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ICOs e STOs são alternativas viáveis para financiamento de empresas?
Ainda falta meio termo regulatório para a consolidação desses mecanismos de captação via criptoativos
ICOs e STOs são alternativas viáveis para financiamento de empresas?

Imagem: macrovector/ Freepik

“O mercado financeiro tem por função direcionar recursos de agentes superavitários (poupadores) para agentes deficitários (tomadores)”. O leitor poderá facilmente encontrar uma frase parecida com essa em livros ou textos sobre Economia ou FinançasOcorre que a realidade para pequenas e médias empresas ou para aquelas em fase pré-operacional é um pouco mais difícil do que simplesmente ir ao mercado em busca de recursos — especialmente em se tratando de acesso direto aos investidores sem recorrer a bancos, arranjo que caracteriza o mercado de capitais.  

Os custos de observância da regulação do mercado de capitais parecem ser determinantes para dele afastar empresas de menor porte e startups, que devem recorrer a investidoresanjo e outras fontes de capital de risco. Adota-se o pressuposto de que, quando títulos de dívida ou de participação são ofertados a investidores qualificados ou profissionais, estes serão capazes de mensurar os riscos de forma mais adequada. Em contrapartida, para que uma empresa acesse diretamente a poupança popular, os encargos relativos a governança, transparência e compliance procuram assegurar que os investidores “de varejo” tenham todas as informações necessárias para tomarem suas decisões.  

A persistência de esquemas fraudulentos, como pirâmides financeiras, sugere que, ao menos em teoria, o modelo aqui descrito não tem sido apto a proteger os investidores, cujo comportamento normalmente destoa do modelo de escolha racional da teoria microeconômica.  

A despeito dissoas empresas continuam a procurar alternativas para acessar diretamente os investidores, sem depender tão intensamente de instituições financeiras. Há alguns anos, houve o surgimento de plataformas de crowdfunding; mais recentemente, empresas vinham conseguido captar recursos por meio de sociedades de crédito direto (SCDs) ou sociedades de crédito entre pessoas (SEPs). Os escritórios de advocacia são instigados a criar soluções para investimento e desinvestimento em sociedades, com destaque para arranjos com mútuos conversíveis em participação. E discute-se no Congresso Nacional a alteração da Lei 6.404/76 para permitir descontos regulatórios, pela Comissão de Valores Mobiliários (CVM), a empresas com faturamento inferior a certo patamar, de modo a reduzir os custos de captação.  

À margem da regulação vigente, a captação direta via oferta de criptoativos se mostra uma alternativa arriscada, embora bastante atrativa. Entre 2014 e 2018, as Initial Coin Offerings (ICOs) captaram cerca de 22,5 bilhões de dólares em 1.050 emissões em todo o mundo, de acordo com informações fornecidas pelo portal CoinDeskEssa magnitude pode parecer pequena em face das ofertas públicas iniciais nos Estados Unidos no mesmo período, que totalizam cerca de 214,4 bilhões de dólares¹, ou, ainda, dos 95,8 bilhões de reais captados em 50 emissões primárias e secundárias de ações no mercado brasileiro no intervalo². Porém, a despeito de numerosas emissões fraudulentas (como a da OneCoin), a oferta de criptoativos tem despertado interesse crescente, sobretudo pela sua associação a modelos de negócio inovadores que utilizam a tecnologia blockchain.  

Por exemplo: em 2019, o BTG Pactual lançou o token ReitBZ (RBZ)³, lastreado em propriedades do mercado imobiliário brasileiro. Posteriormente, fechou parceria com uma gestora dos Emirados Árabes Unidos para ofertar investimentos em propriedades e clubes esportivos atrelados a security tokens com direitos de participação e de dívida. Mas as ofertas do BTG Pactual se destinam apenas a investidores não residentes no Brasil, a fim de propiciar uma emissão mais rápida, sem se sujeitar ao processo de registro da oferta perante a CVM.  

Há insegurança jurídica quanto a esse tipo de arranjo, pela possibilidade de sua caracterização como valor mobiliário, atraindo a incidência da competência da CVM para sua regulação e gerando custos significativos e até mesmo inviabilizar a execução do projeto.  

A realização de oferta pública sem registro na CVM pode ter consequências graves. A título de ilustração, a CVM informou ao mercado⁴ que a empresa Atlas Quantum vinha divulgando, de forma irregular, oportunidade de investimento com retornos associados a serviço de arbitragem de criptoativos por meio de algoritmos. Para a CVM, essa oferta pública envolvia contratos de investimento coletivo  por isso, seriam valores mobiliários. A partir de então, a empresa passou a ter dificuldades para atender a saques de seus clientes, passando a exigir um prazo de 30 dias para a realização de resgates⁵  

Além do dano reputacional decorrente de uma atuação sancionadora pela CVM, empresas que ofertam publicamente valores mobiliários sem registro podem ser alvo de multas⁶ capazes de inviabilizar a sua continuidade.  

