Embora “disrupção” (ainda) não integre formalmente a língua portuguesa, é impossível falar sobre o Uber sem usar esse termo. A trajetória da companhia tem todos os traços de uma narrativa de ficção, cujos personagens são fundadores, ex-funcionários, investidores e inocentes usuários do serviço — todos nós. Independentemente de sua relação com o negócio ser de amor ou ódio, é inegável que o Uber é protagonista em um movimento que transformou o transporte e o cotidiano nas cidades no mundo inteiro.
Em Super Pumped: The Battle for Uber, a história dessa startup do Vale do Silício e de seu controvertido fundador, Travis Kalanick, é narrada pelo repórter de tecnologia do jornal The New York Times Mike Isaac, que descreve uma verdadeira montanha-russa de conquistas, excessos e reviravoltas. Uma das primeiras startups a ser chamada de “unicórnio” (o termo foi usado pela primeira vez em 2013), o Uber não apenas desafiou um setor marcado por práticas antiquadas, altamente regulado e politicamente conectado nas cidades: ele literalmente destruiu o status quo.
O livro se apoia na cronologia do desenvolvimento do negócio, mas tem várias dimensões. Existe o lado humano dos principais personagens, quase minibiografias para explicar como pensavam os atores quando tiveram cruzados os seus destinos. Como repórter de tecnologia que acompanhou o florescer da empresa, o autor ressalta o aspecto tecnológico e as repetidas mudanças de direção (“pivô”, no jargão tecno) para demonstrar a criatividade e perseverança dos empreendedores vencedores. E, por fim, destrincha também o lado sombrio da cultura de “frat house”¹, a agressividade com os competidores e a completa falta de respeito por leis e regulações consideradas monopolistas e antiquadas. Mas os mesmos elementos que alçaram a empresa ao sucesso estratosférico acabaram contribuindo para a queda meteórica de seu fundador.
A grosso modo, na indústria de venture capital, a relativa escassez de capital conferia maior poder de negociação aos investidores até cerca de 2010. Nessa época, a balança começou a pender para o lado dos empreendedores, à medida em que os fundos de venture capital levantaram volume recorde de recursos e temiam ficar de fora dos potenciais unicórnios. Kalanick é um representante dessa safra de fundadores, que comandam suas empresas com status de “líder de culto” e negociam termos antes inimagináveis com investidores (leia-se ações com direitos de voto que são dez vezes os das ações ordinárias). O sistema de pesos e contrapesos típico da boa governança estava literalmente desativado por seu poder sobre o conselho de administração, mas foi exatamente essa arrogância que levou à queda do “Rei Sol”.
Uma série de escândalos em sequência, iniciados por um relato despretensioso de uma ex-funcionária, expôs a cultura tóxica em que os assédios de caráter moral e sexual eram aceitos desde que as metas fossem alcançadas. Aquilo foi demais mesmo para os investidores que até então haviam idolatrado Kalanick: eles orquestraram um verdadeiro “golpe de estado”. O resto da história pudemos ler nos jornais: a empresa abriu o capital, seu fundador ficou bilionário, e, no epílogo, vendeu o restante de suas ações em dezembro de 2019, separando criador e criatura. Como disse um ex-funcionário, “ninguém diz não ao líder do culto”. Até que o os fiéis percam a fé.
Super Pumped: The Battle for Uber
Mike Isaac
- W. Norton & Company
410 páginas
1a edição ― 2019
Peter Jancso é sócio da Jardim Botânico Investimentos e conselheiro independente
Notas
1“Fraternity house” é o que conhecemos no Brasil como “repúblicas”, casas que reúnem jovens universitários
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