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A guerra de narrativas da tributação de dividendos
Entre defensores e críticos, consenso é de que mudança exigiria muito mais debates com a sociedade

Seja em termos de conteúdo ou de procedimentos e prazos para tramitação, polêmica é o que não falta na atual (mais uma) tentativa do Executivo de emplacar uma proposta de reforma tributária. Há temores, críticas e ressalvas para todos os gostos, incluindo um ponto particularmente caro ao mercado de capitais: a tributação de dividendos, valores recebidos por acionistas de empresas que hoje são isentos. No sistema adotado pelo Brasil, válido desde 1996, a carga nesse caso fica concentrada nas empresas, que pagam imposto de renda e contribuição social sobre o lucro líquido (CSLL). 

Diante da reação negativa de agentes econômicos a partir da apresentação do primeiro texto, no fim de junho, o relator do projeto de mudanças do imposto de renda na Câmara, Celso Sabino (PSDB), apresentou um substitutivo que recua em ideias como a de tributar ganhos com vendas de cotas de fundos imobiliários (FIIs). Mas a tributação dos dividendos permaneceu, com a previsão da instituição de uma alíquota de 20%, vinculada a uma contrapartida na tributação da pessoa jurídica. “Esse é um assunto matricial, já que envolve os interesses de boa parte das empresas no País”, observa Luiz Felipe Centeno Ferraz, sócio do escritório Mattos Filho.  

O debate sobre os dividendos pode parecer uma questão secundária, mas na verdade é ponto importante na dinâmica da estruturação do sistema tributário brasileiro. Ele alcança aspectos como o grau de complexidade da cobrança de impostos, taxas e contribuições — no qual se insere a viabilidade da fiscalização do fisco — e a justiça na origem dos recursos arrecadados pelo Estado. 

Nada de simplificação 

No que se refere à simplificação do sistema, um dos princípios que impulsionam a atual necessidade de reforma, o texto “melhorado” do substitutivo ainda não representa avanço, na avaliação da tributarista Ana Carolina Monguilod, do i2a Advogados. “A tributação concentrada na pessoa jurídica é o que de melhor pode ser feito. Cobrar o imposto por meio dos dividendos terá um nível muito maior de complexidade: exigirá, por exemplo, a aplicação de normas que já estavam adormecidas, como as que tratam da distribuição disfarçada de lucros pelas empresas para benefício de determinados sócios, e que envolvem aspectos muito subjetivos. Na prática, será um inferno”, opina a advogada. 

Além disso, destaca, a insegurança jurídica com a criação da cobrança será marcante, tendendo a gerar mais contencioso tributário. “Provavelmente haverá muitos questionamentos da taxação a partir de 2022, inclusive das cobranças sobre os dividendos decorrentes de lucros gerados até 31 de dezembro deste ano. O Supremo Tribunal Federal até já se manifestou contrariamente.” Outro problema, segundo ela, está na falta de transparência quanto aos impactos da tributação sobre a carga tributária que recai sobre empresas e seus sócios. “No início o governo afirmou que a mudança seria neutra em relação à carga, depois admitiu a possibilidade de resultar em aumento”, ressalta. Com o substitutivo, pontua, a combinação de tributação dos dividendos e das alíquotas que recaem sobre as empresas resultaria numa carga de 37% — maior, portanto, que os atuais 34% correspondentes a IRPJ mais CSLL. 

Dissolução de mitos 

Para usar uma expressão em alta nos últimos tempos, a tributação de dividendos está, no Brasil, inserida numa disputa de narrativas — por isso, Monguilod defende a dissolução de alguns mitos sobre o tema. Um deles, talvez o mais arraigado, sustenta que a isenção de dividendos beneficia sócios de empresas — ou seja, segundo esse raciocínio, quem tem participação em empresas não pagaria imposto sobre os rendimentos relacionados, diferentemente de assalariados. “Mas o que importa nesse caso é considerar que essa pessoa física estaria recebendo retorno de um investimento numa empresa depois de a pessoa jurídica já ter recolhido os tributos”, explica. Isso significa que o sócio já estaria pagando tributo, mas por meio da empresa na qual colocou dinheiro.  

