Embora bem-intencionada, MP 881 sofre com inconsistências
Governo propõe mudanças para desburocratizar atividade empresarial, mas esbarra em críticas e tempo escasso
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Ilustração: Rodrigo Auada

O pacote chegou há pouco mais de um mês, de surpresa, embrulhado numa espécie de declaração de direitos de liberdade econômica para o setor privado. A Medida Provisória (MP) 881 foi assinada em 30 de abril pelo presidente Jair Bolsonaro, apresentando mudanças amplas que abarcam do Código Civil à Lei das S.As. As alterações pretendem, segundo o governo, desburocratizar sistemas para as empresas (principalmente para as de pequeno e médio portes) e reduzir a interferência do Estado nas atividades empresariais. A intenção tem seu mérito, mas ao lado dos pontos positivos do pacote profissionais dos mercados financeiro e de capitais identificaram problemas que envolvem inconsistências conceituais e imprecisões de texto. Isso sem falar na provável dificuldade de tramitação que a MP enfrentará em um Congresso que ainda não se acertou nem para avaliar a proposta de reforma da previdência, apresentada pelo Executivo em fevereiro. Para se tornar lei, a MP 881 precisa ser aprovada no Legislativo num prazo de 120 dias a partir do dia seguinte à edição — ou seja, 1º de maio. A comissão mista encarregada de discutir o texto ainda não foi instalada.

À parte essa corrida contra o tempo, a MP, que não estava no radar do mercado, foi bem recebida nos pontos em que prevê simplificação do mercado de capitais. Alguns dos 19 artigos da medida têm intersecção com o setor, incluindo mudanças reivindicadas há anos, como a permissão para que sociedades limitadas tenham apenas um sócio e a criação de uma regra legal específica para os fundos de investimento. Nesse particular, o texto inclui no Código Civil um capítulo para tratar dessas entidades, definindo fundos de investimento como “uma comunhão de recursos, constituída sob a forma de condomínio, destinada à aplicação em ativos financeiros”. O novo capítulo estabelece a possibilidade de responsabilidade limitada para investidores — ou seja, na hipótese de um fundo ficar com patrimônio líquido negativo, os cotistas não serão chamados a aportar novos recursos para que ele retorne a nível positivo — e delimita os papéis de administradores, gestores e custodiantes.

Atualmente, apenas os fundos imobiliários têm lei específica (8.668/93); o funcionamento de todas as outras modalidades ainda depende de regras infralegais, como instruções da Comissão de Valores Mobiliários (CVM) e resoluções do Banco Central (BC). “A medida procura desfazer as confusões de papéis que ainda existem quando se trata de fundos de investimento. Com a atualização, a estrutura dos fundos brasileiros fica mais próxima da adotada em outros mercados”, comenta Marina Procknor, sócia da área de fundos de investimento do Mattos Filho Advogados. Quanto à responsabilidade, vale observar que o texto da MP diz que os fundos “poderão” optar pela limitação em seu regulamento — não sendo um dever, portanto, caberá ao investidor observar as políticas específicas de cada instituição. “A percepção geral é de que a MP representa avanços em alguns aspectos, como a proteção aos cotistas de fundos de investimento”, diz Daniel Kalansky, presidente do Instituto Brasileiro de Direito Empresarial (Ibrademp) e sócio do Loria e Kalansky Advogados.

Dificuldades práticas

A MP 881 também trata dos mecanismos de acordos comerciais, com atualizações do Código Civil na seguinte linha: “a revisão contratual de forma externa às partes será excepcional”, ponto que deriva de um “princípio da intervenção mínima do Estado” — em outras palavras, as partes envolvidas devem lidar elas mesmas com as divergências em torno de contratos já acertados, potencialmente incluindo os de operações de joint ventures e de M&A. “A medida pode representar segurança jurídica, já que ficaria mais difícil a alteração de acordos”, avalia Bruno Cerqueira, sócio de mercado de capitais e securitização do Tauil & Chequer Advogados. Mas a MP esbarra em problemas de aplicação prática. Tome-se o exemplo do artigo 423, adicionado pela MP ao Código Civil. Ele estabelece que a dúvida na interpretação de um contrato beneficia a parte que não redigiu a cláusula que estiver sendo contestada. Na vida real, todavia, a situação é mais complexa. “Em contratos em que há diversas revisões e discussões entre as partes até que o texto final esteja plenamente acabado, é difícil determinar o autor original de uma cláusula”, destaca Ana Paula Reis, advogada da área de societário e M&A do BMA Advogados. Para que a autoria fosse preservada, as partes precisariam arquivar todas as versões do contrato — prática que claramente se contrapõe à ideia de desburocratização que serve de base para a MP. A viabilidade dos recém-criados artigos 480-A (que permite às partes contratantes estabelecer como interpretar requisitos de revisão contratual) e 480-B (que pressupõe a simetria dos contratantes) também é questionada. Essas regras se chocam com objetivos de proteção da concorrência previstos na Constituição e na Lei do Cade, uma vez que eventualmente impossibilitariam a anulação de contratos resultantes de abusos de poder econômico em situações de monopólio ou oligopólio.


