Pecados da carne
Como autoritarismo e ganância afundaram a BRF
BRF, Pecados da carne, Capital Aberto

Ilustração: Rodrigo Auada

Sugeriria o bom senso que uma empresa quase arruinada por perdas bilionárias com operações temerárias — e que nada tinham a ver com seu negócio principal — tomasse outro rumo depois de tão traumática experiência, com a adoção de efetivas práticas de governança corporativa que a deixassem longe de uma nova derrocada. Pois os anos mostraram que o estouro da bomba-relógio dos contratos de derivativos tóxicos que lotavam a tesouraria da Sadia há uma década pouco serviu de exemplo para sua sucessora, a BRF. Resultante da aquisição da Sadia, líder de mercado em 2008, pela sua maior concorrente, a Perdigão, a empresa voltou a ser tomada pela ganância dos seus executivos nos últimos anos. Um conselho de administração independente poderia ter brecado a investida, mas, violando uma das regras mais preciosas de governança, o colegiado era presidido por um chairman que mandava e desmanda na gestão — e que, assim, tornou-se cúmplice dos erros da diretoria. Já com os resultados bastante minados por estratégias de curto prazo, a BRF ganhou, recentemente, a chance de virar a página. Em abril, o tarimbado Pedro Parente, recém-saído da Petrobras, foi eleito presidente do conselho de administração no lugar de Abilio Diniz. Sua missão é executar uma tarefa em que é especialista: consertar companhias com o leme quebrado.

A BRF passou a adotar uma estratégia mais financista do que operacional a partir de 2013, quando a gestora de recursos Tarpon e Abilio (donos de cerca de 11% da empresa no primeiro semestre daquele ano), se uniram com a ambição de transformar a companhia na Ambev do setor de alimentos. Como se sabe, o crescimento da empresa de bebidas baseou-se numa política de estritos cortes de custos. Mas na BRF não funcionou: a escolha desagradou antigos fornecedores e fez cambalear as operações industriais. Simultaneamente, a empresa passou a enfrentar os efeitos da intensa recessão, o avanço da concorrência (leia-se JBS), os aumentos dos preços de insumos e a deflagração da Operação Carne Fraca, da Polícia Federal, que chegou a prender um ex-presidente da companhia.

Diante de tanta notícia ruim, não foi surpresa, depois do prejuízo de 372 milhões de reais de 2016 — o primeiro registrado pela BRF —, a ampliação das perdas na sequência. No exercício de 2017, a última linha do balanço ficou negativa em 1,1 bilhão de reais. Foi a gota que faltava para fazer transbordar a paciência dos maiores acionistas da empresa — os fundos de pensão dos funcionários do Banco do Brasil (Previ) e da Petrobras (Petros). Eles exigiram a destituição de todo o conselho de administração, que acabou sendo renovado em 26 de abril, com a condução de Parente ao cargo de chairman. Em 18 de junho, ele passou a acumular a função de CEO global. A acomodação, vale destacar, ocorre após muita briga entre os acionistas — outro traço que parece herdado da finada Sadia, em que durante muito tempo parentes digladiaram para decidir a trajetória dos negócios.

 

Empresa virada do avesso

Detentores de 22% do capital da BRF, os fundos de pensão, no início de 2018, não abriam mão da saída de Abilio, que havia cinco anos ocupava o cargo de chairman. A mudança de postura da Previ é notável, já que inicialmente apoiara a articulação de Abilio com a Tarpon para elevar a lucratividade da BRF por meio de cortes de custos, reestruturação de processos e mudanças em cargos de gestão. Abilio e Tarpon desenharam o plano em abril de 2013. O modelo contrastava sobremaneira com o anterior, comandado por Nildemar Secches, executivo à frente da fusão que resultou na BRF e que por 15 anos liderou a Perdigão. Os novos parceiros ativistas consideravam o estilo de Secches pouco agressivo, característica que, na visão deles, impedia a BRF de se tornar uma companhia mais ágil e eficiente.

Nos primeiros anos após a mudança, os acionistas pareciam não ter o que lamentar, apesar de literalmente a companhia ter sido virada do avesso. Da posse de Abilio até agosto de 2015, o valor de mercado da BRF saltou cerca de 50%, atingindo o recorde de 60 bilhões de reais. Já o lucro passou dos 770 milhões de reais em 2012 para 3,11 bilhões de reais em 2015, com margem operacional avançando de 5,2% para 13,1%. A estratégia era tornar a companhia mais orientada ao cliente e ao consumidor final, em detrimento do processo agroindustrial — uma revolução em relação ao que por décadas foi a postura de Sadia e Perdigão. Os novos chefes queriam dar mais importância ao reforço de marcas e à inovação dos produtos em vez de manter os estreitos laços com os pequenos fornecedores.

