Lei de endowments pode transformar o Brasil
Nova legislação para fundos patrimoniais traz solução para financiamento de organizações sem fins lucrativos e projetos socioambientais
Lei de endowments pode transformar o Brasil

Ilustração: Rodrigo Auada

O leitor já ouviu falar em fundos patrimoniais filantrópicos ou endowments? Pois essa categoria iniciou 2019 com uma boa notícia. O presidente Jair Bolsonaro sancionou, com alguns vetos, uma legislação importante para a sustentabilidade das organizações sem fins lucrativos e das instituições públicas que trabalham por causas diversas no Brasil. A Lei dos Fundos Patrimoniais — Lei 13.800 — foi publicada no dia 7 de janeiro.

Os fundos patrimoniais filantrópicos, apesar do nome, não são fundos de investimento. Enquanto nestes os investidores aplicam seus recursos para obter ganhos financeiros, nos primeiros eles doam montantes (que ficam aplicados em fundos de investimento) e os rendimentos são destinados a uma causa ou a uma organização. Eles nascem, em sua maioria, com o compromisso de perpetuar o valor doado; apenas os rendimentos são destinados à manutenção de uma organização sem fins lucrativos ou ao financiamento de projetos socioambientais.

É longo o alcance da nova lei. Basta dizer que se as fortunas brasileiras, conforme listagem da revista Forbes, colocassem apenas 1% de seus ativos em fundos patrimoniais filantrópicos, haveria 3 bilhões de reais disponíveis para mudar o atual panorama precário de organizações sociais, museus, universidades e hospitais que muito fazem em suas áreas de atuação.

Há outra função: os fundos patrimoniais filantrópicos podem ser instrumentos para administração de situações de desastre, como no caso recente do rompimento da barragem da Vale em Brumadinho. A criação de um fundo composto de parte dos recursos de multa aplicada à companhia é uma estratégia que geraria recursos para a recuperação e o desenvolvimento da agenda socioambiental na região afetada. Para Mariana, palco de tragédia semelhante em 2015, a Fundação Renova foi criada com esse propósito, mas sem mecanismos que garantissem a agilidade necessária na implementação das ações — o que limitou sua efetividade.

Capital paciente

Esses fundos igualmente têm condições de gerar impacto positivo no mercado de capitais, à medida que estimulam o surgimento de um grupo de investidores relevante. Nos EUA e em outros países, os endowments há muito assumiram o pioneirismo em investimentos de impacto. Representam uma massa de capital permanente e paciente, disposta a financiar empreendimentos e negócios por prazos mais longos. Grandes endowments, como os das universidades de Yale e Harvard, são admirados globalmente — obtêm consistentemente retornos expressivos. Os endowments das instituições americanas de educação tiveram 12% de retorno no ano fiscal de 2017, e o retorno médio dos cinco anos anteriores foi de 8%, muito acima da média do mercado.

Segundo estimativas do Hauser Institute for Civil Society e do Banco Mundial, hoje estão alocados em endowments 1,5 trilhão de dólares (veja quadro). Países como Índia e Emirados Árabes Unidos também contam com fundos gigantescos.

Mesmo antes da aprovação da Lei 13.800/19 já havia estruturas no Brasil criadas para funcionar como fundos patrimoniais filantrópicos, e algumas são bastante expressivas, como as da Fundação Bradesco, Itaú Social, Fundação Maria Cecília Souto Vidigal e Instituto Unibanco.

Entretanto, muitos doadores não criam fundos patrimoniais por causa da falta de segurança jurídica de longo prazo. Eles receiam que, se uma organização acumular passivos fiscais, trabalhistas ou de outros tipos — decorrentes de problemas na gestão — parte ou o total dos recursos poderia ser direcionada ao pagamento dessas dívidas. Se isso acontece, o valor doado não chega à causa ou aos projetos que inspiraram a doação.

Isso talvez possa explicar por que a maioria das organizações fundadas por bilionários brasileiros ainda não tenha fundos patrimoniais locais, apesar de muitos de seus fundadores serem doadores de endowments fora do País. A Fundação Lemann, por exemplo, criada pelo empresário Jorge Paulo Lemann, um dos homens mais ricos do Brasil, não tem um fundo patrimonial. Mas ele é conhecido como um importante doador de endowments de universidades americanas.

Um obstáculo que permanece mesmo com a chegada da lei é a falta de incentivos fiscais para doações feitas por indivíduos, com exceção daquelas destinadas à área da cultural, que são contempladas com os benefícios da Lei Rouanet. Na maioria dos países com tradição de doação há incentivos fiscais, como indica o relatório “Rules to Give By”, produzido pela Charities Aid Foundation. A exceção está nas nações em que a doação é uma prática de cunho religioso — caso de Mianmar, que recentemente ocupou a primeira posição no Índice Global de Solidariedade, também aferido pela fundação. Pelo menos 90% da população faz doações nesse pequeno país do Sudeste Asiático.

