Os investidores-âncora nas ofertas iniciais de ações
CVM confirma legalidade dos arranjos contratuais de ancoragem
Pablo Renteria
Pablo Renteria é sócio-fundador do Renteria Advogados e professor de direito civil da PUC-Rio. Foi diretor e superintendente da CVM | Ilustração: Julia Padula

O IPO da Comerc Participações S.A., holding de empresas atuantes no mercado de energia, não será lembrado pela demanda aquecida nem pelo tamanho da captação. Aliás, nem constará da lista de ofertas públicas iniciais de 2021, já que a abertura de capital da companhia foi cancelada de forma repentina, dias antes do início da listagem, diante do anúncio de que seu controle havia sido adquirido pela Vibra Energia, antiga Br Distribuidora.

O IPO da Comerc, contudo, será lembrado por ter levado a Comissão de Valores Mobiliários (CVM) a fixar o primeiro precedente sobre as estruturas de ancoragem em ofertas públicas de ações. Esse modelo surgiu nos mercados asiáticos na década de noventa do século passado e vem ganhando, nos últimos anos, destaque no mercado brasileiro. Especialmente em períodos de maior volatilidade, a ancoragem tem se mostrado útil para o gerenciamento contratual dos riscos inerentes às ofertas, atuando de forma complementar ao arranjo de alocação de riscos realizado por meio do contrato de underwriting.

A ancoragem e o gerenciamento contratual dos riscos da oferta

Ao se comprometerem de forma irrevogável, ainda no estágio inicial da oferta, a investir um montante pré-estabelecido, os investidores-âncora reduzem o chamado risco de espera, isto é, o risco de a captação restar prejudicada ou até mesmo inviabilizada em razão da deterioração das condições de mercado durante o período de preparação da operação. Por outro lado, ao garantirem a colocação de parte da oferta, os investidores-âncora mitigam o chamado risco de colocação, vale dizer, o risco de não serem encontrados investidores suficientes para absorver toda a oferta.

Ademais, por serem normalmente investidores experientes e tecnicamente qualificados, que gozam de boa reputação entre seus pares, o seu compromisso de investimento emite uma opinião positiva sobre a oferta, estimulando a adesão de outros investidores. Essa sinalização é ainda mais forte quando o compromisso de investimento vem acompanhado de arranjos contratuais que visam mantê-los como acionistas da companhia por algum tempo.

O negócio de ancoragem leva, portanto, os investidores-âncora a assumir riscos que não são suportados pelos demais destinatários da oferta. Enquanto esses permanecem livres para aderir à oferta, os investidores-âncora se encontram de antemão obrigados a dela participar, não lhes sendo possível alterar a sua decisão de investimento, ainda que as condições de mercado se deteriorem no curso da preparação da oferta (ressalvadas as exceções previstas contratualmente).

Ao apreciar a consulta formulada pela área técnica, o Colegiado da autarquia concluiu que essa estrutura de ancoragem é aderente à regulamentação das ofertas públicas, em especial à regra da unicidade de preço de oferta, prevista no art. 23 da Instrução CVM 400/2003, bem como ao princípio de tratamento equitativo dos investidores, previsto no art. 21 da mesma Instrução.

Reconheceu o Colegiado que a ancoragem constitui negócio jurídico autônomo com relação à subscrição de ações, que não interfere na relação estabelecida entre o ofertante e os destinatários da oferta. A vantagem ajustada no contrato de ancoragem, na forma da outorga de opções, não cria condições de subscrição mais vantajosas para os investidores-âncora, nem consubstancia espécie de desconto com relação ao preço fixado no âmbito da oferta. Isso porque, como mencionado acima, se trata da contrapartida ajustada em troca dos compromissos e dos riscos suportados pelos investidores-âncora, e apenas por eles.

O futuro da ancoragem na regulamentação

Tal entendimento traz segurança jurídica para as estruturas de ancoragem e, provavelmente, será mantido mesmo após a ampla reforma da regulamentação das ofertas públicas anunciada pela autarquia. A julgar pelas minutas de Resolução submetidas à audiência pública, o novo marco regulatório das ofertas não deverá introduzir nenhum empecilho à utilização de arranjos contratuais de ancoragem semelhantes aos empregados no IPO da Comerc.

O ponto, porém, que ainda merece reflexão diz respeito à ressalva emitida pelo Colegiado de que considera adequado que eventuais opções outorgadas tenham “características alinhadas aos parâmetros da transação e das condições de mercado, de maneira que estas representem uma contrapartida justa pelos compromissos assumidos pelos investidores âncora”. Não fica claro se, com base nessa orientação do Colegiado, a autarquia pretende examinar o equilíbrio entre os ônus e as vantagens contratuais recebidas pelos investidores-âncora, algo que se mostraria estranho às competências legais da CVM, além de bastante complexo.

A ressalva, em vez disso, mais parece um alerta geral contra o risco de fraude, pois a outorga de opções manifestamente exorbitantes das práticas de mercado, que não venham a guardar relação com a racionalidade econômica das operações de ancoragem, poderia caracterizar, nesses casos extremos, um meio indireto de infringir o princípio do tratamento equitativo dos destinatários da oferta ou a regra da unicidade de preço de oferta.


Pablo Renteria ([email protected]) é sócio-fundador do Renteria Advogados e professor de direito civil da PUC-Rio. Foi diretor e superintendente da CVM.


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