relação de amizade entre o insider primário e o secundário, troca de e-mails e histórico de operações — que sinalizem fortemente que o tippee teve acesso à informação, que ele tinha conhecimento de que era privilegiada e que negociou motivado por ela.

Depois de formulada a acusação — tanto contra o insider primário quanto contra o secundário —, a CVM repassa as informações ao Ministério Público Federal (MPF), a quem cabe apresentar denúncia à Justiça, ponto em que o caso já está na esfera criminal. Ocorre que, de maneira diversa da punição administrativa (que pode ser calcada em provas indiciárias), a prisão de um acusado requer provas materiais (como registros de e-mail ou gravações), o que evidentemente é muito mais difícil. Isso explica por que muitas situações que acabam em punição pela CVM não se transformam em processos penais.

Apesar disso, o advogado criminalista David Rechulski observa que há uma tendência de “tudo ser resolvido por meio da criminalização”. “A mudança da lei [6.385/76] mostra um pouco disso, pois quando se suprime o dever de preservação do sigilo para a punição do insider secundário entra-se em um cenário de risco de imputação das infelizes coincidências”, afirma. “Até que ponto e quais provas devem existir para que, com segurança absoluta, seja gerada uma condenação? O processo criminal é o que de mais sério deve haver do mundo. Não podemos admitir pressupostos ou suposições para subsidiar uma condenação”, ressalta. Importante ressalvar que só podem ser criminalizadas as condutas de insider secundário ocorridas depois que a Lei 13.506/17 entrou em vigor.

Condenações ínfimas

Apenas considerando o insider primário: de 2002 a 2015, foram 28 casos com punição dentre 50 processos administrativos sancionadores abertos, de acordo com dados do livro Insider trading: normas, instituições e mecanismos de combate no Brasil, dos professores da Escola de Direito da FGV Viviane Muller Prado, Renato Vilela e Nora Rachman. Dos 28 casos que geraram punição administrativa, apenas quatro viraram processos criminais. Se nesse tipo insider – cuja obtenção de provas é menos desafiadora – tão poucas condenações acontecem, a perspectiva é, sem dúvida, pouco animadora para a punição penal do insider trading secundário. Mesmo na esfera administrativa, onde indícios bastam, poucos agentes de mercado – que se enquadrariam na classificação de insiders secundários – são punidos. De acordo com o livro escrito pelos professores FGV, das 223 pessoas acusadas de insider pela CVM no período analisado, 137 são insiders secundários – categoria que inclui, por exemplo, investidores, corretoras de valores e seus funcionários, ex-administradores da companhia emissora, bancos e pessoas a ele ligadas e parentes de funcionários. Apesar da relevância desse grupo — dois terços do total da amostra —, a maior parte de seus integrantes foi inocentado. Dos 48 investidores indiciados, por exemplo, 39 foram absolvidos; dos 40 sob a categoria de corretoras de valores e seus funcionários, 35 foram isentados de culpa.

Na esfera administrativa, uma punição recente envolvendo insider secundário é relativa ao caso Globex. Em junho passado, a CVM condenou quatro investidores por insider trading secundário, infração ocorrida em 2009, dias antes de a empresa divulgar seu acordo de associação com as Casas Bahia. Passaram-se anos, portanto, da instauração do processo administrativo até a punição. Na época da infração, variações expressivas no volume de negócios e nos preços das ações da Globex chamaram a atenção do regulador, que sustentou a acusação em indícios como timing das operações, relações pessoais entre os acusados e atipicidade das transações na bolsa.

Ouvido pela reportagem, um juiz de vara especializada em crimes financeiros, para onde geralmente são encaminhadas as denúncias do MPF envolvendo ilegalidades em negociações de valores mobiliários, diz que dificilmente a quantidade de processos criminais por insider deve aumentar por causa da Lei 13.506/17, levando-se em conta que no âmbito criminal o volume de provas precisa ser muito consistente para que seja apresentada denúncia. “Isso gera dúvidas de até que ponto a criminalização do insider secundário é uma evolução legislativa realista”, observa Thiago Spercel, sócio do Machado Meyer.

Delegado da Polícia Federal atuante na delegacia de repressão à corrupção e aos crimes financeiros sediada em São Paulo, Edson Fábio Garutti Moreira acredita que o fato de a Lei 13.506/17 não obrigar mais o Estado a obter a prova da obrigatoriedade de sigilo para punir o insider secundário aumentou muito risco de penalização desses casos, em que os envolvidos quase sempre escapam ilesos. Por outro lado, observa, continua o desafio dos procuradores de provar todos os outros elementos do crime — que não são poucos, nem simples. “O mais complexo deles talvez seja a caracterização da informação como ‘relevante’ para fins penais, adequando esse conceito à potencialidade lesiva da conduta criminosa ao bem jurídico tutelado — no caso, a higidez do sistema financeiro nacional”, escreveu Garutti na seção Antítese da CAPITAL ABERTO, acrescentando que, “ao insider secundário ainda caberá uma gama imensa de possibilidades de defesa, como dizer que a informação não era relevante para fins penais, que poderia ser inferida de dados públicos e obtida por fontes acessíveis a qualquer pessoa.”

