Governança da Qualicorp na UTI
Os estragos causados pela decisão do board de pagar 150 milhões de reais ao fundador da empresa num acordo de não competição
Governança da Qualicorp na UTI

Ilustração: Rodrigo Auada

Não se discute que os conceitos de governança corporativa estão disseminados no ambiente empresarial brasileiro. Apesar disso, de tempos em tempos surgem tentativas embaraçosas de drible às melhores práticas — mesmo dentro do Novo Mercado da B3, que exige a adoção de regras que ampliam os direitos dos acionistas e elevam a transparência das companhias. A boa notícia é que esses desvios têm disparado reações imediatas e vigorosas dos investidores. Ilustra perfeitamente essa situação um recente episódio envolvendo a comercializadora e administradora de planos de saúde coletivos Qualicorp. Na manhã do último dia 1º de outubro, a empresa anunciou que seu conselho de administração aprovara o pagamento, a seu principal acionista, fundador, conselheiro de administração e diretor-presidente, José Seripieri Filho (mais conhecido como Júnior), de 150 milhões de reais em troca de sua fidelidade. Para receber a bolada, que já foi paga, Júnior se comprometeu a não vender suas ações da empresa e a não abrir um negócio concorrente por um período de seis anos. A decisão soou absurda aos ouvidos dos investidores — não por acaso, a Qualicorp perdeu 1,4 bilhão de reais em valor de mercado num único dia, em decorrência da queda de 30% das ações.

A XP Gestão de Recursos (dona de 9% das ações da Qualicorp) teve papel central na revolta dos acionistas. Logo após o anúncio do pagamento da indenização a Júnior, classificou a decisão de “unilateral”, “totalmente descabida” e “sem precedentes”. “Consideramos o valor sem justificativa, em uma negociação feita sem a participação ou a anuência dos acionistas minoritários. A questão é simples: se é de interesse dos acionistas [manter Júnior na empresa], por que não foi considerada a aprovação do contrato em assembleia?”, questionou a XP em um comunicado enviado a cotistas. No documento, a asset ainda detalhou as perdas de seus fundos de investimento e expôs sua indignação. “Em uma empresa que é do Novo Mercado esperamos que princípios de governança corporativa sejam respeitados, tais como transparência, equidade, prestação de contas e responsabilidade corporativa”, completou a XP, reforçando que buscaria de todas as formas, inclusive na Justiça, “os devidos reparos”.

Diante do barulho, a Qualicorp se viu obrigada a rever os termos do acordo. O pagamento a Júnior foi mantido, mas, conforme anúncio feito pela companhia em 7 de outubro, ele se comprometeu a adquirir até o fim deste ano pelo menos 150 milhões de reais em ações da Qualicorp — o mesmo montante que a companhia concordou em lhe pagar, como uma espécie de compensação. A situação, entretanto, continua beneficiando Júnior. Com a queda nos preços das ações nos últimos meses, acentuada pelas perdas mais recentes, ele tem a chance de comprar os papéis — e aumentar a sua participação no negócio — a um preço bastante convidativo em relação ao valuation da empresa. Em 15 de outubro, as ações ON da Qualicorp valiam 13,50 reais, cotação cerca de 60% inferior à registrada um ano antes, na casa de 36 reais. E a expectativa é de que, passado o mal-estar gerado pela indenização, as ações voltem a se valorizar.


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Mais um curativo foi a criação de um comitê de governança corporativa, liderado por Rogério Calderón Peres. Indicado pela XP Gestão de Recursos, ele passa a integrar também o conselho de administração, assumindo o lugar de Claudio Bahbout, que colocou seu cargo à disposição para viabilizar essa nomeação. Aparentemente, a gestora ficou satisfeita com a solução oferecida pela Qualicorp — a obrigação de Junior de comprar ações da empresa tende a elevar o preço dos papéis no longo prazo e, com um representante no conselho, será mais fácil assegurar que novos deslizes não acontecerão. Procurada pela reportagem, a XP disse que não comentaria o caso.

Igualmente para pacificar a situação, a Qualicorp estabeleceu que transações com partes relacionadas passarão a ser submetidas à apreciação de acionistas em assembleia. Professora da FGV e ex-diretora da Comissão de Valores Mobiliários (CVM), Luciana Dias observa que a Lei das S.As. (6.404/76) não proíbe que transações com partes relacionadas sejam aprovadas apenas pelo conselho — por isso, não houve uma ilegalidade nesse quesito no caso da Qualicorp. O pagamento da indenização foi aprovado por unanimidade pelo board, mas por ter interesse no assunto, Júnior se absteve de votar.

