Estamos vivendo uma onda de hipervalorização da ciência, que parece nos remeter ao cartesianismo — ou seja, mais do que uma utopia, trata-se de uma retrotopia (para citar o termo de Zygmunt Bauman) descabida. Não que a ciência não mereça ser enaltecida e explorada ao máximo. O problema é que há um equívoco enorme em se achar que o mundo é passível de ser entendido e vivenciado apenas sob as lentes da racionalidade científica.
Várias são as evidências desse resgate inoportuno do cartesianismo para o mundo contemporâneo. Diversos debates atuais comprovam essa idolatria da racionalidade pura, carregando enorme superficialidade e se direcionando, inclusive, contra as próprias premissas científicas empírico-positivas. Neste artigo, porém, vou me ater ao recorte diretamente relacionado ao mundo dos negócios: a chamada AI, sigla em inglês para artificial intelligence (inteligência artificial, IA, em português).
Ciência natural e ciência humana
Mas antes vale refletirmos acerca de pontos comuns da superficialidade generalizada que leva a esse fetiche em relação à racionalidade.
Como disse Ludwig Wittgenstein, um dos principais filósofos contemporâneos, “sentimos que, mesmo depois de serem respondidas todas as questões científicas possíveis, os problemas da vida permanecem completamente intactos”. A afirmação nos remete à espinha dorsal dessa superficialidade, já que muitos dos que conclamam o absolutismo científico desconhecem as diferenças entre a ciência natural e a ciência humana. A primeira, por sua concepção empírico-positiva, é preditiva, baseada em relações de causalidade entre os fenômenos. Já a segunda, por sua natureza hermenêutica ou interpretativa, não pretende predizer nada: quer apenas compreender, interpretar ações humanas e fatos socioculturais.
Como consequência dessas diferenças de concepção, a ciência natural considera que só pode haver uma explicação para um mesmo fenômeno; a ciência humana, por seu turno, em função dos sujeitos que interagem e dos contexto mutantes, considera que pode haver diferentes tipos de explicações para um único fenômeno.
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Assim, a pluralidade da hermenêutica dialoga mais com o mundo contemporâneo do que o positivismo. Ocorre que o fetiche “retrotópico” hoje observado se alicerça no desconhecimento dessa dinâmica, na exaltação extremada da predição e do controle e — pior — cria uma hierarquia insciente em relação à ciência.
O poder da dimensão não cognitiva
Vale ainda destacar os achados científicos da neurociência, que já comprova que pensamos e decidimos muito mais apoiados em uma dimensão não cognitiva do que achamos (ou gostaríamos que fosse a realidade) e que essa dimensão não é irracional por ser não cognitiva — ao contrário, existe uma inteligência não cognitiva que é justamente o valor humano mais importante na comparação com as máquinas. Fica, então, a prova de que os racionalistas radicais na verdade fazem um desfavor à própria ciência, fazem uma anticiência. Ou seja, são inscientes.
Abordados esses pontos, estamos prontos para falar da AI — num contexto de banalização e completa ignorância sobre o que é ciência, o que é racionalidade, o que é o pensar e decidir e o que é, por consequência, a própria AI. Essa tecnologia faz emergirem verdadeiros profetas da racionalidade extremada. Vide, por exemplo, a nova onda de “HR data driven”. Acredito que utilizar ao máximo dados e as ferramentas da ciência é fundamental. Entretanto, os principais dilemas relativos a pessoas e times são integrantes do campo das ciências naturais; com isso, o HR data driven é uma obrigação básica de todo HR e não um diferencial competitivo.
O grande valor da humanidade
A própria AI distingue entre o que a máquina consegue fazer sozinha (que seria justamente o campo da racionalidade pura) daquilo que a máquina precisa obter do humano, de seu julgamento, de sua interpretação e do seu “feeling” para poder criar uma inteligência superior. Essa relação corrobora os achados da neurociência quanto ao fato de a inteligência não cognitiva ser o grande valor da humanidade. É aquilo que Merleau-Ponty chama de senciente — um corpo que sente, uma inteligência corporal, em que o sentir se entrelaça com o raciocinar para criar o que de fato é a grande inteligência humana e que jamais uma máquina poderá superar.
Cuidado, portanto, idólatras extremados da racionalidade. Afinal, fazer ciência com superficialidade é ficar no limbo da ignorância, é ser insciente, e, como costumo dizer, é na exaltação extremada da racionalidade que o homem encontra a própria insignificância.
Alexandre Fialho ([email protected]) é sócio-fundador da Filosofia Organizacional, conselheiro de diversas empresas, mentor de grandes líderes e professor
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