O Brasil tem potencial para se transformar em uma nação com alto nível de doação, apesar de hoje ocupar a posição 122 entre 146 países integrantes do ranking. Várias iniciativas estão surgindo para promover a cultura de doação no  País; são campanhas como “Dia de Doar” e “Descubra sua Causa” e as facilidades oferecidas por pelo menos uma dezena de sites e plataformas.

Com a aprovação da Lei 13.800/19, o País passa a contar com arcabouço legal capaz de atrair doações de longo prazo para causas socioambientais. Além dos benefícios da desejada proteção patrimonial dos fundos em relação às obrigações e eventuais passivos das organizações e projetos financiados, a lei estabeleceu regras de governança e alguns incentivos fiscais — ainda que menos significativos do que o desejável. Também deu ampla liberdade para estruturação e arranjos jurídicos societários, contratuais, de política e veículos de investimentos, de fontes de captação de recursos (que podem ser doações livres ou de propósito específico do doador) e licenciamento de marca, entre outras.


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Processo criterioso

É importante ressaltar que o sucesso do estabelecimento de um fundo patrimonial depende de um processo profissional e criterioso. São diversas as possibilidades de estruturação, e são determinantes o planejamento societário, tributário e contratual, e a formação de um sistema de governança robusto é crucial. É preciso desenhar regras claras para os investimentos no mercado financeiro e para o uso dos recursos em projetos e organizações. Na estruturação do Fundo Patrimonial Filantrópico da Fundação Maria Cecília Souto Vidigal, por exemplo, mais de um ano foi dedicado a esses processos — hoje, é considerado um modelo de gestão. O Masp também investiu um longo tempo para essas decisões. Caso a organização não conte com um grande financiador, adicionalmente precisa montar uma estratégia de captação de recursos.

A aprovação dessa importante legislação resultou da ação conjunta de diversos protagonistas da sociedade civil e do governo. O Idis vem liderando o trabalho desde 2012. Instituições e atores diversos se uniram a esse esforço, para tornar possível a articulação de parlamentares e autoridades, que levaram à aprovação de uma lei que tem elementos imprescindíveis. Nessa caminhada, foi fundamental a criação, em 2018, da Coalizão pelos Fundos Patrimoniais Filantrópicos, que atualmente conta com pelo menos 60 nomes, incluindo PLKC Advogados, Grupo de Institutos, Fundações e Empresas (Gife), Associação Paulista de Fundações (APF), Consolidação Brasileira de Fundações (Cebraf), Instituto Humanitas360, Levisky Negócios e Cultura e BNDES.

Próximos passos

Ocorre que não basta uma lei para transformar a realidade. Neste momento, para fomentar a criação dos fundos patrimoniais é necessário o desenvolvimento de materiais didáticos que, além de apresentar os pontos críticos para o estabelecimento e gestão de um endowment no Brasil, expliquem o funcionamento da nova lei e proponham melhorias nos processos junto ao governo e aos mercados financeiro e de capitais. É preciso manter os esforços de diálogo com o poder público (advocacy) para garantir que as normativas relativas à lei reflitam as melhores práticas internacionais e sejam benéficas às organizações da sociedade civil e doadores — em especial as que tratam de tributação e operação, pois ainda restam dúvidas acerca desses pontos. Vale esse empenho, pois, quando bem estruturada, a legislação pode produzir um efeito positivo em grande escala. Na França, logo após a aprovação de regulamentação similar, cerca de 200 fundos foram criados. Com normativas claras e precisas, o Brasil certamente pode repetir esse número.

Essa lei vai abrir oportunidades para o setor filantrópico, que deverá contar com consultorias especializadas no tema e coragem para desbravar o novo caminho. Certamente vai gerar profissionalização da gestão das organizações e de seus recursos, e maior excelência em todas as áreas apoiadas, o que permitirá a criação de legados inegavelemente positivos para a sociedade brasileira.

Grandes fundos patrimoniais filantrópicos

Valor (US$ bi) país
1 Bill and Melinda Gates Foundation 50,7 EUA
2 Harvard University 37,1 EUA
3 Wellcome Trust 30,0 Reino Unido
4 Yale University 27,2 EUA
5 Stanford University 24,8 EUA
6 Princeton University 23,8 EUA
7 Massachusetts Institute of Techonolgy 16,4 EUA
8 Penn University 13,8 EUA
9 Stichting INGKA Foundation 13,7 Holanda
10 Garfield Western Foundation 12,8 Reino Unido
11 Fundação Bradesco 12,2 Brasil
12 Azim Premji Foundation 12,0 Índia
13 Mohammed Bin Rashid Global 10,1 Emirados Árabes Unidos
14 The University of Chicago 7,5 EUA
15 Knut och Alice Wallenbergs Stiftelse 5,3 Suíça
16 University of Cambridge 4,3 Reino Unido
17 University of Oxford 3,9 Reino Unido
18 The Metropolitan Museum 2,5 EUA
19 Smithsonian Foundation 1,5 EUA
20 MD Anderson Cancer Center 1,1 EUA

Fonte: sites das organizações


*Por Paula Fabiani ([email protected]), diretora-presidente do Instituto para o Desenvolvimento do Investimento Social (Idis)


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