Open banking entre percalços e oportunidades no Brasil
Faltam regulação específica e relacionamento mais alinhado entre bancos tradicionais e fintechs
Open banking entre percalços e oportunidades no Brasil

Ilustração: Rodrigo Auada

Dados bancários, sejam eles cadastrais ou transacionais, pertencem ao cliente e não ao banco. Com essa prerrogativa, o usuário pode autorizar o acesso de terceiros a suas informações financeiras — e é com base nesse pressuposto que funciona o open banking, modalidade que permite a instituições financeiras dos mais variados portes ampliar sua gama de produtos e serviços, por meio do chamado API (sigla em inglês que designa interfaces de programação de aplicativos). A inovação tende a melhorar e a personalizar a experiência digital dos clientes do sistema bancário, e não por acaso tem se popularizado no Brasil.

O Banco Central havia prometido, para dezembro de 2018, uma regulação para a implementação do open banking no País, mas ela não se concretizou. De qualquer maneira, a simples existência de regulamentação não garante a disseminação desse conceito. No Reino Unido, por exemplo, onde a PSD2 (revised payment service directive) está sendo implementada desde o ano passado, bancos e fintechs têm encontrado dificuldades para ampliar o uso de open banking a partir das APIs indicadas pela norma. Além disso, a falta de uma norma específica no Brasil não impede que as instituições financeiras utilizem a tecnologia, apoiando-se principalmente na Resolução 3.401 do Conselho Monetário Nacional (CMN).

O que esperar da regulamentação do open banking no Brasil? Como o Banco Central tem articulado a conversa entre todos os atores envolvidos? Qual a avaliação de bancos e fintechs sobre a tecnologia? Ela é uma ameaça ou uma oportunidade para as instituições financeiras? Quem se responsabiliza no caso de roubo de dados — o banco ou a fintech? Grupo de Discussão promovido pela CAPITAL ABERTO em março de 2019 explorou o cenário do open banking no Brasil. Confira os melhores momentos do encontro, que teve a participação de Alvaro de Carvalho, advogado-sênior e gerente de tecnologia e inovação do BSH Law; Paula Mazanék, diretora de negócios digitais do Banco do Brasil; Marcelo Clara, diretor de tecnologia e operações do Banco Votorantim; Ricardo Taveira, CEO da Quanto; Ingrid Barth, diretora da ABFintechs; e Guga Stocco, CEO da GR1D.

 

CAPITAL ABERTO: Quais são as consequências da inexistência de normas específicas para o open banking no Brasil?

Carvalho: O Banco Central havia prometido que, até o final de 2018, apresentaria uma regulamentação específica para o open banking. Estamos em 2019 e essa regulamentação ainda não está pronta. Então, aplicamos a legislação já existente no Brasil. O grande problema é que ela foi pensada para o “ontem”. Quando tentamos adaptar uma legislação que já existe para algo novo, fica-se dependente da interpretação: de um lado, temos as instituições financeiras, fortemente regulamentadas e fiscalizadas pelo Banco Central e que, por causa disso, atuam de forma bastante restrita; de outro, em geral, há as fintechs, que nunca passaram por regulação e trazem algo inédito, com poucas restrições. Esse cenário faz com que uma norma geral seja interpretada de forma diferente a depender de qual é o tipo de agente envolvido. Além disso, quando as fintechs tentam conversar com os bancos para obter os dados necessários para trabalharem com open banking, acabam encontrando alguma resistência e se veem limitadas em suas atividades — afinal, têm que trabalhar com o que as instituições financeiras concordam em fornecer.

CAPITAL ABERTO: Plataformas continuam sendo criadas e crescem mesmo sem uma legislação específica. Do ponto de vista dos bancos, como a ausência de regulamentação impacta o desenvolvimento de negócios envolvendo a tecnologia?

Mazanék: A posição do Banco do Brasil com relação ao open banking é de que ele gera benefícios para todos os envolvidos. Ele tira os bancos de sua zona de conforto, estimula a inovação e vai fazer com que os serviços prestados aos clientes sejam cada vez melhores. Hoje, somo a única grande instituição financeira com open banking efetivamente implementado. Nos aproximamos desse ecossistema porque entendemos que é possível uma relação de ganho para todos. Não acredito que seja ruim o fato de o Banco Central ainda não ter feito a regulamentação.

Quando se fala de um tema complexo como esse, em que há diversas entidades com diferentes interesses envolvidos, é necessário um debate amplo antes de se soltar uma regulação — do contrário, corre-se o risco de repetição do que ocorre no Reino Unido, onde há dificuldades de implementação. O mais adequado é, primeiramente, ouvir todas as partes — bancos, fintechs e clientes — para que não se criem barreiras. Estamos falando de confrontar o status quo e de criar um modelo diferente de banking, e isso não é fácil de fazer. É preciso ter muito cuidado para não se criar risco sistêmico. O consumidor final precisa ser beneficiado.

