Quem avalia o risco dos ativos que podem receber recursos de um fundo de investimento precisa encarar uma nada amigável pilha de tabelas, gráficos, planilhas, documentos e informações pinçadas do noticiário. É bastante trabalho, sem dúvida, mas no caso dos fundos de financiamento de litígios a “papelada” (real e digital) é ainda maior: inclui também avaliação do mérito de disputas judiciais e extrajudiciais, o histórico das partes de uma contenda, a legislação vigente, a corte envolvida, além de um sem-número de dados sobre trâmites judiciais ou arbitrais. O esforço é imprescindível, já que esses fundos aportam recursos em causas que, em caso de vitória, podem representar retornos em torno de 30% do valor da indenização recebida pela parte financiada. Não à toa esse nicho desperta a atenção de investidores em países como Estados Unidos, Reino Unido e Austrália. No Brasil, o instrumento ainda engatinha, mas pode receber um impulso de litígios nas áreas societária, empresarial e de infraestrutura.
Os fundos de litígio atraem empresas sem recursos suficientes ou disposição para encarar uma briga cujos custos são imprevisíveis. Afinal, a conta de uma eventual derrota fica com o fundo financiador. À parte essa particularidade, esses veículos funcionam nos mesmos moldes dos demais: reúnem recursos de investidores para comprar ativos que os gestores consideram em linha com os objetivos do fundo. A diferença está exatamente nos ativos: em vez de ações ou títulos públicos, litígios. Eles vivem em busca de brigas em que se desenhem uma quase indiscutível vitória de uma das partes — o risco, no entanto, está exatamente nesse ponto, já que é impossível ter certeza de qual será a decisão de um juiz ou de um árbitro. “Além de ter expertise jurídica, seguimos um modelo que analisa diversas variáveis para determinar a probabilidade de vitória”, detalha David Perla, diretor-executivo da Burford Capital, que gere fundos de litígio no exterior. Segundo ele, não é comum que, para maximizar as chances de vitória, as gestoras de recursos especializadas tenham, de forma institucionalizada, interferência nos rumos dos processos — fazem no máximo consultoria informal. Após o fechamento de um contrato de financiamento, cabe às partes tomar as decisões, da mesma forma como fariam se não houvesse um fundo na operação.
O financiamento de litígios no mercado de capitais firmou sua relevância na última década. Em países como Estados Unidos, Reino Unido e Austrália, a percepção é de que o uso dessa ferramenta vem aumentando — 97% dos representantes de 38 escritórios consultados pela gestora Burford Capital no ano passado têm essa avaliação e 82% apostam em tendência de crescimento nos cinco anos seguintes. Além disso, de um total de 495 advogados respondentes desses países, 70% afirmaram que seu escritório ou companhia já usou o financiamento; em 2012, as respostas afirmativas somavam apenas 10%. Fundada em 2009, a Burford é uma das diversas firmas especializadas na área que surgiram nesse período e que adquiriram robustez — hoje tem ações negociadas na Bolsa de Valores de Londres e lucrou 354 milhões de dólares em 2018.
“Esse mercado se desenvolveu sobretudo nos Estados Unidos, logo após a crise de 2008, evento que reforçou a necessidade de financiamento de processos”, comenta Zachary Krug, diretor de investimentos do fundo americano Woodsford, criado em 2010 e que tem escritórios também no Reino Unido, em Cingapura e em Israel. Na última década, a Austrália despontou como mercado relevante, impulsionado pelas class actions. Essa modalidade de processo judicial, relevante no país, corresponde a ações de grupos de acionistas minoritários que não precisam se identificar individualmente. Como nem sempre os autores de class actions têm cacife para bancar uma disputa, recorrem ao financiamento, destaca Nathan Landis, gerente de investimento do australiano IMF Bentham, listado na bolsa do país desde 2002 e com portfólio de 3,2 bilhões de dólares fora dos Estados Unidos.
Foco na arbitragem
Não está exatamente na muitas vezes morosa Justiça a força dos fundos de litígio. A principal mola que os impulsiona é a arbitragem, caminho que um número crescente de empresas escolhe na hora de resolver seus conflitos externos. Bom exemplo vem da Ásia. Tendo percebido a tendência, Cingapura e Hong Kong em 2017 aprovaram regras específicas para o financiamento de procedimentos arbitrais — não por acaso, transformaram-se em uma verdadeira meca para empresas asiáticas litigantes e veículos de investimento interessados em financiar suas disputas via arbitragem. “A regulamentação dá maior segurança jurídica ao mercado, o que naturalmente atrai as empresas e os fundos”, observa Perla, do Burford. Nos Estados Unidos, o financiamento de litígios por terceiros ocorre em diversos estados, como Nova York e Califórnia; o país conta também com o Litigation Funding Transparency Act, aprovado pelo Congresso em 2018. A lei exige transparência sobre o uso da ferramenta em litígios e class actions federais. Já na Inglaterra, o financiamento é igualmente permitido, já há décadas.
Em linhas gerais, na arbitragem as empresas indicam um árbitro para avaliar a contenda — é ele, e não um juiz, o responsável por uma decisão (da qual não se pode recorrer), tomada com base nas regras estabelecidas de comum acordo entre as partes. “É a alternativa mais comum para disputas comerciais complexas e tem a vantagem de as decisões serem reconhecidas internacionalmente de modo mais simples”, afirma Dana MacGrath, assessora jurídica do IMF Bentham. A maior câmara arbitral do mundo, a International Chamber of Commerce (ICC), com sede em Paris, já teve cerca de 25 mil casos registrados desde sua fundação, em 1923.