Uma alternativa à tributação de dividendos, na visão de Monguilod, poderia ser um modelo combinado — comum em jurisdições internacionais —, em que seriam tributados tanto a empresa quanto o sócio, e com alíquotas que juntas não fossem abusivas. “O sistema brasileiro, de cobrança concentrada na empresa com alíquota alta, é um tanto excepcional”, diz a advogada, reforçando que eventual mudança deveria ser cuidadosa para evitar dupla tributação. 

Um segundo mito, lembra, é o que apregoa a necessidade de o Brasil seguir o que a maior parte do mundo faz. “Todos os modelos têm prós e contras, e eles são escolhidos pelos países conforme suas realidades. Talvez a tributação concentrada nas empresas seja um bom modelo para o Brasil”, diz. Ela afirma não encontrar muita pertinência em comparações que normalmente são feitas entre a carga tributária de outros países e a brasileira, à medida que os contextos são muito diversos. “Em outros lugares, por exemplo, há PIS e Cofins?” 

Tributação indireta 

O professor do Instituto de Economia da Unicamp Guilherme Santos Melo coloca o foco na justiça do sistema tributário brasileiro, remontando um quebra-cabeça histórico. “Pelo menos desde a última verdadeira reforma tributária, entre 1966 e 1967, durante a ditadura militar, o modelo é calcado mais na tributação indireta, do consumo, do que nas cobranças sobre capital. A ideia era favorecer o projeto de desenvolvimento da época”, afirma. Data desse período, por exemplo, o imposto que precedeu o ICMS — um tributo direto cujas características foram sendo deturpadas ao longo do tempo. “Nas últimas décadas, as receitas tributárias foram sendo concentradas na União, com baixa participação da tributação sobre a renda e o patrimônio e elevada fatia dos tributos indiretos.” 

Na mesma linha do “desafogamento” da capacidade de investimento do setor privado, destaca o professor, as mudanças dos anos 1990 foram baseadas na “economia do gotejamento”, tese segundo a qual seria mais eficiente deixar o capital acumular riquezas para que possam gerar retorno para a economia sob a forma de investimentos, empregos e renda. Essa foi, segundo ele, a lógica da isenção dos dividendos com tributação das empresas instituída no Brasil em 1996, ideia que considera superada na maior parte do mundo. “O objetivo da atração de capitais e aumento dos investimentos nunca foi alcançado”, diz Melo. 

Na avaliação do professor, o intuito da tributação sobre a renda é exatamente distribuir renda, algo especialmente importante num país com o alto grau de desigualdade social como o Brasil. “E onde está a renda dos mais ricos do País? Em lucros e dividendos. Por isso defendo a tributação”, afirma, ressalvando não concordar nem com os moldes nem com a pressa da proposta que está no Congresso. Segundo ele, essa mudança — assim como a natimorta ideia de tributar fundos de investimento imobiliário — exigiria um amplo debate com a sociedade, além de previsão de períodos de adaptação.  

Ainda, observa Melo, o foco da reforma da tributação sobre a renda deveria estar na progressividade das alíquotas, para tornar o sistema mais justo. E ele defende que a alíquota de 34% de tributos da pessoa jurídica é mais “estatutária” do que real, já que muitas empresas conseguem pagar bem menos recorrendo ao expediente do planejamento tributário. “Existem muitas brechas para redução dessa carga. Além disso, é preciso considerar que cerca de 95% das empresas brasileiras ou estão no Simples ou recolhem tributos pelo regime do lucro presumido, que têm cargas mais baixas”, completa. 

Embora a reforma tributária seja cercada de expectativas, não parece haver caminho fácil no Congresso para aprovação do texto conforme as vontades do Executivo — até porque o assunto concorre, em temos políticos, com temas quentes como fundo eleitoral e CPI da covid. Considerando o tamanho do impacto das mudanças nos impostos e a pouca (ou nenhuma) discussão com a sociedade, não parece que haveria muitos detratores da ideia de mais um adiamento. E para além de 2022, porque já se sabe que em ano eleitoral não há clima para votações em Brasília. 

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