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Os riscos do “tradismo” na era Bolsonaro
Cientista político alerta para os perigos da visão de curto prazo do mercado e de um alto grau de “pessoalidade” na economia
Mercado brasileiro sob a lógica do tradismo

Carlos Melo | Ilustração: Julia Padula

O professor de Sociologia e Política, de estratégia e de relações governamentais Carlos Melo, do Insper, achou sugestiva uma informação publicada recentemente na imprensa. Segundo a notinha, o público que lotava um recente evento do banco Credit Suisse foi sumindo à medida que Persio Arida, Gustavo Franco e Arminio Fraga criticavam o minguado liberalismo do governo Jair Bolsonaro.

Sugestiva porque Melo tem percebido que agentes do mercado financeiro vêm se comportando quase que “religiosamente” na defesa das apostas que fizeram na cruzada do ministro da Economia, Paulo Guedes. “Participei de seminários com Guedes, que foi recebido emotivamente pelo público”, relata Melo, um interlocutor tanto de grandes banqueiros tradicionais quanto de esquerdistas radicais. Para ele, os atores políticos e econômicos devem ser tratados com distanciamento, não com emoção. “Como disse o filósofo racionalista Baruch Spinoza: nem o riso nem a lágrima; apenas o entendimento. Isso serve para a Filosofia, mas também para a Economia. É importante encarar os atores políticos e econômicos com um certo distanciamento, sem transformar ninguém em ícone.”


Melo atribui a confiança do mercado no propalado liberalismo do governo Bolsonaro a três elementos: o ressentimento com os erros do governo Dilma Rousseff; o apego a uma certa doutrina disseminada em livros de Economia; e a propensão dos investidores a se concentrarem na compra e venda de ativos no curtíssimo prazo, fenômeno que denomina de “tradismo”.

Segundo ele, é inegável que Dilma cometeu “erros crassos” na condução da economia, como intervenção no setor elétrico, desonerações inúteis, política das empresas campeãs nacionais do BNDES e, mais importante, redução dos juros “na marra” num momento em que havia a perspectiva de volta da inflação. “Foi uma série de desatinos, frutos, também, de uma paixão ideológica que amedrontou e deixou o mercado ‘dolorido’. É compreensível.”

Interessante é lembrar que, mesmo sob Dilma e seus erros, o mercado baseava o otimismo de então a dados positivos, como o desemprego em queda e os altos saldos da balança comercial. Também apostou no ministro da Fazenda do início do segundo mandato, Joaquim Levy, mesmo quando a presidente o desautorizava. Da mesma forma, confiou firmemente no titular da pasta no governo Michel Temer, Henrique Meirelles. “O mercado se aproveita desses momentos porque segue a lógica do ‘tradismo’: comprar na baixa e vender na alta. Nesse processo de troca frenética de posições, o agente faz escolhas que precisa justificar, não só para seus clientes, mas também para si mesmo”, diz. Em outras palavras: quando quer acreditar, o mercado acredita piamente.


Confiantes na sua formação acadêmica, os operadores buscam amparo na ideologia liberal da literatura econômica, que prescreve a mesma receita para todas as nações — da Alemanha ao Zimbábue, da Holanda às Filipinas —, sem considerar as óbvias diferenças culturais, condições objetivas e formações históricas. Melo recorda o relato de uma discussão entre o embaixador Walter Moreira Salles e um interlocutor que criticava ter sido a Petrobras criada pelo governo e não pela iniciativa privada. O diplomata, empresário e banqueiro (fundador de um dos bancos que deram origem ao Unibanco) retorquiu, dizendo que o empresariado brasileiro não dispunha de renda suficiente para um empreendimento daquela envergadura, só mesmo o Estado. “Há condições e momentos em que o Estado precisa intervir e outros em que precisa ficar de fora. Da mesma forma, não existe um tamanho ideal de Estado. É como disse Aristóteles: a virtude está no equilíbrio, no meio entre o zero e o infinito.”

Para Melo, o fato de o mercado ter interesses próprios é natural e legítimo. “O mercado se alinha à política conforme seus valores e sua agenda. E pode sim ser um colaborador quando há sintonia com o governo”, ressalta. Mas ele insiste que o cerne da questão reside numa visão de curto prazo em detrimento do longo prazo, um foco na interpretação de curvas e gráficos sem maior atenção aos precedentes.

O professor critica seus colegas analistas preocupados em dizer apenas o que o mercado quer ouvir, para não se indisporem com os clientes e que, assim, reforçam o viés. Às vezes essa prática condescendente erra o alvo.  “Uma vez, Pedro Moreira Salles [um dos herdeiros do Unibanco e hoje chairman do Itaú] me disse: ‘Essa é a coisa que eu mais detesto. Não preciso de ninguém para me dizer o que eu conheço bem!’”.