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Embora no Brasil os fundos de litígio ainda sejam incipientes, identifica-se um grande potencial para crescimento. O primeiro fundo a investir nesse nicho, do Grupo Leste, começou a operar em 2017, com 80 milhões de reais de capital próprio, e já financiou cerca de 20 casos. A expectativa é de que, a exemplo do que aconteceu nos Estados Unidos e na Europa, a crise econômica dê um empurrão a esse tipo de financiamento, seja para processos judiciais, seja para arbitragem. “No Brasil, o foco provavelmente ficará voltado às disputas relacionadas a contratos de infraestrutura, geralmente complexos e de longo prazo, e que acabam gerando muitas divergências e revisões”, avalia Renata Santana, sócia da CS Consulting, parceira local da Harbour, empresa britânica que iniciou suas operações no País neste ano “chamando” empresas que tenham casos de disputas para serem financiadas. Recém-chegada, a Harbour — que prioriza contendas que precisem de financiamento de pelo menos 10 milhões de dólares — já tem um primeiro caso, de arbitragem. Por causa do alto risco desse tipo de investimento, apenas investidores qualificados devem aportar recursos no fundo, de acordo com as regras britânicas que recaem sobre seu funcionamento.
Algumas peculiaridades brasileiras podem impulsionar o financiamento da arbitragem, em particular. As regras do Novo Mercado da B3 obrigam as empresas desse segmento a submeter as disputas comerciais e as relacionadas ao mercado de capitais a câmaras de arbitragem, nacionais ou estrangeiras. Além disso, no Brasil os procedimentos arbitrais costumam custar mais que ações judiciais — assim, pode ser uma boa ideia para uma empresa litigante contar com um fundo para pagamento das despesas. “Uma arbitragem pode incluir, por exemplo, gastos com viagens se a câmara escolhida estiver sediada no exterior”, destaca Santana, da CS Consulting. Embora o mecanismo seja atrativo, ela observa que o fato de a legislação brasileira não prever a resolução de demandas coletivas — diferentemente do que acontece na Austrália e nos Estados Unidos, por exemplo — por arbitragem tende a enfraquecer a busca pelo financiamento. De qualquer maneira, essa forma de resolução de conflitos já tem um certo histórico no Brasil. Segundo levantamento da advogada e doutora pela USP Selma Lemes, foram 11.567 procedimentos arbitrais entre 2010 e 2017, com um volume financeiro total de 87 bilhões de reais.
O mercado pode ser promissor, mas por ora não existem nem dados consolidados nem regulamentação específica para o financiamento de litígios (sejam discutidos na Justiça ou em procedimentos arbitrais) no País. Esses veículos precisam seguir apenas as normas gerais da Comissão de Valores Mobiliários (CVM) para fundos de investimento, quando estabelecidos no Brasil. O Centro de Arbitragem e Mediação da Câmara de Comércio Brasil-Canadá (CAM-CCBC) recomenda, em resolução de 2016, que as partes informem eventual recebimento de recursos de terceiros para financiamento do procedimento — desde então, houve sete notificações. “Essa informação sobre o financiamento protege a arbitragem, por permitir ao árbitro avaliar se existe conflito de interesses por parte do financiador”, diz Eleonora Coelho, árbitra e presidente do CAM-CCBC. Para ela, é positiva a chegada desses investidores, que com seus recursos podem contribuir para equiparar disputas entre empresas com patrimônio mais modesto e grandes corporações. “Funciona quase como um equalizador para brigas na lógica de David contra Golias, em que uma das partes é muito mais poderosa”, reforça Santana, da CS Consulting.
Crowdfunding para litígios
Paralelemente aos fundos, começam a aparecer outros formatos de captação de recursos para financiamento de litígios — por enquanto, apenas no exterior. Com base numa ideia próxima à do crowdfunding, plataformas virtuais funcionam como um marketplace que conecta “ativos” de litígio que demandam financiamento a investidores interessados em diversificar seu portfólio com esse mercado incomum. Um exemplo hipotético: uma empresa litigante entra numa dessas plataformas e apresenta seu “produto”, com as respectivas características e valores do processo (judicial ou arbitral); investidores gostam da proposta, aplicam recursos e, em caso de vitória, ficam com a parte do bolo que lhes cabe. Desde que começou a operar, em 2014, a americana LexShares já propiciou o financiamento de ações coletivas contra empresas de economia compartilhada e contra uma empresa de mídia acusada de violação de direitos autorais. “O processo de seleção do investimento, incluindo a avaliação das causas, é 100% online”, informa Jay Greenberg, cofundador e CEO da empresa. No início deste ano, a britânica AxiaFunder também entrou no segmento, tendo desde então intermediado a captação de recursos para duas causas. “Boa parte dos casos recebidos para avaliação é descartada, já que somos bastante rigorosos na triagem”, observa Cormac Leech, CEO da plataforma, que aceita litígios que necessitem de financiamento de 10 mil libras a 1 milhão de libras. Segundo ele, a plataforma tem como público-alvo investidores profissionais, acostumados a tomar riscos elevados como os do financiamento de litígios. Na AxiaFunder, quando manifesta interessa por um “ativo”, o investidor passa a ter acesso a depoimentos de representantes da empresa litigante e a documentos relativos ao processo judicial ou à arbitragem.
Apesar do avanço dessas plataformas, o financiamento de ações judiciais e de arbitragens de pequena monta é limitado. “Os investimentos ainda são concentrados em litígios complexos. Assim, hoje não funcionam para favorecer os mais pobres ou para aumentar a justiça social em larga escala, como se poderia esperar numa perspectiva mais ampla”, constata o especialista em financiamento de litígios Anthony Sebok, professor da Benjamin N. Cardozo School of Law da Yeshiva University, em Nova York. Por enquanto, a modalidade serve mesmo ao propósito mais elementar de qualquer fundo de investimento: gerar bons retornos para os cotistas com um risco bem calculado.
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