Um novo BNDES?
Diante da necessidade de ajuste fiscal, banco reduz oferta de crédito subsidiado e abre espaço para o mercado de capitais

um-novo-bndesÉ quase como retirar um vício. A cura envolve um processo lento e doloroso. Mas, se bem-sucedida, pode devolver a vida ao dependente. A metáfora se aplica à redução do dinheiro farto e barato emprestado pelo Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) às companhias abertas brasileiras. E seu benefício deve ser a oxigenação do mercado de capitais. Para que a melhora seja duradoura, mais de um medicamento será necessário, alertam especialistas ouvidos pela reportagem. Segundo eles, mudanças no modelo de concessões e maior segurança jurídica precisam fazer parte do receituário para a retomada.

De 2008 a 2014, o Tesouro Nacional emprestou R$ 416 bilhões ao BNDES a juros subsidiados. Esses recursos permitiram a desmedida expansão do banco — 20% de todo o crédito concedido no Brasil vem dos cofres da instituição. Diante da necessidade de o governo fazer o ajuste fiscal, contudo, a fartura minguou. E o sinal mais notório disso foi o anúncio do banco, no fim de 2014, de que modificaria sua política operacional e reduziria o percentual máximo de participação em projetos de todos os setores. Se antes financiava até 70%, agora pode conceder até 50% ou 30% atrelados à taxa de juros de longo prazo (TJLP), dependendo do segmento.

Isso não quer dizer que o estatal encolherá: ainda tem capacidade de emprestar cerca de R$ 110 bilhões por ano, conforme dados do economista Mansueto Almeida. “O BNDES continuará importante. A diferença é que não terá condições de bancar de 80% a 90% de um projeto a juros subsidiados. Casos como esses serão exceção, e não a regra”, afirma Almeida. O BNDES tinha um saldo de financiamentos da ordem de R$ 612 bilhões em março passado. A título de comparação, no mesmo mês, a carteira de crédito expandida do Bradesco, que inclui, entre outras coisas, avais e fianças, cartas de crédito e antecipação de recebíveis de cartões de crédito, era de R$ 463 bilhões.

Se, por um lado, o mercado de capitais pode ser beneficiado com a redução da concorrência desleal promovida pelos juros subsidiados, por outro, a hora escolhida para a mudança pode não ter sido a mais propícia. “A retirada brusca do BNDES ocorre num momento em que o custo de capital aumentou, há desconfiança sobre a mudança de rumos da política econômica e o ambiente regulatório piorou”, observa Frederico Turolla, sócio da consultoria Pezco Microanalysis. “O BNDES deveria ter se preocupado em fomentar o uso do mercado de capitais durante o período de bonança”, diz. Seu receio é que a nova postura dificulte o financiamento de alguns projetos.

Alessandra Ourique, sócia do escritório Hesketh Advogados, acredita que a redução de recursos será sentida principalmente em setores com baixa regulação. Exemplo é o de saneamento, considerado prioritário pelo BNDES, que financia até 70% de cada obra do tipo por meio de TJLP. Apesar disso, a advogada avalia que, num cenário de maior competição por financiamento, a área deve ter dificuldade de atrair capital privado. Os recursos devem ser direcionados, principalmente, para empreendimentos rodoviários, aeroportuários e de energia.

Sócio da Jardim Botânico Partners e ex-diretor do BNDES, José Luis Osório é mais otimista. Em sua visão, as companhias encontrarão soluções para se capitalizar no mercado, mesmo sob conjuntura econômica desfavorável. Como exemplo de que isso é possível, ele cita o segmento imobiliário, que vem sendo financiado fortemente com recursos privados. E considera que deveria ser proibido o BNDES destinar créditos subsidiados às grandes empresas do País, capazes de obter dinheiro sem a ajuda do governo. Em audiência no Senado em abril, Luciano Coutinho, presidente da instituição, informou que, das 100 maiores companhias brasileiras, o banco apoiou 91; das 500 maiores, 406; das 1.000, 783.

Opiniões à parte, o fato é que será preciso muito dinheiro para financiar todos os projetos de que o País precisa. No ano passado, o setor de infraestrutura recebeu apenas R$ 104 bilhões, o equivalente a 1,8% do Produto Interno Bruto (PIB) — a proporção é similar à de 2003, de acordo com a Pezco Microanalysis. O problema é que esse montante não é suficiente nem para cobrir a depreciação da capacidade instalada. Conforme cálculo do economista Claudio Fritschtak, da consultoria Inter.B, seria necessário investir 4,5% do PIB em infraestrutura.

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Debêntures em cena
Entre os instrumentos do mercado de capitais que mais podem ajudar no financiamento das grandes obras necessárias ao País estão as debêntures incentivadas de infraestrutura. Elas oferecem isenção de imposto de renda para pessoa física e para investidor estrangeiro nos papéis emitidos até dezembro de 2020. Segundo Helcio Takeda, chefe de análise da Pezco Microanalysis, as debêntures incentivadas somaram R$ 5 bilhões no ano passado e representaram 3,5% das emissões dos principais valores mobiliários. O valor ainda é bastante inferior ao valor total emitido em debêntures em 2014, de R$ 70,6 bilhões. Adriano Gabriel Ferreira, advogado do escritório Machado Meyer, destaca que os empreendimentos licitados em 2013 e 2014 devem gerar emissão de debêntures de infraestrutura neste ano ou em 2016. Nas fases iniciais, as obras são financiadas por empréstimos-ponte em bancos privados, de até dois anos.