“O plano na teoria era muito bom, pois focava produtos de maior valor agregado, saindo um pouco das commodities. O problema é que a operação da BRF tem uma cadeia produtiva longa e cheia de realidades distintas”, destaca um executivo que trabalhou na empresa durante a mudança de diretrizes. “Entre o projeto ambicioso e a sua execução, muitas coisas acabaram ficando perdidas no meio do caminho”, analisa. Segundo o professor de finanças corporativas da FGV-Eaesp Oscar Malvessi, a empresa repetiu, de certa maneira, um erro semelhante ao que derrubou a Sadia. “Caiu na visão financista de curto prazo. Não acreditou no que faz de melhor [o processamento de alimentos]”, compara. (Leia também coluna Governança sobre o assunto)

O erro de estratégia ficou estampado não só no balanço, mas também no valor de mercado da companhia. Em 24 de fevereiro deste ano, a BRF valia em bolsa cerca de 23 bilhões de reais, uma queda de 62,2% em relação ao pico de 2015; as ações estavam na menor cotação em quase sete anos. Com números tão ruins, os fundos de pensão finalmente abriram os olhos. “Infelizmente, a estratégia de gestão implementada até o momento não surtiu os resultados desejados. É preciso reformulá-la para, assim, a companhia superar os grandes desafios que precisa enfrentar”, afirmou o diretor de investimentos da Petros, Daniel Lima, em comunicado conjunto com a Previ, em que pediam a troca de todo o conselho. As duas fundações ingressaram na Perdigão em 1994 e com a fusão tornaram-se os maiores acionistas da nova empresa.

 

Sócios em guerra

Estavam, assim, traçados os contornos de duas batalhas: uma para a troca do conselho presidido pelo aguerrido Abilio na assembleia de abril e outra para tirar a companhia do buraco. E isso tudo em meio à deflagração de nova etapa da Carne Fraca (Trapaça), tiro certeiro no principal aliado de Abilio, a Tarpon, cuja sede foi vasculhada por policiais federais no início de março de 2018. Entre os detidos na Trapaça, Pedro Faria, sócio da gestora e CEO da BRF entre 2015 e 2017 (conduzido ao cargo por força de Abilio). Ele passou quatro noites preso.

Poucas horas depois da prisão de Faria, conselheiros compareceram a uma reunião que já havia sido agendada antes da nova fase da Carne Fraca e decidiram postergar a assembleia geral ordinária de 5 de abril para o dia 26, em Itajaí, cidade catarinense em que a companhia está sediada. As semanas que separavam as duas datas seriam cruciais para as articulações tanto de Abilio quanto de seus oponentes. Para os maiores investidores, como fundo britânico Aberdeen (5% das ações da BRF), a ordem era a seguir as fundações e garantir a destituição do grupo ligado ao empresário. Acuado, ele tentou montar uma chapa alternativa à proposta pelos fundos, tendo à frente Luiz Fernando Furlan, ministro do Desenvolvimento no governo Lula e um dos herdeiros da antiga Sadia mais atuantes no cotidiano da BRF. Já os fundos anunciaram inicialmente que queriam para a cadeira de chairman Augusto Cruz, ex-presidente do Grupo Pão de Açúcar e notório desafeto de Abilio. Uma fonte que acompanhou de perto todo esse processo, no entanto, diz que a chapa de Abilio era natimorta — situação que ficou ainda mais evidente quando avançaram as tratativas para que o novo chairman na verdade fosse Parente. De fato, na assembleia de 26 de abril uma chapa única encabeçada pelo ex-presidente da Petrobras foi ratificada. Os fundos haviam trocado Cruz por Parente, batendo Abilio nas jogadas de bastidores.

 

Primeiro passo para a recuperação

O consenso em torno do novo chairman foi um primeiro alívio. Era enfim chegada a hora de mexer nas estruturas para reerguer a empresa. O mercado aprovou o desfecho do imbróglio relacionado ao conselho — talvez até exageradamente, já que as ações subiram 23,4% nos dez dias entre a indicação de Parente e a confirmação de seu nome. “A eleição de um conselho apropriado e coerente é apenas o primeiro de muitos passos necessários”, escreveram em relatório a clientes os analistas do BTG Pactual Thiago Duarte e Vito Ferreira, logo após a eleição do executivo. “Ele [Parente] põe fim a uma disputa improdutiva entre os grupos de acionistas e traz uma credibilidade relevante, no momento em que a empresa passa pelo escrutínio público da Carne Fraca e com os sócios exigindo foco e unidade.” Esses dois aspectos são fundamentais para a estabilidade da companhia, que, nos últimos anos, sofreu com diversas mudanças no alto comando. Levantamento do BTG mostra que (já considerando a presença de Parente como chairman e CEO) da ficha da BRF de 2012 a 2018 constam cinco CEOs globais, quatro CFOs e cinco CEOs no Brasil — e a conta não inclui a rotatividade de cargos de gerência sênior ou média, inevitável em situações de mudanças no andar de cima. “Nunca tinha visto nada parecido”, diz Malvessi, sobre as constantes trocas. “Qual é a visão de longo prazo que essas mudanças agregam?”, diz, reforçando que, dessa forma, os valores e a cultura da companhia acabaram se esvaindo.

