Em linha com a estratégia do governo para transformação digital, a CVM colocou em audiência pública uma minuta de instrução que dispõe sobre as regras do ambiente regulatório experimental, mecanismo conhecido como sandbox regulatório.
A primeira discussão a respeito do tema de que tenho memória remonta a 2016. Naquela época, o atual presidente da CVM, Marcelo Barbosa, antes de sua nomeação, já comentava sobre as iniciativas em curso no exterior, os possíveis mecanismos de “importação” e os efeitos benéficos que teriam num mercado como o brasileiro. Nada mais justo que a efetivação do sandbox ocorrer na sua gestão.
O nome é literal, mesmo na tradução: trata-se de uma “caixa de areia” regulatória, na qual os participantes de determinado mercado podem testar inovações que, nos moldes tradicionais, demandariam autorizações prévias. Nesse ambiente, eles podem experimentar novos produtos e tecnologias sem arcar com os custos de observância, de maneira controlada e supervisionada pelo regulador.
Conforme a metodologia de “lean startup”, a forma mais eficiente de se reduzir o ciclo de desenvolvimento de um produto ou serviço é testar previamente o interesse do mercado. Assim, se o interesse durante o teste for limitado ou inexistente, são possíveis a alteração do modelo de negócios ou um eventual abandono do projeto sem grandes prejuízos.
Subversão de lógica
Tradicionalmente, as corporações investiam muitos recursos em novos produtos/serviços sem envolvimento direto com os consumidores, e apostando numa subsequente criação de interesse. As startups invertem essa lógica: buscam identificar os problemas reais, passíveis de soluções escaláveis, com um investimento inicial baixo. Do ponto de vista econômico, portanto, o sandbox leva a metodologia de negócio das startups para setores regulados, nos quais há barreiras legais de entrada que tornam as inovações demasiadamente custosas — e, por consequência, inibem inovações benéficas. É uma forma de aumentar a concorrência e potencializar o princípio da livre iniciativa.
Muitos estudos identificam a baixa produtividade do trabalhador brasileiro e, infelizmente, o aumento dos anos de escolaridade não melhorou esse indicador. Uma das saídas está no incremento da inovação, capaz de gerar ganhos de escala e de catapultar soluções de negócio criadas no Brasil para um nível global (fator de ampliação de produtividade). O sandbox pode funcionar como catalisador desse processo, viabilizando projetos de escala global em setores regulados e maximizando a criação de valor para a economia brasileira.
Vivi em Londres, e lá, por volta de 2011, pude perceber a ebulição das plataformas de peer-to-peer lending (empréstimo direto entre pessoas), o que me suscitou o desejo de explorar um projeto semelhante no Brasil. Mas, na minha volta, o contraste era evidente: enquanto no exterior essas empresas já eram avaliadas em dezenas de bilhões, por aqui as incipientes iniciativas eram barradas pelos reguladores.
O P2P lending é um típico exemplo de negócio inovador — e promissor — que poderia ter sido alocado em um sandbox regulatório (nesse caso, do Banco Central) para o teste da inovação de maneira mais rápida, em benefício de toda a sociedade. Porém, só anos depois, em 2018, é que saíram as regras que viabilizaram essa modalidade de crédito.
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Quatro pilares
Durante o extenso trabalho de análise comparativa envolvendo Reino Unido, Cingapura, Austrália, México e Hong Kong, a CVM se deparou com diferentes modelos e com peculiaridades de cada jurisdição. O sistema proposto na minuta se baseia em quatro pilares principais2: coordenação entre reguladores; critérios de elegibilidade; regime de análise, seleção e monitoramento; e dispensas aplicáveis e salvaguardas propostas.
Considerando que o bem primordial tutelado pela CVM é a informação, o principal risco para o mercado seria a ocorrência de prejuízos em virtude de prestação de informação incompleta ou incorreta pelos projetos em experimentação. Mas como cada um deverá solicitar dispensas regulatórias específicas de acordo com suas atividades e apresentar sugestões de salvaguardas para proteger eventuais clientes/usuários (que podem envolver, por exemplo, limitações ao número de clientes ou volume máximo de operação), parece que haverá ferramentas suficientes para mitigar o risco de mercado. Do ponto de vista prático, será importante que a CVM esteja preparada para adaptar as dispensas concedidas e salvaguardas correlatas por força de eventuais “pivotagens” das startups no curso do programa (as “trocas de pneu com o carro em movimento”).
O principal risco para o sandbox parece estar na necessidade de organização entre reguladores. Isso porque é possível que vários projetos estejam sujeitos à regulação de diferentes entidades (no Brasil e no exterior3) — de maneira que o sucesso do regime experimental dependerá de uma atuação coordenada entre os envolvidos.
Vale mencionar também que o modelo de seleção de projetos proposto na minuta estabelece a realização de chamadas públicas para diferentes ciclos (ou “cohorts”), como se faz na Inglaterra. Embora haja benefícios decorrentes da possiblidade de melhor alocação de equipes pela CVM para monitoramento e maior integração entre os projetos selecionados, pode haver prejuízos para os que atingirem maturidade operacional no intervalo entre os ciclos. Logo, me parece haver argumentos suficientes para se sustentar o funcionamento de forma contínua, como nos regimes de Cingapura e da Austrália.
O sandbox regulatório pode de fato destravar um canal relevante de geração de valor para a economia brasileira. A iniciativa da CVM é louvável e será importante que seja acompanhada pelos demais reguladores do sistema financeiro nacional, a fim de se garantir o alcance e a coordenação adequados ao aproveitamento integral do seu potencial.
*Felipe Hanszmann ([email protected]), sócio do Vieira Rezende Advogados e professor na FGV Direito Rio
Notas
1Criada por Eric Ries, autor do livro The Lean Startup: how Today’s Entrepreneurs use Continuous Innovation to Create Radically Sucessful Businesses
2Relatório 08/19 do Laboratório de Inovações Financeiras (LAB), que ajudou a fundamentar a minuta
3Destaque-se a possibilidade de parcerias com órgãos estrangeiros pela CVM no âmbito da Global Financial Innovation Network (GFIN), bem como a interação declarada com BC e Susep pelo Comunicado Conjunto nº 13/2019
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