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Os desafios regulatórios da concorrência entre bolsas
A possibilidade de existirem alternativas ao livro central provoca inevitável impacto nos preços dos ativos
Os desafios regulatórios da concorrência entre bolsas

Ilustração: Rodrigo Auada

 “Nenhum poder terrestre pode deter uma ideia cuja hora tenha chegado.”

À primeira vista, encontra suporte nos fatos essa frase frequentemente atribuída — mesmo sem evidências — a Victor Hugo, romancista francês do século 19. Realmente, observando-se em retrospectiva, é possível constatar o triunfo de certas ideias sobre outras. Entretanto, nem sempre é fácil determinar se a dominância ocorreu pela “chegada da hora” ou se algumas ideias foram superadas simplesmente por terem surgido precoce ou tardiamente em relação à sua adequação ao meio. Diante dessa dificuldade de discernimento, mais produtivo parece ser examinar o alinhamento de circunstâncias que fizeram com que um determinado conjunto de convicções prevalecesse sobre concepções rivais.

É a esse exercício singular — de examinar se é ou não chegada a hora de abraçar certas ideias, assim como seu mérito e qualidade — que nos convidou a Comissão de Valores Mobiliários (CVM) ao lançar, no final de 2019, uma audiência pública cujas minutas pretendem tratar de maneira inteiramente nova o funcionamento dos mercados regulamentados no Brasil (o que inclui os mercados de bolsa e de balcão organizado) e a forma como são supervisionados pelo regulador.

As mudanças sugeridas pela CVM nesse caso se revelam ao longo de três minutas que tratam:

— do funcionamento dos mercados regulamentados de valores mobiliários no País, revogando por completo o arcabouço hoje delineado pela Instrução 461, de 23 de agosto de 2007;

— da estrutura de autorregulação unificada no mercado de valores mobiliários, disciplinada atualmente pela mesma Instrução 461;

— do dever de melhor execução imposto às instituições intermediárias de negociações em mercados secundários de valores mobiliários, previsto na Instrução 505, de 27 de setembro de 2011.

Potencial transformador

O fio condutor das alterações apresentadas pelo regulador nas minutas é, principalmente, de natureza concorrencial. Há outros pontos relevantes, mas que de forma isolada não seriam suficientes para ensejar uma substituição normativa tão ambiciosa em seu potencial transformador. O que realmente demanda reflexão na audiência pública são as ideias que a CVM julgou merecedoras de consagração normativa para acomodar o ingresso de interessados em constituir novos ambientes de negociação ou registro de valores mobiliários no Brasil — e, consequentemente, sua forma de supervisão.

Passados quase 15 anos da Instrução 461, poucos candidatos se aventuraram a enfrentar o enorme desafio de constituição de novos mercados, e as tentativas desde então nem sempre tiveram a solidez esperada de um empreendimento desse porte. Não apenas isso: participantes relevantes à época da edição da Instrução 461 encontram-se hoje consolidados debaixo de uma mesma entidade administradora de mercado.

Olhando o filme de trás para frente, há pouco espaço para se discordar de que algumas das opções regulatórias, feitas de forma ponderada e proposital pela Instrução 461, tenham dado sua contribuição para essa escassez de candidatos. Vale ressaltar essa afirmação não representa qualquer crítica ou elogio — trata-se tão somente de uma constatação. A Instrução 461 foi fruto das circunstâncias e debates daquele momento bastante específico, em que as duas únicas bolsas brasileiras — Bolsa de Valores de São Paulo (Bovespa) e Bolsa de Mercadorias e Futuros (BM&F) — rumavam à desmutualização. Essa instrução foi o primeiro marco regulatório a tratar de forma exauriente a espinha dorsal do funcionamento dos mercados secundários brasileiros, tema de grande dificuldade e complexidade, em relação ao qual impera uma saudável diversidade de pontos de vista.

Por exemplo: a Instrução 461 vedou a internalização sistemática de ordens e proibiu a dupla listagem de ações em mais de uma bolsa, dois relevantes supressores de apetite para novos entrantes. A experiência internacional é inequívoca em demonstrar que a principal porta de entrada para o surgimento de ambientes de negociação concorrentes é representada pelo intermediário existente. Em geral, o participante que já atua como pessoa autorizada a operar em ambientes de negociação (no próprio país ou em outras jurisdições) decide alavancar seus próprios fluxos de negócio, casando-os internamente ou dirigindo-os à execução em ambientes apartados dos oficiais; com isso, transforma de maneira visceral seu papel tradicional perante seus clientes.

Desafio de equilibrar custos e benefícios

Diante da passagem do tempo, a CVM, em salutar exercício de autoavaliação, agora quer rever os custos e benefícios das escolhas regulatórias anteriores, partindo da premissa de que as condições estruturais para surgimento da competição devem estar consagradas de forma institucional, antes que surja efetivamente um candidato ao posto — e igualmente para incentivá-lo a dar esse passo. Correndo o risco de excessiva simplificação, três seriam as principais condições estruturais para que esse novo marco regulatório possa cumprir seu papel: a flexibilização da vedação à dupla listagem, a institucionalização de um autorregulador único com competências expressivamente mais alargadas e a unificação do atual mecanismo de ressarcimento de prejuízos.

Estariam essas novas ideias vibrando em sintonia com o funcionamento mais eficiente dos mercados e, mais importante, com o que se espera seja o papel que tenham a cumprir nos próximos anos? As respostas, infelizmente, são altamente insatisfatórias para os leitores a quem só a síntese e a simplicidade aquietam, como pode ser visto a seguir.