Estamos em um processo de aprendizado. Precisamos não apenas nos unir, mas também ter bastante desapego para que tenhamos, de fato, um sistema sustentável. É necessária maturidade, para se deixar um pouco de lado a polarização da concorrência e se cooperar para que o sistema de open banking no Brasil atenda a todos, para que não deixe nenhuma das partes envolvidas com assimetrias em relação ao risco de exposição.

Clara: O Banco Votorantim tem adotado a estratégia de diversificação de negócios por meio de parcerias com fintechs. Claro que há uma questão jurídica e de segurança a ser resolvida, mas o mercado está se construindo, utilizando o que temos hoje em termos de legislação. Faz parte da estratégia do Banco Central, sem dúvida, a desconcentração do mercado financeiro — e isso vem acontecendo. É claro que uma padronização nos ajudaria muito, pois o que fazemos no atual cenário é criar condições para casos pontuais. A regulamentação vai gerar benefícios principalmente no que diz respeito à responsabilização por fraude e à autenticação. É um desafio fazer o mercado todo se integrar de forma a caminhar na mesma direção. Antigamente, o mercado era bastante restrito e fechado; hoje, ele já está muito mais aberto.

CAPITAL ABERTO: Como as fintechs e plataformas veem esse atraso na implementação de uma regulação? Quais os maiores obstáculos para o desenvolvimento do segmento no Brasil?

Taveira: Passamos por uma jornada com alguns desafios de funcionamento jurídico e empecilhos. Na Quanto, começamos desenvolvendo uma plataforma totalmente transacional, pois já queríamos ir para o fim do jogo, já fazer uma coisa operacional. Estamos conversando com o Banco Central desde 2017 e nossa posição é de que o melhor é fazer as coisas de forma comedida e bem pensada, pois o maior risco é de se regulamentar de maneira errada. A experiência britânica precisa, de fato, ser levada em consideração, mas como um case negativo. Como os bancos têm mostrado na prática, a falta de uma legislação específica não é um impedimento. Eles estão saindo na frente e fazendo parcerias, tanto que dão mais poder aos clientes quanto geram novos negócios. Acredito que, sim, a regulamentação vai gerar uma maior segurança jurídica, dar uma regra ao “jogo” e ajudar a distribuir o open banking.

CAPITAL ABERTO: Podem descrever o atual relacionamento de fintechs e bancos quanto ao open banking e a outras novas tecnologias?

Stocco: A relação com as fintechs é uma questão de sobrevivência. O Uber, por exemplo, usa o mapa do Waze. Imagina se o Waze decide não disponibilizar as informações para o Uber e outros aplicativos — ele não vai sobreviver, pois não conseguirá ser competitivo e a sua clientela será insuficiente. As empresas precisam decidir entre fazer parte da funcionalidade ou do ecossistema. Quem tiver os melhores produtos e serviços vai se conectar melhor com os ecossistemas.

Quando olhamos de forma macro, não tem volta: o open banking é essencial. Temos leis do século 19, empresas do século 20 e tecnologia do século 21 e essa conversa é muito difícil. Há problemas e questões táticas para resolver. As fintechs usam tecnologia de última geração a um custo baixíssimo, fornecem serviços totalmente inovadores, mas elas ainda precisam conectar tudo isso com os dados dos usuários. No contexto atual, as empresas não podem se dar ao luxo de esconder informações. Claro que existem muito mais riscos no mundo digital do que no mundo físico, e é por isso que uma regulamentação específica é importante.

Barth: Temos feito alguns levantamentos interessantes na ABFintechs. Estimamos que 50% da população brasileira — isso considerando as pessoas físicas — seja desbancarizada. Esse número diz respeito a pessoas que não têm acesso a nenhum serviço financeiro; quando somada à fatia dos semibancarizados, que usufruem de produtos financeiros incompletos, essa porcentagem chega a 70%. Essas são estimativas, bastante alarmantes, que indicam que alguma coisa não está funcionando direito — e é por isso que levantamos muito a bandeira das fintechs e da acessibilidade. A acessibilidade não é simplesmente o acesso a esses serviços financeiros: tem a ver com o fato de eles serem bons e caberem dentro do orçamento do brasileiro. As taxas de manutenção de contas bancárias podem chegar a 100 reais mensais para pessoas jurídicas, o que é um valor muito alto. Então, algumas pessoas optam por não ser incluídas no sistema financeiro. Ter um cartão de crédito ou de débito, por exemplo, passa a ser uma questão social, de dignidade, de inserção digital.