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Outro artigo adicionado ao Código Civil pela MP 881, o de número 50, igualmente foi criticado por detalhes que podem colocar a perder disposições supostamente bem-intencionadas. O trecho trata de requisitos para a desconsideração da personalidade jurídica, dispositivo que permite ao Judiciário responsabilizar proprietários por deveres descumpridos por sua empresa — normatização que vale apenas no âmbito cível, não tendo implicações trabalhistas e tributárias. Conforme a MP, o abuso da personalidade jurídica é caracterizado pelo desvio de finalidade — “utilização dolosa da pessoa jurídica com o propósito de lesar credores e para a prática de atos ilícitos” — ou por confusão patrimonial — configurada pelo cumprimento, pela empresa, de obrigações do sócio ou do administrador e também pela “transferência de ativos ou de passivos sem efetivas contraprestações, exceto o de valor proporcionalmente insignificante”. O caráter vago desse último trecho, entretanto, gera dúvidas. Afinal, como determinar o que seria um “valor proporcionalmente insignificante”? Uma das principais críticas está relacionada ao risco de esse conceito “aberto” abrir brechas para desvios de conduta, incluindo caixa dois. Mais uma indefinição reside no fato de que, embora o artigo 50 mencione parâmetros que serviriam para a aplicação da desconsideração da personalidade jurídica, outra modificação no Código Civil proposta pela MP estabelece que somente o patrimônio social da empresa responderá por suas dívidas, que não poderão ser confundidas com o patrimônio do seu proprietário, “ressalvados os casos de fraude”. Dessa forma, toda a definição anterior fica esvaziada.

Carência de debate

A ambiguidade em alguns trechos, bem como a redundância de certos pontos em relação a regras já existentes, gera preocupação sobre eventual dificuldade na aplicação das normas. Um exemplo de redundância está no segundo artigo, que trata dos princípios que norteiam a MP 881. Além de afirmar o respeito à “liberdade no exercício de atividades econômicas” e à “intervenção subsidiária, mínima e excepcional do Estado”, ele estabelece a “presunção de boa-fé do particular”. A questão é que esses fundamentos — sobretudo o último — já estão no Direito brasileiro. “Todo o código brasileiro já é baseado em presunção de boa-fé. Essa nova inclusão gera confusão com a jurisprudência que já existe sobre o conceito para os entes privados”, observa Carlos Portugal Gouvêa, sócio do PGLaw e professor da Faculdade de Direito da USP, responsável pela redação de emendas no Congresso. Ele também salienta a contradição entre o fato de a MP estabelecer, em seu quinto artigo, a necessidade de que as propostas de alteração de atos normativos sejam precedidas de análise de impacto regulatório (para verificação de reflexos econômicos decorrentes da mudança) e estudo do tipo não ter sido elaborado antes de a divulgação do próprio texto da medida provisória.

Para o mercado de capitais, deve ter impacto regulatório significativo a mudança na Lei das S.As. determinada pela MP para permitir que a CVM dispense exigências legais de empresas que ela classifique como de pequeno e médio portes. O trecho recebeu elogios quanto à intenção de incentivar negócios menores a captar recursos no mercado de capitais, mas teve sua legalidade questionada. Isso porque não caberia à CVM reduzir exigências da Lei das S.As para facilitar o acesso de pequenos e médios empreendedores ao mercado. O Legislativo é que deveria exercer essa tarefa. “Essa delegação de poderes vai totalmente contra o Estado democrático de direito. Se tivesse havido debate, como historicamente ocorre antes da proposição de uma MP, esse tipo de insegurança provavelmente não estaria no texto”, afirma Gouvêa.

Diante da ausência de ampla discussão anterior, o foro para reclamações e sugestões foi transferido para o Congresso. Na semana pós-edição, a MP recebeu nada menos que 301 emendas de deputados federais e senadores propondo edição ou exclusão de trechos — grande parte refletindo dúvidas levantadas por especialistas. Embora seja difícil fazer prognósticos sobre o posicionamento do Congresso no atual ambiente político, a expectativa é de que alguns pontos da MP dificilmente passarão pelos parlamentares sem modificação. Um bom exemplo é a extinção do fundo soberano do Brasil (FSB), espécie de poupança pública criada em 2008 pelo governo Lula para amenizar efeitos de crises externas sobre o País — a mudança está no cerne de muitas das emendas apresentadas. Quanto aos outros artigos, estão abertas as apostas: tudo pode acontecer, considerando o tempo limitado até que a MP caduque e a quantidade de pautas relevantes que se acumulam nas gavetas do Congresso.


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