Initial Coin Offerings (ICOs)

O termo coin é utilizado para designar criptomoedas, isto é, ativos digitais que desempenham função de moeda. O termo token  passível de tradução como título ou cupom” — é mais genérico e compreende tanto os utility tokens (para aquisição de produtos e serviços) quanto os security tokens (direitos de participação ou remuneração) ou, ainda, combinações desses dois tipos.   

As ofertas públicas de criptomoedas são chamadas de ICOs e as ofertas de security tokens são designadas Security Token Offerings (STOs) ou token sales.  

Um ICO começa com a divulgação de um whitepaper contendo a descrição do projeto, parâmetros quantitativos da emissão e os direitos a que farão jus os adquirentes dos tokens⁷. A subscrição se dá usualmente por meio de bitcoin ou ether. O investidor, então, faz com que sua wallet⁸ envie a quantidade solicitada de criptoativos para um endereço normalmente contendo um smart contract, criado pelo emissor.   

Se a emissão tem sucesso (atingindo um patamar mínimo de subscrição), os tokens utilizados na subscrição são transferidos para a wallet do emissor e os tokens emitidos são enviados para a wallet do investidor. Caso contrário, os tokens são devolvidos à wallet do investidor.  

Casos niobium e Munchee 

Bolsa de Moedas Digitais Empresariais de São Paulo (Bomesp) formulou consulta à CVM para saber se a ICO da niobium coin deveria se submeter a registro. O projeto em questão envolvia o desenvolvimento de uma plataforma para negociação e intermediação de criptomoedas e também caixas eletrônicos para moedas virtuais, inclusive com conversão em moeda fiduciária.   

Ao apreciar a questão a CVM formulou as seguintes perguntas: 

  investimento? 

  um título ou contrato coletivo pelo qual o investimento é formalizado? 

 alguma forma de remuneração é oferecida aos investidores?  

 a remuneração oferecida tem origem no esforço do empreendedor ou de terceiros?  

 os contratos são ofertados publicamente?  

A CVM concluiu que a niobium coin não era um valor mobiliário, especialmente em razão de não haver remuneração oferecida aos investidores com origem no esforço do empreendedor ou de terceiros. Ao adquirir a niobium coin, o investidor estaria diante de um utility token para pagar pelos serviços da plataforma e só teria algum tipo de lucro se negociasse os tokens em mercado secundário. Não havia promessa de pagamento de participação nos resultados ou algum tipo de remuneração prefixada ou pós-fixada com base no valor investido.  

Logo, uma eventual valorização dos tokens em razão do exercício normal da atividade desempenhada pela Bomesp não seria interpretado como um esforço do empreendedor ou de terceiros capaz de gerar uma remuneração aos adquirentes da niobium coin.  

Em 2017, a Securities and Exchange Comission (SEC) havia apreciado um caso semelhante nos Estados Unidos. A empresa Munchee emitiria tokens denominados MUN, visando arrecadar cerca de 15 milhões de dólares a serem aplicados para o desenvolvimento de um aplicativo em que usuários poderiam procurar por restaurantes e fornecer comentários e avaliações sobre suas experiências gastronômicas.   

Os usuários seriam remunerados com MUN tokens pelas avaliações postadas, pelas informações sobre os restaurantes e pelas revisões das avaliações elaboradas pelos seus pares. Os MUN tokens poderiam ser utilizados para consumo nos restaurantes participantes da rede e restaurantes poderiam pagar por anúncios em MUN tokensE os MUN tokens poderiam ser negociados em mercado secundário. 

À semelhança da niobium coin, no whitepaper do projeto, não havia previsão de pagamento de dividendos, juros ou outros proventos. Uma primeira leitura sugeria se tratar de um utility token que seria o meio de troca dentro do ecossistema Munchee, com a possibilidade incidental de sua negociação em mercado secundário.   

A SEC entendeu que os adquirentes dos MUN tokens tinham uma expectativa razoável de obtenção de lucros futuros com base no esforço da Munchee, que atualizaria seu aplicativo e criaria o ecossistema em questão utilizando os recursos captados via ICO. O regulador destacou também que no whitepaper do Munchee havia a previsão de que a empresa garantiria a negociação do MUN token em mercados secundários e que, ainda, forneceria liquidez negociando seu próprio estoque de tokens.  

Resguardadas as diferenças entre os projetos da Bomesp e da Munchee, há uma diferença essencial na interpretação do regulador americano e do regulador brasileiro: a valorização dos tokens em mercado secundário em decorrência da atividade normal do empreendedor representou para a SEC uma “remuneração proveniente do esforço do empreendedor”, enquanto a CVM pareceu adotar uma interpretação mais formal em que essa remuneração não seria decorrente de negociação subsequente.  