As startups não são inimigas dos bancos. Qualquer empresa precisa definir o seu público para também definir o seu produto, e muitas vezes esse perfil é bastante específico. É difícil conseguir ofertar uma gama de produtos editáveis a cada público específico: cada perfil precisa de um tipo de empréstimo com tipo de limite, por exemplo. Isso gera deficiências no setor e é justamente nesse ponto que as fintechs se encaixam — é o que chamamos de “oceano azul”. As fintechs são complementares aos bancos. Os números nos mostram que existe mercado para todos os tipos de empresa, por isso precisamos deixar de lado a barreira da concorrência para conseguir implementar o open banking e expandi-lo.

CAPITAL ABERTO: Como a Lei Geral de Proteção de Dados entra na discussão sobre open banking? E a experiência do cliente?

Barth: Acredito que ela pode abrir um caminho muito bom. Claro que há a questão de disponibilização de senhas e dados bancários, mas se o cliente está disponibilizando essas informações — que são dele — para uma grande instituição e quer disponibiliza-las também para outras empresas qual é o problema? Isso gera uma redução de custo no ecossistema. Já trabalhei em um banco de varejo em que havia pelo menos 100 pessoas numa área de onboarding [cadastro]. Imagine o custo envolvido…

O Código de Defesa do Consumidor é aplicável para qualquer empresa, inclusive para as startups financeiras. Se uma pessoa se sente lesada perante algum comportamento de uma fintech, essa fintech vai responder perante a lei. Existe uma lenda de que as startups não estão sujeitas à legislação bancária, mas isso não é verdade. Se você tem clientes e presta serviços financeiros para eles, você será tratado como uma instituição financeira — e vai pagar caso algum de seus usuários se sinta lesado, mesmo que muitas dessas fintechs não tenham capital suficiente para isso.

Mazanék: É muito importante que todos os atores opinem para que essa lei não seja divergente à proposta de implementação do open banking. Sempre nos fazemos a seguinte pergunta: se um cliente autorizou um banco a compartilhar seus dados com uma fintech, houve algum tipo vazamento e um advogado foi acionado, qual será a recomendação desse profissional? Ele vai sugerir que a pessoa entre com processo contra o banco ou contra a fintech? Pois a lógica diz que será contra quem tem mais patrimônio para responder mais rápida e efetivamente. Esse é um fato, não uma lenda, porque as grandes instituições financeiras conseguem indenizar melhor o cliente lesado.

O Banco do Brasil atua em todos os estados do País. Por isso, nos deparamos com algumas realidades que muitos outros bancos podem não conhecer. São Paulo, Brasília e Rio de Janeiro não representam o Brasil como um todo. Nós tínhamos a intenção de que todos os nossos terminais de autoatendimento fossem acessados por biometria, pois é muito mais seguro. Isso gerou numerosas ações do Ministério Público contra o Banco do Brasil, porque existem milhares de brasileiros que não têm digital. Pessoas que trabalham no meio rural, por exemplo, muitas vezes não têm digital, por causa do trabalho pesado. A biometria não funciona para elas. Então, quando falamos de acesso e bancarização, existem tecnologias que podem ajudar, mas nem todas são aplicáveis à totalidade da população. Bancarização envolve muito mais do que tecnologia: existem aspectos econômicos, sociais e inclusive educacionais para conseguirmos fazer com que milhões de brasileiros tenham acesso. Ela não passa somente pela atuação do sistema financeiro, mas também por políticas governamentais.

Clara: As empresas têm trabalhado para colocar o cliente no centro da discussão. Vai “ganhar o jogo” quem conseguir fornecer a melhor experiência, o melhor produto, o melhor processo para o cliente. A tecnologia tem sido a base disso. O Brasil é um país de dimensões continentais e precisamos mesmo pensar em educação digital e financeira. O duplo fator de autenticação, por exemplo, pode ser um empecilho para algumas pessoas: o banco envia um SMS, ou um e-mail, para confirmação e o cliente sequer tem um celular para fazer isso. Temos a mania de acreditar que, porque vivemos em grandes centros e é normal para nossa realidade, todo mundo tem um smartphone — e isso não é verdade. Por vezes, as instituições financeiras tentam fazer produtos e serviços diversos, querem ter todas as soluções, o melhor canal, a melhor experiência. Isso é muito difícil quando se avaliam as questões da segmentação. Temos a oportunidade de nos integrar ao ecossistema de fintechs e de fornecer soluções para todo mundo, pois uma startup do Amazonas, por exemplo, vai entender melhor a necessidade desse estado e criar produtos e serviços customizados para atender a demanda local.


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