Até sair da Petrobras, em junho, Parente acumulava a presidência da estatal com o cargo de chairman da BRF. Ao deixar a petroleira, passou a ocupar temporariamente também a posição de CEO global da BRF, substituindo José Aurélio Drummond Júnior — seu último dia na empresa foi 23 de abril, após apenas quatro meses no cargo. Ele havia sido eleito com o voto de minerva de Abilio, seu aliado, num pleito que dividiu ainda mais o conselho de administração. Segundo informado por meio de fato relevante publicado em 14 de junho, Parente atuará como chairman e CEO global inicialmente por seis meses. No entanto, uma alteração nas regras de governança da BRF que permita a extensão do prazo está em vias de aprovação. A ideia seria encontrar, sem pressa, um novo presidente global para a companhia.

“O conselho nunca deve entrar no dia a dia da gestão, apenas ter um entendimento do negócio, mas sem colocar a mão na massa”, afirma o diretor da CFA Society Brazil, Luiz Fernando Affonso. Ele é crítico do acúmulo de posições, que fere a isenção e a independência necessárias para o desenvolvimento da governança — sobretudo de uma empresa com estrangeiros compondo grande parte de seus acionistas, como é o caso da BRF. Mas neste momento em que é necessário “apagar incêndios”, o acúmulo acaba sendo compreensível, pondera. Diante disso, defende “um reforço de governança mais para a frente”.

Em sua última aparição oficial como chairman da BRF, por ocasião da divulgação dos resultados do encerramento do ano passado, Abilio admitiu sua culpa. “Nesses últimos tempos, eu diria desde meados de 2016, tenho sido muito mais protagonista do que deve ser um chairman. Tenho razões para isso e não me arrependo. Foi o melhor que poderia fazer para a empresa, tendo realmente participado mais ativamente”, disse durante teleconferência com analistas e investidores, em 23 de fevereiro.

“Essa situação mostra como a linha entre a responsabilidade do conselho e do executivo começou a ficar menos clara na BRF. Com a ambição de crescer, valorizando o preço das ações e alavancando o lucro, isso acabou ficando de lado”, diz um profissional que atuou na governança da companhia. “Após anos como executivo, Abilio não perdeu o cacoete de participar ativamente da gestão. O ideal é que o conselho faça apenas o monitoramento das ações da diretoria”, acrescenta o especialista em governança corporativa Renato Chaves, ex-diretor de participações da Previ.

A postura da Tarpon, de influenciar as decisões da companhia, foi igualmente relevante para o desastre da BRF. “Eles não queriam ser só investidores; pretendiam ser executivos, montando estratégias no conselho para depois implementá-las. Isso não é muito normal entre investidores institucionais. É uma questão de estilo, que pode ou não dar certo. Nesse caso, não deu”, reforça um gestor, que preferiu não ser identificado. Uma fonte próxima ao conselho da BRF observa que foi a primeira vez que se viu no Brasil uma grande empresa de controle pulverizado passar por uma crise tão relevante. “É incrível como um pequeno grupo foi capaz de provocar tamanho estrago, tomando decisões como fossem donos da empresa, à custa de tantos investidores”, critica, lembrando que outras companhias de controle pulverizado estabeleceram mecanismos de governança que impedem a criação de um bloco “informal” de controle, como a Lojas Renner e a Vale.

Já dedicado exclusivamente à BRF, Parente anunciou em 29 de junho suas primeiras medidas, que incluem o foco nos mercados do Brasil, de países muçulmanos e da Ásia, com desinvestimentos na Argentina, na Europa e na Tailândia. Também serão alienados ativos imobiliários, não operacionais e participações minoritárias. A empresa pretende levantar cerca de 5 bilhões de reais com essas ações, de forma a encerrar este ano com uma relação entre a dívida líquida e o Ebitda de 4,35 vezes (reduzida a 3 vezes em 2019). Outra iniciativa é readequação da estrutura produtiva à nova realidade do mercado, com diminuição de 5% do quadro de funcionários. Um lay-off (suspensão temporária de contrato de trabalho), bastante comum na indústria automobilística, também foi anunciado, em 11 de julho, atingindo 1,4 mil funcionários por cinco meses. O objetivo é reajustar os estoques à demanda. Ansiosos, os investidores esperam que desta vez as lições tenham sido aprendidas e que o fantasma da Sadia fique em 2008, de onde nunca deveria ter saído.


Leia também:

Sonho frustrado 

O caso Sadia – Parte I

O caso Sadia – Parte II


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