Mexer na Lei das S.As. via MP: isso, não!
Especialistas destacam inadequação das propostas que mudam o diploma por meio da Medida Provisória 1.040
É preciso melhorar o ambiente de negócios no Brasil, mas via MP? 

O governo federal decidiu editar a Medida Provisória (MP) 1.040, que sugere alterações na Lei das S.As. (Lei 6.404/76) em aspectos relativos à proteção de acionistas minoritários | Imagem: freepik

Não se discute que é no mínimo desconfortável — e, no limite, vergonhosa — a colocação do Brasil no ranking Doing Business do Banco Mundial, que elenca 190 países conforme as condições que oferecem para o pleno desenvolvimento dos empreendimentos e negócios. Na lista geral da publicação mais recente, de 2020, o País aparece na 124ª colocação, tendo piorado na comparação com o levantamento anterior, em que estava em 109º lugar. Para reverter esse quadro, o governo federal decidiu editar a Medida Provisória (MP) 1.040, que ficou conhecida como MP da melhora do ambiente de negócios. 

Calcado em pontos de naturezas bastante diversas, o texto sugere alterações na Lei das S.As. (Lei 6.404/76) em aspectos relativos à proteção de acionistas minoritários, tema que conta muitos pontos na metodologia do Doing Business. Com as mudanças propostas na MP, o objetivo declarado do governo é colocar o Brasil entre os 50 países mais amigáveis para os negócios. “A medida parece ter seguido um roteiro para atender a requisitos do ranking. Mas me parece que essa opção ignora a realidade do mercado de capitais e suas necessidades”, comenta Erik Oioli, sócio-fundador do VBSO Advogados. Para ele, a via da MP para alteração da Lei das S.As. é um caminho perigoso. 

Negacionismo societário 

Sócio-fundador do Eizirik Advogados, Nelson Eizirik também vê a MP 1.040 com ressalvas. “Na minha visão, essa medida é mais um exemplo do negacionismo do governo, um negacionismo societário que desconsidera a existência de uma lei muito bem feita”, afirma o advogado, lembrando que a Lei 6.404/76 foi resultado do trabalho dos melhores juristas da época e que, depois de alguns ajustes ao longo do tempo, ainda é atual. Em sua opinião, a MP é malfeita e tem objetivos nada razoáveis. “Não se muda uma lei societária para melhorar em um ranking, muito menos pelo mecanismo de MP. Os tópicos envolvidos requerem muita discussão, o que seria mais adequado com um projeto de lei, com debates com os agentes do mercado mesmo antes da tramitação no Congresso”, acrescenta. 

O fato de a pauta da MP não ter caráter setorial, e sim um interesse mais amplo, de melhorar o ambiente de negócios no Brasil, é visto com bons olhos pelo presidente da Associação dos Investidores no Mercado de Capitais (Amec), Fábio Coelho. Ele concorda, no entanto, que a tramitação de mudanças na lei societária via MP gera riscos, principalmente diante das centenas de emendas (cerca de 250) apresentadas pelos parlamentares. 

Transações entre partes relacionadas na MP 1.040

Um dos pontos mais polêmicos da MP abarca a obrigatoriedade de transações entre partes relacionadas — negócios feitos entre empresas de um mesmo conglomerado, por exemplo — passarem por deliberação de assembleia de acionistas, caso atendam a critérios de relevância a serem definidos pela CVM. A previsão muda a dinâmica atual, em que essas operações são avaliadas apenas pelos administradores.  

Eizirik enxerga vários problemas nessa ideia, começando pelo fato de, na prática, serem os executivos e conselheiros de administração os mais habilitados para avaliar essas operações. “É mais um sinal de negacionismo, uma postura que se recusa a ver a realidade de grandes empresas, integrantes de grupos em que controladoras, controladas e coligadas se relacionam. Negociações entre essas partes são absolutamente normais e legítimas, desde que feitas dentro do que estabelece a lei”, observa Eizirik. 

Além disso, afirma, submeter qualquer transação entre partes relacionadas a uma assembleia de acionistas tiraria das empresas o importante atributo da flexibilidade — e se a companhia é prejudicada, isso também é ruim para os minoritários. “Os atos de deliberação de assembleia já estão definidos no artigo 264 da Lei das S.As. E para os casos de dúvidas, há o Parecer 35 da CVM, que aparentemente tem funcionado”, avalia Eizirik. Segundo ele, haveria caminhos alternativos ao estabelecido pela MP 1.040 para assegurar a legitimidade dessas operações, como o sugerido por uma diretiva do Parlamento europeu para maiores cuidados com as transações desse tipo quanto à proteção dos minoritários ou mesmo a experiência brasileira de adoção de comitês independentes de avaliação. “A proposta da MP ignora a realidade, inibe operações e não garante proteção aos minoritários, à medida que, numa assembleia, se quiser o controlador aprova a matéria”, ressalta o advogado. 

Em posição divergente, Coelho observa que casos recentes no mercado brasileiro sugerem a necessidade de que transações entre partes relacionadas sejam sim submetidas a uma deliberação de acionistas. “Numa assembleia a informação passa a ter maior escrutínio. Mas de fato seria necessário estabelecer orientação quanto ao voto do controlador; sem isso, a questão continua em aberto”, defende o presidente da Amec. Na linha de Eizirik, Oioli diz que as regras e boas práticas de governança já vão nessa direção, atendendo o imperativo de disclosure sem necessidade de assembleia. ”Há questões empresariais nas transações entre partes relacionadas que exigem maior agilidade. Imagine como seria uma empresa ter que convocar os acionistas para deliberarem sobre operações de caixa entre empresas do mesmo grupo. Nesse ponto a MP gera uma complexidade desnecessária”, afirma. 

Assembleia extraordinária e voto plural 

Mais polêmica aparece na determinação de um prazo de 30 dias para a convocação das assembleias gerais extraordinárias — que, em geral, tratam de assuntos mais prementes. Hoje, a antecedência exigida é de 15 dias. Na visão dos redatores da proposta, essa previsão ajudaria o País a “ticar” mais um item importante nos quesitos do Doing Business. “Aparentemente o único objetivo é ganhar pontos no ranking, mas não faz o menor sentido alterar a Lei das S.As. só por isso. É preciso lembrar que a lei é um bem público”, ressalva Eizirik. “Sem um amplo debate essa extensão pode ter consequência ruins, e o caminho da MP é inadequado”, afirma Coelho. 

A MP 1.040 altera, ainda, a Lei das S.As. para instituir no País o chamado voto plural, que cria uma classe especial de ações com direito a mais votos. Na opinião de Eizirik, mesmo que a mudança rompa princípios da Lei das S.As., esse assunto justificaria um ajuste legal — isso por conta da atual dinâmica global do mercado de capitais. A proibição ao voto plural estaria, entre outros fatores, por trás das aberturas de capital de empresas brasileiras em bolsas de valores estrangeiras. “Mas isso deve ser feito por um projeto de lei, não por meio de uma MP”, afirma o advogado. Reforçando que a Amec é contrária à adoção do voto plural no Brasil, Coelho também considera que essa via é inadequada para a determinação. 

Entre convergências e divergências, certo é que parece haver um consenso em relação à impropriedade do mecanismo da MP — na prática, uma “canetada” do Executivo — para temas de tamanha complexidade e que demandariam amplos debates. E se o governo quer mudar o ambiente de negócios, precisa antes se esforçar para ajudar a melhorar o ambiente em si. “Mas vemos uma pandemia muito malconduzida no País e uma circunstância política sem precedentes”, pondera Eizirik. Cenário que, certamente, em nada favorece os negócios. 

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