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Ainda com lacunas, regulamentação de IA caminha no Brasil
Se transformado em lei do jeito que está, PL 21/10 terá pouca efetividade e deverá gerar insegurança jurídica
Regulamentação de IA caminha no Brasil
O PL 21/20 estabelece princípios e diretrizes para o desenvolvimento e a aplicação da IA no Brasil, uma espécie de marco legal para essa tecnologia | Imagem: freepik

As empresas no Brasil mal se acostumaram à Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD), diploma que entrou em vigor em setembro de 2020 e cujas sanções passaram a aplicadas no último mês de agosto, e mais uma tentativa de regulamentação da desafiadora relação entre pessoas e máquinas ganha corpo. No fim de setembro, a Câmara dos Deputados aprovou, por 413 votos a 15, o Projeto de Lei 21/20, que trata do uso da tecnologia de inteligência artificial (IA) no País. O texto, que agora está sob avaliação dos senadores, tem causado um certo desconforto entre especialistas — não tanto pela iniciativa de sua apresentação, mas sim pelo conteúdo considerado excessivamente vago e superficial, resultado de pouco debate com a sociedade antes da redação. 

O PL 21/20 estabelece princípios e diretrizes para o desenvolvimento e a aplicação da IA no Brasil, uma espécie de marco legal para essa tecnologia que se alinha a legislações anteriores nessa seara, como a própria LGPD e o Marco Civil da internet (Lei 12.965/14). A movimentação do Legislativo faz muito sentido quando se considera o grau de presença de atividades digitais na vida cotidiana. Pelo menos nas regiões metropolitanas e nas cidades grandes e médias formam uma minoria numericamente insignificante as pessoas que podem (ou conseguem) prescindir da internet, de aplicativos e de redes sociais para as mais variadas funções, de trabalho a lazer, de estudo a assistência médica, serviços bancários e investimentos. Para atender essa multidão, empresas de tecnologia se esmeram em aprimorar seus sistemas, e a cada dia mais recorrem à IA. Quem nunca ligou para um serviço de assistência ao consumidor e ouviu aquela voz mecânica “conversando” do outro lado da linha? É a mais óbvia aplicação da IA, mas evidentemente está longe de ser a única. Ocorre que no Brasil esse segmento da economia avança sem qualquer parâmetro legal — e  é essa lacuna que o PL, de autoria do deputado Eduardo Bismarck (PDT-CE) e relatado pela deputada Luisa Canziani (PTB-PR), pretende corrigir. 



Máquina inteligente 

Vale uma breve explicação do que é, em linhas bem gerais, a IA. Com base em estudos que remontam a meados do século passado, no período pós-Segunda Guerra (vale conhecer um pouco do trabalho do matemático britânico Alan Turing, cuja história está contada no filme O Jogo da Imitação), a tecnologia de IA parte da ideia de que faculdades mentais humanas podem ser associadas a modelos computacionais — para que, de maneira autônoma, as máquinas possam exercer atividades cognitivas que antes se pensava serem exclusivas dos seres humanos. Munido com algoritmos (sequências de instruções para a conclusão de determinada tarefa), um computador pode ser capaz de levar adiante essas atividades e, mais ainda, aprender com elas a partir de repetições e identificação de padrões — definições genéricas do conceito de aprendizagem de máquina. Com a IA, as máquinas podem tanto reproduzir as conexões do cérebro (redes neurais) quanto usar combinação de variáveis para tomar decisões (agir). Como se pode imaginar, as possibilidades de aplicação dessas tecnologias são quase infinitas.  

Limites éticos 

Daí o sinal de alerta dos reguladores mundo afora. Se as empresas podem se valer dessa tecnologia, a cada dia mais aprimorada, para incrementar seus negócios, seria fundamental estabelecer limites éticos para isso. Pioneira nesse aspecto é a União Europeia, que já alguns anos trabalha numa proposta de legislação que enquadre aspectos importantes da IA — proposta, aliás, que serviu de inspiração para o PL brasileiro sobre o tema.  

As diferenças, dizem os especialistas, estão em dois pontos principais: os europeus pretendem ser bastante específicos ao tratar dos limites e dos parâmetros da tecnologia e já discutem o tema há anos. Em contrapartida, o texto aprovado pela Câmara dos Deputados é curto e superficial (tem nove páginas, ante cerca de 100 da diretiva europeia). Em entrevista à CNN Brasil, Juliano Maranhão, professor da Faculdade de Direito da USP, diz que o texto do PL 21/20 não estabelece, por exemplo, regras vinculantes (ou seja, obrigações) para a aplicação da IA, apenas princípios éticos (que também estão no projeto europeu). Segundo ele, isso significa que se o PL virar lei, sua aplicação na prática vai depender da interpretação de cada juiz a respeito do que o texto legal estabelece, o que tende a gerar insegurança jurídica. E incerteza num mercado que demanda altos investimentos em pesquisa e desenvolvimento e que está na essência dos negócios de muitos setores não parece auspicioso. 

Em artigo publicado na revista Piauí, Dora Kaufman, professora do Programa de Tecnologias da Inteligência e Design Digital (TIDD) da PUC-SP, observa que a tramitação do PL 21/20 foi exageradamente rápida: em julho estava em comissão especial da Câmara e depois em audiência pública, e já no fim de setembro o texto foi submetido ao plenário. Ela lembra, como parâmetro para comparação, o fato de o Marco Civil da internet ter levado cerca de cinco anos para ser aprovado, o que sugere que foi alvo de um amplo debate entre todas as partes envolvidas. Agora foi bem diferente. Para ela, o texto da IA mais parece uma carta de princípios que, nessa qualidade, deve ter pouca efetividade quando (e se) transformado em lei. Além disso, a pressa impediu que fossem tratadas questões filosóficas sempre presentes quando se trata de máquinas inteligentes. Não por acaso, o partido que votou contra o texto (o PSOL) levantou dúvidas quanto ao ponto do uso dessa tecnologia para reconhecimento facial, o que sem regras específicas poderia resultar em discriminação de determinados grupos sociais. 

De acordo com a deputada relatora, o PL estabelece regras gerais válidas tanto para o setor privado quanto para as empresas públicas, e a ideia é que os sistemas de IA para efeitos de enquadramento legal sejam analisados pelas agências reguladoras de cada setor — Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) para IA aplicada a medicamentos, Banco Central para bancos e demais instituições do mercado financeiro, Agência Nacional de Aviação Civil (Anac) para o setor aéreo, e assim por diante. Um aspecto que, no futuro, pode gerar dúvidas, é o agente de IA que deveria ser responsabilizado por descumprimento do que diz a lei. Seria o desenvolvedor do algoritmo ou seu operador? — considerando que as máquinas podem até pensar, mas ainda não chegaram ao ponto de ter CPF. 

Como se vê, os senadores terão trabalho para decidir o que fazer com o tema, até pelo fato de ser evidente o descasamento entre a velocidade da regulamentação e o ritmo do avanço das novas tecnologias de IA — ponto, por sinal, já destacado pelo Fórum Econômico Mundial e que se aplica a outros segmentos, como o de criptomoedas. Além disso, o mercado sempre pode encontrar maneiras de contornar a legislação — ainda mais num setor criativo como o da inteligência artificial.  



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