Em primeiro lugar, as minutas da audiência pública não eliminaram por completo a vedação à dupla listagem, mas admitiram-na para negociações de grandes lotes de ações — situação rotineira para os investidores institucionais, que hoje acabam adotando modalidades diversas para negociação de lotes expressivos. Mas todas acabam passando pelo mesmo centro de liquidez, o “livro central” de ordens.

A possibilidade de existirem ambientes de liquidez alternativos ao livro central provoca inevitável impacto nos preços dos ativos, resultantes de sua negociação em mais de um ambiente, fenômeno também conhecido como fragmentação (de liquidez e de informações). As minutas em audiência pública propõem a mitigação dos efeitos da fragmentação para o investidor de varejo, introduzindo o conceito de desembolso total na operação (conceito diferente do de “melhor preço”), que seria reforçado pelo alerta ao cliente de que aquele intermediário não possui acesso a todos os ambientes em que um ativo é negociado.

A solução proposta pela CVM é alternativa à imposição obrigatória do roteamento de ordens a um só “local” (a um só livro central de ordens), como ocorre nos Estados Unidos por força do National Market System. Esse sistema busca combater a fragmentação com proteção de preços (“order protection rule”), mas em contrapartida obriga os intermediários a conectar-se, e, com isso, cumprir as regras de acesso de numerosos ambientes de negociação. A regra, muito polêmica ainda hoje, sem dúvida impõe um custo relevante ao intermediário. No entanto, é discutível se seria assim tão onerosa em um mercado como o brasileiro, no qual seria natural esperar adesão dos intermediários a ambientes com propostas de negociação inovadoras ou até agora inexistentes, por conta da vedação ainda em vigor.

Também cabe destacar o fato de a audiência pública não incluir a possibilidade de atuação dos internalizadores sistemáticos — a maneira clássica, como dito, pela qual a competição surgiu em outros mercados —, ao menos para os grandes lotes. Aqui mesmo, a atuação dos RLPs (retail liquidity providers), autorizada pela CVM de forma experimental e por prazo determinado, seria uma evidência de que no Brasil o caminho pode não ser tão diferente. Na essência, não parece haver distinções dignas de nota entre admitir dupla listagem para negociações de grandes lotes em bolsa ou mercado de balcão, como as minutas em audiência optaram por permitir, ou pela atuação de internalizadores. Pelo menos não diferenças que não pudessem ser combatidas com uma disciplina robusta do novo papel dos internalizadores, somada a algum “remédio antifragmentação”, seja ele o proposto pelas minutas, seja pelo roteamento automático de ordens, ou outra solução que o mercado venha a sugerir. Merece todo aplauso, por isso, a CVM estar interessada em receber comentários sobre que “remédio” deve ser esse.

Nova autorregulação

A audiência pública envolve também alterações na estrutura de autorregulação do mercado, outro ponto em que a disposição do regulador ao diálogo é a todos os títulos exemplar. Propõe-se que a autorregulação seja exercida por uma única entidade, que passaria a supervisionar todas as negociações com valores mobiliários em mercado secundário. Atualmente, já há apenas uma entidade autorreguladora em funcionamento para a atividade de intermediação. Mas engana-se muito quem, por causa disso, acha que as alterações das minutas são apenas cosméticas, ou confirmatórias do status quo.

Na proposta da audiência pública, a competência do autorregulador único seria expandida para as atividades de pós-negociação a cargo das operadoras de infraestruturas de mercado e para alcançar investidores e participantes com acesso direto aos mercados organizados — nesse ponto criando assimetria formal, em termos de supervisão, entre esses investidores e aqueles usuários de outras modalidades de acesso. A concentração de poderes dessa nova entidade, aliada à maneira proposta para seu financiamento, governança, administração e composição de seus órgãos decisórios, pode suscitar discussões sensíveis quanto à natureza de instituição de autorregulação, tradicionalmente entendida como regulação estabelecida por iniciativa dos próprios participantes de mercado.

Por fim, a audiência pública propõe que o atual mecanismo de ressarcimento de prejuízos seja unificado para todo mercado, de forma que quem viesse a ser autorizado a administrar mercados organizados de bolsa passaria a estar automaticamente vinculado a ele. Embora reconhecendo a natureza de patrimônio apartado do mecanismo de ressarcimento, parte-se da premissa de que um futuro entrante tenderia a ter como participantes os mesmos intermediários que, no passado, contribuíram para formação do mecanismo de ressarcimento —não sendo, por isso, eficiente cobrar novas contribuições desses mesmos participantes, desde que os recursos hoje existentes consigam comportar os riscos de funcionamento de uma nova bolsa.

O grande mérito das minutas não deve ser procurado na apresentação de um método infalível de incutir concorrência em um setor no qual as barreiras à entrada são naturalmente expressivas, mas sim na disposição em convidar o mercado a discutir novas ideias, notadamente nessa matéria tão apaixonante e de tão grande complexidade. O debate que estamos prestes a assistir deverá ponderar se há proporção entre os custos e benefícios que seriam produzidos pelas novas ideias lançadas pelo regulador (e mesmo se o momento de sua adoção deve ser agora) ou se soluções de maior potência não seriam produzidas a partir de um real novo entrante.


*Aline Menezes ([email protected]) é mestre em Direito pela USP


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