O problema, ressalta a professora, é que se fechou um acordo com um administrador para que recebesse uma quantia substancial para fazer aquilo que, por lei, deveria ser sua obrigação (não competir com a empresa em que atua), segundo o artigo 155 da Lei das S.As. O dispositivo elenca, entre os deveres do administrador, “servir com lealdade à companhia e manter reserva sobre os seus negócios”, sendo vetado “usar, em benefício próprio”, “as oportunidades comerciais de que tenha conhecimento em razão do exercício de seu cargo”.

Cabe destacar, entretanto, que o artigo 155 da Lei das S.As. se aplica apenas à posição de administrador. “Se um acionista que não participe da administração quiser abrir uma empresa concorrente ele pode”, observa o professor do Insper Evandro Portes. Assim, se de fato Júnior quisesse seguir carreira solo sem ser alcançado pelo artigo 155 bastaria que renunciasse ao cargo de diretor-presidente e conselheiro de administração. Apenas como acionista da Qualicorp, ele estaria livre para empreender — e seria para não dar essa chance a Júnior que o conselho de administração da empresa teria aprovado o “pedágio” de 150 milhões de reais.

Entre amigos?

O fato de a Qualicorp ter revertido a decisão inicial estancou a hemorragia, mas não vai eliminar a cicatriz que passa a marcar a imagem da companhia. Na avaliação de especialistas em governança corporativa consultados pela reportagem, o episódio escancarou no mínimo uma certa incoerência do conselho de administração, difícil de engolir numa empresa que, ao aderir ao Novo Mercado, se dispôs a seguir as mais estritas regras de governança no relacionamento com os acionistas. E os investidores suspeitam que a razão dessa incoerência seja a influência de Júnior sobre o board. O executivo tem 15% das ações da Qualicorp, cujo controle é difuso, mas na prática teria um poder de influência sobre o andamento dos negócios muito maior do que a sua participação acionária lhe conferiria, afirmam pessoas próximas à Qualicorp, investidores e fontes ligadas ao setor de saúde. Desde que o fundo de private equity Carlyle decidiu zerar seu investimento na empresa, em dezembro de 2012, nenhum outro acionista foi tão relevante quanto Júnior.

Além dele, o board da Qualicorp é formado por seis profissionais com larga experiência com companhias abertas — três deles independentes e nenhum indicado por Júnior, segundo informou a diretora de relações com investidores da empresa, Grace Cury Tourinho.  O conselho da Qualicorp, vale frisar, não é liderado por um membro independente — o que seria recomendável conforme as melhores práticas de governança corporativa. O chairman, Raul Rosenthal Ladeira de Matos, está no quinto mandato consecutivo como integrante do colegiado. Detalhe importante: ele é sócio da M2 Participações Ltda., empresa de consultoria e assessoria comercial para avaliação de novos negócios e aquisições, que tem um contrato no valor de 5 milhões de reais com a Qualicorp, segundo informações do formulário de referência da empresa. A consultoria de Matos também já havia sido contratada pela Qualicorp entre 2010 e 2013, período em que recebeu pelo menos 2,5 milhões de reais. “Qualquer contrato de conselheiro com empresa deve ser evitado. Isso compromete a independência das decisões. Se há insatisfação com a remuneração, que se dedique à consultoria”, afirma o especialista em governança Renato Chaves.

Em teleconferência com analistas, horas após o desastroso anúncio do dia 1º de outubro, a diretora de RI da empresa se amparou no fato de os conselheiros não terem sido indicados por Júnior para defender a lisura da decisão. Ela explicou que o pagamento faria parte de um alinhamento estratégico da companhia com seu principal acionista, considerado pelo conselho de administração fundamental para os negócios da empresa, ainda mais diante do momento delicado que atravessa o mercado de saúde suplementar no Brasil. “A Qualicorp precisava manter a cabeça do Júnior concentrada na companhia, gerando oportunidades para todos”, justificou Tourinho na conversa com os investidores, acrescentando que o valor de 150 milhões de reais foi fundamentado em estudos de três consultorias especializadas em remuneração (McKinsey, Spencer Stuart e Mercer). Em entrevista que concedeu ao portal Brazil Journal no dia 2 de outubro, Júnior disse que passou a ter a vontade de “desenvolver projetos inovadores na área de saúde com muito potencial de ganho, fora da Qualicorp”, e que o mercado nacional de saúde complementar precisa de “disrupção”.

