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Caso GameStop suscita dilemas jurídicos 
Articulação pulverizada para alterar preço de ativo mexe com estruturas que vão de regulação ao poder de informar
Caso GameStop suscita dilemas jurídicos

A articulação no caso GameStop aconteceu com ampla divulgação — muito diferente das clássicas tentativas de manipulação de preços, que sempre ocorreram às escondidas | Imagem: vectorjuice – Freepik

O recente episódio envolvendo um grupo de pequenos investidores que, reunidos como numa grande onda, conseguiram articular a valorização das ações da rede varejista americana GameStop representa muito mais que uma simples suspeita de manipulação de preços. Poucos discordam da necessidade de investigação desse movimento sem precedentes para eventual identificação de quem agiu com dolo, de um lado, e de investidores lesados, de outro. O que não se discute é o fato de o mercado de capitais estar diante de um novo mundo, inaugurado pela marcha inescapável das redes de comunicação. Cabe aos agentes — reguladores, bolsas de valores, autorreguladores e os próprios investidores — encontrar maneiras de lidar com essa realidade. 

E não é só o avanço das tecnologias e das redes sociais que está por trás do fenômeno. A conjuntura de excesso de liquidez, num volume inédito, ajuda a preparar o terreno para ações coordenadas como as do caso da varejista americana, destaca o CEO e fundador do TradersClub e gestor do fundo Cosmos, Pedro Albuquerque. “Tamanha liquidez mexe com as estruturas dos mercados. Vale lembrar que altas fortes e abruptas nos preços de ações têm acontecido também com grandes companhias”, afirma, fazendo referência ao conceito de irracionalidade dos mercados. 

Essa circunstância macro seria um dos resultados das políticas estatais de injeção de recursos nas economias, movimento que vem desde a crise de 2008 e que se intensificou durante a pandemia, e de manutenção dos juros extremamente baixos — muitas vezes negativos — no mundo todo. Sem ter para onde correr para conseguir bons retornos, os investidores acabam inflando preços nas bolsas e está aberta a rota para orquestrações como a feita no ambiente da rede social Reddit. “Hoje, é barato financiar operações no mercado, as informações circulam muito rápido e intensamente e é fácil investir. Essa é a nova realidade”, observa Hudson Bessafundador da HB Escola de Negócios e professor de FGV, FEA-USP e CNF. 

Dilemas jurídicos 

À parte o cenário macroeconômico global, o episódio GameStop igualmente suscita dilemas na seara jurídica. As duas principais questões estão entrelaçadas e requerem uma resposta na mesma linha. Primeiro: a ação coordenada de pequenos investidores para direcionar um papel na bolsa configura conluio para manipulação de preços? Segundo: numa massa disforme de investidores pulverizados, como identificar quem comandou as operações? Tarefa difícil e muito provavelmente inédita para os reguladores, que também precisam separar o que é infração administrativa do que vai para a esfera criminal. 

“Antes de se dizer que o caso envolveu manipulação de preços é necessáriuma ampla investigação. A ideia é saber quem iniciou o grupo, quem deu as ordens dentro dele”, afirma Daniel Kalanskypresidente do Instituto Brasileiro de Direito Empresarial (Ibrademp) e sócio do escritório Loria e Kalansky Advogados. Segundo o advogado — para quem há no caso GameStop evidências de manipulação de preços —, um bom caminho seria a verificação dos investidores que, antes da conflagração do movimento conjunto, estavam comprados nos papéis da GameStop. Assim seria possível saber quem poderia ter interesse na valorização. 

Prejuízo para pessoas físicas 

Ele observa que o caso é importante também pelo potencial prejuízo causado a pessoas físicas. Não se pode descartar a possibilidade de muitos desses investidores de pequeno porte (e que não estavam no grupo do Reddit) terem comprado ações da varejista pagando preços artificialmente inflados pela eventual manipulação. Nesse contexto, as perdas iriam muito além do dinheiro que os hedge funds vendidos em GameStop viram escorrer pelo ralo. Seria, em outras palavras, um prejuízo para o mercado em geral, causado por assimetria de condições. 