Faltou debate

Um ponto que incomoda os agentes do mercado é o fato de a alteração do crime de insider trading não ter sido alvo de amplo debate. Ela foi incluída de última hora na lei — até porque sua antecessora era a Medida Provisória 784/17, e MPs não podem tratar de matéria criminal. Na visão Ludmila Groch, sócia na área penal empresarial do TozziniFreire Advogados, que também escreveu para a seção Antítese, a falta de debate impossibilitou a compreensão das características do mercado de valores mobiliários, refinamentos no texto legal e inserção de exceções. Prova disso é o parágrafo 1o do artigo 27-D, segundo o qual “incorre na mesma pena [de insider trading secundário] quem repassa informação sigilosa relativa a fato relevante a que tenha tido acesso em razão de cargo ou posição que ocupe em emissor de valores mobiliários ou em razão de relação comercial, profissional ou de confiança com o emissor”.

“Como a legislação ficou muito aberta, ainda temos dúvidas sobre até que ponto a letra fria da lei poderá punir o repasse de informação de quem está exercendo sua profissão. Pelo texto, haveria a possibilidade de punir assessores financeiros por uma simples transmissão de dados, independentemente da realização de negociações”, critica Felipe Hanszmann, sócio do Vieira Rezende Advogados. A CVM, entretanto, permite o repasse de informações dentro de processos normais de trabalho, principalmente, considerando a troca de dados, muitas vezes sensíveis, no âmbito de negociações. “Qualquer pessoa que usa uma informação não divulgada poderia ser abarcada pela lei, em tese. A norma por si só não é capaz de mudar muita coisa; verificando a efetividade, veremos o impacto”, diz a professora Muller.

As dúvidas em torno da forma como a lei será aplicada também têm como catalisador a assimetria entre sua formulação e o que é praticado em outras jurisdições. Nos Estados Unidos, modelo central para o Brasil no que se refere à regulamentação do mercado de capitais, não existe um texto específico para o crime de insider trading, mas casos julgados pela Suprema Corte criam jurisprudência sobre o crime, servindo de guia para o Judiciário do país nas últimas décadas — o processo Dirks v. SEC, de 1983, incluiu a punição ao insider secundário quando o acusado sabe se tratar de informação privilegiada e negocia ciente da quebra de um dever fiduciário.

“Ainda hoje há divergências sobre mudanças de imputação para o crime. Enfrenta-se a dificuldade da comprovação de que o negociador sabia ou deveria saber estar usando informação privilegiada”, explica o advogado Gregory Harrington, sócio do Arnold&Porter, em Washington. O Securities Exchange Act, principal lei que rege a negociação de valores mobiliários, datada de 1934, não trata de uso de insider information, por exemplo. Em 1942, a Securities and Exchange Commission (SEC) criou a regra 10b5, que não define a prática de insider trading, mas tem previsões que vêm sendo usadas para punir quem, em posição privilegiada, repassa informações para que terceiros negociem com vantagem. Outras normas aprovadas nas últimas décadas criaram parâmetros — como o Insider Trading Act, de 1988, que estabeleceu pena de cinco anos de reclusão e multas de até três vezes o valor da vantagem obtida ou 1 milhão de dólares.

Compliance

Seja nos EUA ou no Brasil, o desalinhamento de informações é assunto não apenas para regulador e Justiça: é também pauta do compliance das empresas. “É preciso ter total certeza de que as barreiras de informação entre as diversas áreas da companhia estão funcionando bem. Dados sensíveis não precisam circular livremente entre os diversos setores”, diz Luis Fernando Affonso, diretor de risco e compliance da Franklin Templeton Investments. Ele defende que seja dada ao regulador a prerrogativa de fiscalizar e, se necessário, punir empresas que não contam com mecanismos efetivos de isolamento da informação e mitigação de riscos — como a limitação do número de pessoas com acesso a dados sigilosos, mecanismos de segurança para arquivamento de fatos relevantes e estratégias como a criação de uma espécie de compliance hotline em gestoras de recursos para a entrega informações relevantes e a configuração de uma lista de restrições a determinados ativos por um período.

Isso passa também pelas práticas adotadas nos departamentos de relações com investidores. De acordo com Edina Biava, membro da comissão técnica do Instituto Brasileiro de Relações com Investidores (Ibri), as companhias abertas precisam reforçar as suas práticas de compliance para evitar casos de insider. “Elas ainda têm sistemas que deixam tudo muito ‘solto’. As informações precisam ser guardadas, e falta um compliance mais efetivo”, afirma. Fica aí um dever de casa para os diretores dessa área: precisam se adaptar a normas cada vez mais duras. “Há claramente uma inversão no ônus da prova na parte criminal e no âmbito do compliance. É importante os compliance officers terem na cabeça que tudo o que fizerem precisa ter condição para virar prova processual, porque simplesmente falar não é suficiente”, afirma Rechulski. Ou seja: não basta andar na linha — é preciso registrar cada passo.


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