Da decisão da CVM podemos inferir que, se alguém adquire tokens desembolsando moeda soberana ou outros tokens, está realizando um investimento se, no conjunto de direitos representados pelos tokens adquiridos, há a previsão de pagamento de participação nos resultados ou juros  está-se diante de security tokensCaso contrário, há apenas o pagamento por utility tokens e lucros auferidos com a negociação subsequente dos tokens em mercado secundário seriam incidentais, insuficientes para a caracterização de “remuneração proveniente do esforço do empreendedor”.  

Um olhar adiante para os criptoativos

De um lado, o financiamento via criptoativos representa o ideal democrático de que os investidores são os genuínos centros decisórios de alocação de recursos no sistema econômico. De outro, há riscos elevados em jogo, principalmente em se tratando de empresas em fase pré-operacional  especialmente se valendo de tecnologias ainda não consolidadas  e empresas com sede em outras jurisdições.  

Podemos indagar se é necessário estabelecer uma vedação geral ao investimento em security tokens ou se seria possível criar um “mercado de acesso” para empresas nascentes ou de menor porte, para que não tenham que recorrer a emissões destinadas exclusivamente a investidores qualificados para ter um regime mais flexível.  

A política regulatória precisa decidir se investimentos de risco elevado devem ser acessíveis a investidores de varejo ou se eles só poderão aportar seus recursos em um momento subsequente do ciclo de desenvolvimento das empresas.  

Um caminho possível é a submissão de emissão de security tokens ao regime de sandbox regulatório da CVM. Emissores que tenham um “modelo de negócio inovador” poderão pleitear uma autorização temporária com regime mais flexível, indicando quais os requisitos da regulação vigente poderiam ser afastados e quais contrapartidas poderiam ser oferecidas.  

Uma alternativa ao recurso ao regime de sandbox regulatório seria uma alteração na Instrução 588/17, que regula as plataformas de crowdfundingpermitindo a criação de um mercado secundário dos títulos emitidos, tomando a plataforma comgatekeeper da operação.  

Por ora, estamos diante de uma abordagem binária para os criptoativos: ou sua emissão encontra-se à margem da regulação da CVM ou, então, se sujeita a todos os encargos regulatórios. A necessária construção de um meio termo é o desafio para pesquisadores, reguladores e participantes do mercado. 


*Isac Costa ([email protected]) é analista de mercado de capitais da CVM, doutorando em Direito econômico e financeiro pela USP 


Notas 

¹StatistaValue of IPOs in the U.S. 200-2018. Jan, 2nd 2019. Disponível em: https://www.statista.com/statistics/264607/ipo-volume-in-the-us/. Acesso em 1º nov. 2019. 

²AnbimaBoletim do Mercado de Capitais. Rio de Janeiro, 10 out. 2019. Disponível em: https://www.anbima.com.br/pt_br/informar/relatorios/mercado-de-capitais/boletim-de-mercado-de-capitais/mercado-de-capitais-registra-volume-recorde-de-captacao.htm. Acesso em 1º nov. 2019.  

³Tauhata, Sérgio. Criptoativos já são negócio bilionárioBlog Valor Investe, 15 jul. 2019. Disponível em: https://valorinveste.globo.com/mercados/cripto/noticia/2019/07/15/criptoativos-ja-sao-negocio-bilionario.ghtml. Acesso em  nov. 2019.  

Comissão de Valores MobiliáriosOferta irregular de Contratos de Investimento Coletivo (CIC). Rio de Janeiro, 13 ago. 2019. Disponível em: http://www.cvm.gov.br/noticias/arquivos/2019/20190813-4.html. Acesso em 2 nov. 2019. 

⁵Tolotti, Rodrigo. O nebuloso caso da Atlas Quantum e o limbo jurídico das criptomoedasInfoMoney, 12 out. 2019. Disponível em: https://www.infomoney.com.br/mercados/o-nebuloso-caso-da-atlas-quantum-e-o-limbo-juridico-das-criptomoedas/. Acesso em 2 nov. 2019. 

⁶As sanções aplicáveis pela CVM estão no art. 11 da Lei 6.385/76, com destaque para o limite superior de multas no valor de 50 milhões de reais ou o dobro do valor da emissão irregular ou do prejuízo causado.  

⁷Barsan, Iris M. Legal Challenges of Initial Coin Offerings (ICO)Revue Trimestrielle de Droit Financier (RTDF), n. 3, 2017, pp. 54-65. 

⁸Wallets são mecanismos que armazenam as chaves pública e privada dos usuários que serão utilizadas para transações no registro distribuído, envolvendo o envio e recebimento de criptoativos e o monitoramento de seu saldo. 

⁹Esses requisitos contêm os passos do chamado Howey Test, criado pela jurisprudência americana em torno do conceito de security para verificar se estamos diante de um contrato de investimento coletivo. Além disso, há os requisitos contidos na definição material de valor mobiliário, inciso IX do art. 2º da Lei 6.385/76. 


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