Na leitura dos investidores, a explicação da diretora de RI não colou. A Associação de Investidores do Mercado de Capitais (Amec), junto a seus associados, está estudando possíveis medidas contra a Qualicorp, segundo apurou a reportagem. O presidente da entidade, Mauro Cunha, classificou a decisão do board da Qualicorp como o maior escândalo societário no País desde o caso da reestruturação da operadora de telefonia Oi. Na operação de fusão entre a operadora brasileira de telefonia e a Portugal Telecom, anunciada em outubro de 2013, a empresa resultante assumiu dívidas da ordem de 4,5 bilhões de reais que antes pertenciam aos acionistas controladores da Oi. A advogada Dias destaca ainda nunca ter visto tanta transferência de valor de forma direta fora de um contexto de reorganização societária quanto no episódio da Qualicorp.

Embora o contrato de não competição e seu trâmite de aprovação não firam a lei, a CVM instaurou, ainda no dia do anúncio do pagamento, um processo administrativo para apurar as transações entre as partes relacionadas no caso. Se for constatado que Júnior faltou com seus deveres de lealdade e de diligência, ele pode ser punido no âmbito administrativo. A CVM, entretanto, não conseguiria determinar ressarcimento do valor já efetivamente pago ao executivo, segundo fontes ouvidas pela CAPITAL ABERTO. A decisão caberia à Justiça. Segundo a assessoria de imprensa da Qualicorp, apenas nas hipóteses de tomada de controle de forma hostil ou de destituição da maioria do conselho de administração antes do encerramento dos mandatos Júnior poderia rescindir o contrato. Nessa situação, no entanto, ele precisaria reembolsar a empresa proporcionalmente ao período que faltasse até o fim do acordo (seis anos).

Saúde comprometida

Observando-se os números da empresa é possível entender o grau de insatisfação dos acionistas — especialmente neste momento de dificuldades para o setor em que atua. O mercado de saúde complementar é vítima da recessão, que corta empregos e reduz o número de pessoas vinculadas a planos de saúde empresariais, o principal ganha pão da companhia. Além disso, os custos muitas vezes inviabilizam, para as empresas, a oferta do benefício aos funcionários. “Os empregadores estão com muitas dificuldades para continuar oferecendo os planos”, destaca Leonardo Giusti, líder da área de saúde da KPMG. Dados da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) do segundo trimestre deste ano mostram que o total de beneficiários de planos de saúde no País era de 47,3 milhões, o que corresponde a uma redução de 6,1% em relação ao recorde de 50,4 milhões registrado no quarto trimestre de 2014. A Qualicorp encerrou o período de outubro a dezembro de 2014 com 5,1 milhões de beneficiários, número que no encerramento do segundo trimestre deste ano se limitava a 2,6 milhões. Para se ter uma ideia do tamanho do problema, a Qualicorp viu ser encerrado no início de 2018 um contrato que abarcava 1,4 milhão de vidas.

As dificuldades estão estampadas em seu balanço. No primeiro semestre deste ano, a receita líquida recuou 0,7% em comparação a igual intervalo de 2017, para 962 milhões de reais, enquanto a geração de caixa (medida pelo Ebitda ajustado) desabou 11,4%, para 451 milhões de reais. Basta uma conta mental rápida para se chegar à conclusão de que 150 milhões são relevantes para uma empresa do porte da Qualicorp.

Analistas do BTG Pactual estimam que o pagamento concedido a Júnior pode, sozinho, diminuir o lucro líquido da empresa em 14% e 15% em 2019 e 2020, respectivamente. Ainda de acordo com eles, o aumento da percepção de risco da Qualicorp relacionado à aprovação do pagamento pelo conselho de administração deve manter o preço das ações em múltiplos mais baixos por um tempo. Completam dizendo que a visibilidade da governança ficou “embaçada” com o episódio. Analistas do Itaú BBA igualmente classificaram o pagamento como sinalização de que os padrões de governança da empresa deixam a desejar. Uma péssima notícia para os investidores que, em outros tempos, apostaram na saúde da Qualicorp.


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