Em 2019, o jornal britânico The Guardian promoveu uma reforma em seu manual de redação, um procedimento habitual de empresas de mídia para adaptação de sua linguagem às maneiras de cada época. Entre as alterações, a determinação da substituição da expressão “mudanças climáticas”, considerada muito amena diante da atual situação, por “emergência climática” — as palavras “colapso” e “crise” também podem ser usadas, segundo o novo manual. O fato de a conjuntura ambiental ter provocado ajustes semânticos numa publicação de prestígio evidencia que os riscos do aquecimento global já há muito ultrapassaram a barreira dos laboratórios. Hoje é assunto para governos e organizações sociais, além de tema incontornável nas agendas de conselhos de administração.
A consolidação desse debate no setor privado pode ser condensada no que tem sido conhecido como governança climática, uma dimensão da gestão das empresas, de caráter estratégico, que deve permear tanto a alta liderança quanto os conselhos de administração. Os riscos — e também as oportunidades — gerados pela emergência climática a cada dia estão mais claros para a iniciativa privada, que gradativamente tem buscado maneiras de administrar essa situação. Os obstáculos a serem vencidos, entretanto, não são poucos — envolvem questões culturais, técnicas e de manejo de incentivos para os executivos.
Perdas de 105 bilhões de dólares
De maneira intuitiva praticamente todos — a não ser os notórios negacionistas das evidências científicas — sabem que há algo mudando no clima, com a possibilidade de agravamento da situação em um futuro próximo. Apenas considerando a área de abrangência do CDP Latin America, se os riscos climáticos identificados em 2020 fossem concretizados, as perdas financeiras representariam uma montanha de 105 bilhões de dólares, como destaca a diretora-executiva desse braço da organização, Rebeca Lima. Dentre os riscos mais proeminentes estão o aumento na severidade de eventos climáticos extremos (indicado por 20% dos respondentes de um questionário do CDP Latin America distribuído em 2020), alta na precificação de carbono (17%) e mudança nos padrões das precipitações (16%).
“Em contrapartida, também há muitas oportunidades abertas pelas ações de adaptação, estimadas em cerca de 125 bilhões de dólares”, afirma a diretora. Ou seja, as oportunidades ainda superam os riscos. Assim, fica claro que é muito melhor para as empresas apostar em tecnologias e soluções de combate à emergência climática do que esperar pelos impactos dos riscos. Cuidar do clima, em outras palavras, pode dar dinheiro. De acordo com a pesquisa do CDP, as empresas podem se beneficiar principalmente com o uso de energia de baixo carbono (15%), desenvolvimento ou crescimento de produtos e serviços de baixo carbono (14%) e uso mais eficiente na produção e nos processos de distribuição (9%).
Governança climática
O quadro está desenhado, e as empresas que estão atentas à evolução do cenário podem estruturar sua própria governança climática. E, para isso, há diversos caminhos possíveis, a depender das características da empresa, de seu porte e da sua área de atuação. O CDP, por exemplo, trabalha com um modelo dividido em supervisão do conselho de administração quanto às questões climáticas, definição das responsabilidades pelo corpo executivo e incentivo a esses profissionais para que atinjam determinadas metas relacionadas ao clima.
Segundo Lima, os números do CDP Latin America mostram que a adoção de práticas de governança climática está mais avançada entre companhias de capital aberto. Na amostra de respondentes do questionário de 2020, das 120 empresas listadas 87% afirmaram que o tema é supervisionado pelo seu conselho de administração e 82% informaram oferecer algum tipo de incentivo aos executivos vinculado a metas de redução de emissões. “Mas entre as empresas não listadas percebemos que essas ações ainda são tímidas”, observa Lima.
Conhecimento em sustentabilidade
Se as oportunidades abertas pelas iniciativas de adaptação à crise climática são benéficas para as empresas, elas obviamente também importam para os acionistas. Um episódio recente envolvendo a Exxon, uma das maiores companhias globais de exploração de combustíveis fósseis, é emblemático nesse sentido. Por pressão de investidores que já perceberam a necessidade de adaptação das operações da Exxon a tecnologias mais limpas — e em prol da própria perenidade da empresa —, foram eleitos dois nomes para o conselho de administração amplamente reconhecidos pelo ativismo a favor da economia de baixo carbono.
Na avaliação Sonia Favaretto, especialista em sustentabilidade, conselheira de administração e vice-presidente do conselho consultivo do CDP, cada board precisa buscar o melhor formato para a estruturação da agenda relacionada à crise climática. Nesse processo, afirma, um aspecto importante é a participação de profissionais especializados em sustentabilidade nesses colegiados, de forma que possam apresentar aos demais conselheiros as questões mais relevantes para a realidade daquela empresa. A instituição de um comitê de sustentabilidade, responsável pelo monitoramento desses tópicos, também pode ser bem-vinda. “É muito importante levar conhecimento qualificado ao conselho de administração”, ressalta. Nesse aspecto, complementa Lima, do CDP, mecanismos de governança bem estruturados ajudam muito a facilitar o fluxo de informações.
Desafios técnicos
Algumas companhias de grande porte já incorporaram essa questão à estratégia, como é o caso da Vivo (Telefônica Brasil), em que consta da agenda do conselho de administração a consideração das mudanças climáticas. De acordo com Ana Letícia Stivanin Senatore, gerente de sustentabilidade da empresa, os desafios incluem desde questões técnicas até a intangibilidade dos aspectos do clima, muito menos palpáveis do que a poluição de um rio, por exemplo.
O ponto técnico é particularmente relevante, e envolve as áreas mais especializadas da companhia. Afinal, depois de incorporado o tema à instância da estratégia, é necessário encontrar maneiras de implementar as ações que contribuam para amenizar o aquecimento global. “Precisamos tornar tangíveis perdas e oportunidades, apresentando soluções. Como, por exemplo, a companhia pode comprar energia de fonte renovável?”, comenta a gerente.
Em termos de incentivos, a Vivo estabeleceu um bônus atrelado a metas de redução de emissões. A partir do nível gerencial, todos os executivos da companhia são elegíveis para ganhos adicionais que começaram em 1% dos bônus em 2019 e hoje já estão em 5%. “Essa ampliação permite que mais pessoas dentro da empresa estejam diretamente envolvidas com o tema”, diz Senatore.
Um recorte interessante da experiência da Vivo é o fato de a empresa não integrar um setor intensivo em carbono — ou seja, o core de sua operação não envolve volumosas emissões. Apesar disso, a empresa tem um papel importante na redução dos gases de efeito estufa, à medida que seus serviços de telecomunicações ajudam outros segmentos da economia a se descarbonizar. Exemplos não faltam: quando oferece a tecnologia necessária para uma reunião virtual, a Vivo permite que os participantes evitem deslocamentos — e, por consequência, mais emissões.
O engajamento da cadeia de fornecedores, observa Favaretto, é outro ponto crucial, já que permite que empresas de menor porte também se alinhem no combate à emergência climática. A questão, no fim das contas, compreende todos os tipos de empresas, as sociedades, os governos e os cidadãos, vítimas — ou beneficiários — do manejo das condições climáticas. O ambiente pode bem ser traduzido por uma frase do escritor francês do século 19 Victor Hugo, citada por Favaretto: “nada tem mais força do que uma ideia cujo tempo chegou”.
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