O complicado é que a intransigência dessas análises denota uma incompreensão de que a democracia é um ativo econômico. “A economia precisa de regras, de instituições estáveis e de previsibilidade, que são estabelecidas por um ambiente democrático saudável”, alerta. “A economia não pode ter um alto grau de ‘pessoalidade’, depender do humor de fulano, sicrano ou beltrano”, salienta Melo, advertindo que “arroubos” decisórios característicos de dirigentes personalistas como Bolsonaro e Trump, em geral, implicam escolhas erradas que precisam ser revistas posteriormente, e com altos custos. Tais marchas e contramarchas poderiam ser evitadas se fossem respeitados os métodos, os ritos, os debates e a formação de consensos que caracterizam a democracia. “Essa história de que, se depender do Congresso serão anos para se aprovar uma medida, não leva em consideração que, conforme o assunto, tem mesmo que levar anos. Não sou eu, não é você, não é um garoto ou um senhor que vai decidir: é a sociedade.”


A democracia é ainda mais importante neste momento de revolução tecnológica, diante da qual é imprescindível a coordenação do Estado. Esse pensamento é defendido pelo prêmio Nobel de Economia Douglass North. Ele argumenta que as instituições servem para coordenar e estabelecer cooperação. “Sem isso sobrevém o caos, como resultado da ansiedade, da aflição e da pressa que só tendem a piorar as coisas em vez de restabelecer a ordem.”

Melo vislumbra na inação dos governos o desdobramento das políticas ultraliberais de Ronald Reagan e Margareth Thatcher. No início da década de 1982, o presidente dos EUA e a primeira-ministra do Reino Unido espalharam a mensagem de que o Estado deveria ter uma participação limitada na economia. Era o empurrão que faltava para retirada de recursos do Estado e mudança de política tributária para privilegiar os ricos — alegava-se que, tendo que pagar menos impostos, investiriam mais em inovação tecnológica. Deu certo até que faltou coordenação e, como consequência, a bolha do subprime nos EUA explodiu. “Para se ter uma ideia, na época, quem comandava o Reino Unido era o Gordon Brown, um contador! Ou seja, não havia política.”.

A tentativa de se reconstruir a política, com atores como o presidente Barack Obama, naufragou diante do vertiginoso progresso tecnológico e o consequente sumiço de muitos empregos. As pessoas ficaram inseguras e acabaram optando por soluções autoritárias, personalistas. “O problema é que a tentação de recorrer a alguém para dar jeito na situação — Trump, Salvini [Itália], Erdogan [Turquia] e Bolsonaro — não resolve, porque a referência dessas personalidades é o passado, não o futuro. E não há solução no passado”, alerta Melo.


Voltando ao cenário brasileiro, o professor do Insper vê um aspecto positivo, ainda que por linhas tortas, da tensão entre um Executivo personalista e de viés autoritário e um Legislativo que está assumindo suas funções. “Positivo porque tanto o Legislativo quanto o Executivo precisarão fazer política. Não no sentido de distribuir recursos e cargos, e sim de debater ideias.” Nesse processo, é importante, entretanto, que o Congresso não eclipse o Executivo, nem o Judiciário confronte o Legislativo. “Todos devem ser fortes, mas cada um com suas devidas prerrogativas”, avalia Melo.

Ele também adverte que nenhuma agenda econômica, liberal ou qualquer outra, pode prescindir de uma articulação com outras áreas do governo e da sociedade. Não se pode simplesmente olhar para o Ministério da Economia e ignorar os ministérios da Agricultura (“uma vocação brasileira”), de Relações Exteriores, de Ciência e Tecnologia, do Meio Ambiente e da Educação. “O que vai preparar nossos filhos e netos, se nossa educação não serve mais ao mundo atual?”, lamenta.

Em meio a todas essas complexas questões, o governo — e o mercado a reboque — enfrentará seu primeiro desafio nas urnas neste ano. O segundo turno das eleições municipais de 2020, observa Melo, mostrará se o antipetismo continua forte, o que é uma sinalização relevante para 2022. Mas a chave dessa questão estará nos nulos e brancos. Em 2018, 30 milhões de eleitores não votaram em ninguém. Se esse contingente permanecer neutro, a polaridade continuará e o eleitorado se verá mais uma vez obrigado a votar no que entende como o menor dos males. Já se esses eleitores entrarem, destaca o professor, o jogo será outro. “Hoje, já se ouve muita gente dizer que errou, para qualquer um dos lados”, afirma. Agora resta saber se a política será capaz de trazer essas pessoas de volta.


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tradismo, Os riscos do “tradismo” na era Bolsonaro, Capital Aberto


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