Há ainda outro incentivo para que as debêntures se tornem o principal mecanismo de financiamento de projetos — do comércio, do serviço e da indústria, neste caso. Para alavancar o uso do mercado de capitais por esses segmentos, o BNDES condicionou parte dos empréstimos concedidos por meio da TJLP à emissão do título. A iniciativa contou com a parceira da Associação Brasileira das Entidades dos Mercados Financeiro e de Capitais (Anbima), que há muito tempo tentava convencer o governo em relação ao potencial do mercado de capitais como fonte de recursos para as empresas. Com Joaquim Levy no comando do Ministério da Fazenda, a conversa enfim deu frutos.

A novidade, a ser detalhadada em breve ao mercado, é voltada a grupos econômicos com receita operacional superior a R$ 1 bilhão e projeto de investimento acima de R$ 400 milhões. A companhia inicialmente obtém um financiamento de 25% do projeto a TJLP. Após comprovar a emissão da debênture corporativa, o percentual com juros subsidiados sobe para 50%. Com o intuito de que se aproveitem as janelas de oportunidades, as emissões poderão ocorrer em até dois anos. “A atuação do BNDES no mercado acionário já é reconhecida. Faltava uma participação maior do banco como originador de operações de renda fixa”, comenta uma fonte do governo que participou das tratativas do projeto. “A ideia com as debêntures corporativas é dar um empurrão aos emissores com perfil para ir a mercado.”

A oferta precisa obedecer alguns critérios. O valor da emissão, por exemplo, tem que ser de pelo menos 25% do montante financiado. Além disso, os títulos precisam ser objeto de oferta pública pela Instrução 400 da Comissão de Valores Mobiliários (CVM); ter a formação de preços por meio de bookbuilding; possuir prazo médio mínimo de quatro anos; e não podem ser resgatados pela companhia até um ano antes do seu vencimento. Embora o foco dessa iniciativa sejam as debêntures, a mesma sistemática é válida caso a companhia venha a captar recursos por meio de certificados de recebíveis do agronegócio e imobiliários e fundos de investimento em direitos creditórios.

Uma estimativa preliminar da Anbima aponta que a medida pode movimentar R$ 5 bilhões nos próximos dois anos. E o montante não é o principal, avalia a presidente da entidade, Denise Pavarina: “O mais importante é a sinalização dada pelo governo de que acredita que o mercado de capitais pode contribuir para o financiamento das empresas”, enfatiza.

um-novo-bndes3Incentivar não basta
Mas o voto de confiança dado pelo governo ao mercado de capitais não será a panaceia que o fará deslanchar, principalmente como financiador das grandes obras nacionais. “Países em que o segmento de infraestrutura é precário oferecem boas oportunidades de investimento, mas não atraem capital pela ausência de estabilidade das regras”, analisa Mansueto Almeida. Diante disso, algumas ações precisam ser tomadas: “Além da redução do papel do BNDES, é necessário estabelecer um marco regulatório mais amigável e fortalecer as agências reguladoras”. Se uma dessas peças faltar, pondera o economista, a solução não sairá a bom termo e a oportunidade de fomentar o uso do mercado de capitais será perdida.

Um possível sinal de que o governo não está alheio a essas questões é o novo modelo de concessões. A previsão era lançá-lo em maio, porém a iniciativa foi adiada. Espera-se que tire o foco da modicidade tarifária (regra pela qual o serviço deve ser prestado pelo preço mais barato possível) e o controle da taxa interna de retorno dos projetos, que acaba afastando os investidores. Nas concessões recentes, o principal critério para escolha do vencedor foi a oferta da menor tarifa, cujo cálculo pressupunha o valor do financiamento do projeto pela TJLP. Agora, o custo de captação no mercado deve entrar na conta, acredita Ferreira, do Machado Meyer.

Na visão do advogado, também seria positivo um fortalecimento das agências reguladoras, de forma a seguirem políticas de Estado e não de governo. Carlos Antonio Rocca, diretor do Cemec (Centro de Estudos do Ibmec) diz que o benefício obtido com a melhora da qualidade regulatória brasileira seria enorme: se ela alcançasse o mesmo patamar computado pelos países emergentes (fosse de 0,15 para 0,33, segundo dados do Banco Mundial), haveria espaço para a queda de 1,34% na taxa de retorno esperada pelos empresários, no cálculo dos economistas Cláudio Frischtak e Armando Castelar Pinheiro.

Embora algumas dificuldades permaneçam, não há dúvidas de que um BNDES mais comedido é excelente para o mercado de capitais. Se sair de baixo das asas do banco não será fácil para as companhias, os ganhos esperados para o País merecem o esforço. De acordo com Rocca, o modelo atual de financiamento via BNDES tem problemas que vão além do aumento da dívida pública e dos aportes do Tesouro: ele não tem equidade, distorce os preços relativos e gera excesso de demanda. “Não há razão para achar que os grandes projetos não podem ser financiados sem o BNDES”, afirma. A boa notícia é que, agora, o governo também parece acreditar nisso.

Ilustração: Grau 180.com.


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