Interessante observar, acrescenta Kalansky, que a articulação no caso GameStop aconteceu com ampla divulgação — muito diferente das clássicas tentativas de manipulação de preços, que sempre ocorreram às escondidas. Sinal dos tempos de reinado das redes sociais. “Mas não é por ser transparente que um movimento não possa ser caracterizado como manipulação.”  

Ações dos reguladores 

Existindo concordância quanto à necessidade de uma profunda investigação sobre o ocorridosurge o fator regulatório. Qual seria, numa situação com esse grau de novidade, a melhor direção a ser tomada pelo órgão responsável por proteger os investidores? “É importante considerar que existe bastante coisa diferente nos mercados e seria muito exigir que, agindo quase simultaneamente aos acontecimentos, os reguladores sempre tomem as medidas corretas”, pondera Bessa. “O episódio GameStop mostrou que um grupo pulverizado pode sim mexer com o mercado, algo muito diferente do que sempre se pensou. Esse tipo de união hoje tem relevância”, completa. 


Assista ao encontro “Caso GameStop: uma nova forma de manipulação de mercado?” aqui.


Uma das possíveis reações imediatas dos reguladores é determinar a suspensão da negociação das ações envolvidas numa suspeita de manipulação de preços. A medida interromperia o processo, mas teria um efeito colateral indesejado: impediria que investidores que nada têm a ver com o movimento pudessem negociar os papéis que eventualmente tenham em carteira. Hipoteticamente, a suspensão causaria ainda mais perdas para o mercado. 

Talvez uma boa estratégia seja a adotada na regulação brasileira — que, diferentemente da americana, limita as posições short (vendidas) dos investidores. O próprio caso GameStop partiu da percepção de investidores reunidos num fórum privado de que muitos hedge funds estariam excessivamente vendidos em ações da varejista. 

“O limite no Brasil, nesse caso, funciona muito bem, é saudável para o mercado”, opina Kalansky. “Também considero a regulação brasileira muito boa nesse aspecto, tendo ajudado o mercado a se manter resiliente pós-2008. Ações são investimento de risco, sujeito a altas e baixas intensas, mas também tendo a considerar a suspensão de papéis uma medida excessivamente rigorosa”, ressalta Bessa.  

Na avaliação de Kalansky, importante é que se evite a tentação de, sempre que surgem questões novas no mercado, reformar a regulação — mudar as normas não funciona para todos os casos, defende. “O Brasil já tem um ótimo arcabouço regulatório. Apesar de ter mais de 40 anos, a instrução da CVM que trata da manipulação de mercado é muito bem montada, ampla o suficiente para acomodar novos ilícitos”, diz, referindo-se à Instrução 8, de 1979. 

Atuação preventiva das companhias 

O burburinho em torno das ações da GameStop tem, ainda, implicações relevantes para as próprias companhias abertas. Elas precisam, na avaliação de André Vasconcellos, especialista em direito societário e mercado de capitais e diretor-adjunto do Instituto Brasileiro de Relações com Investidores (IBRI-RJ), estar muito bem preparadas para comunicar devidamente o mercado caso identifiquem movimentações atípicas das ações, desvinculadas de notícias relevantes sobre suas atividades. “As companhias sempre enfrentam momentos de crise, mas se o RI [profissional de relações com investidores] não planeja bem suas ações de comunicação planeja o fracasso”, afirma. 

Ainda na seara de comunicação, Pedro chama a atenção para a influência que hoje têm os influencers das redes sociais sobre as decisões do investimento no varejo. “Eles precisam entender sua responsabilidade pelo conteúdo que divulgam. Certamente há muitos que fazem um bom trabalho, mas é válido separar o joio do trigo, algo que o regulador pode fazer”comenta. 

Bessa menciona uma pesquisa da B3 com pessoas físicas segundo a qual 73% dos entrevistados decidem investir com base em recomendações de influencers e youtubers. “A pergunta é qual o tamanho da responsabilidade de quem indica ativos nas redes sociais”, destaca. O caso GameStop, no fim das contas, fez o mercado testemunhar em tempo real uma revolução nas relações entre agentes de mercado. Basta agora refletir sobre o que fazer diante da novidade.

 

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