A Medida Provisória (MP) 897, publicada no último dia 2 de outubro, apresentou duas novidades em matéria imobiliária: o patrimônio de afetação sobre imóveis rurais e um título de crédito denominado cédula imobiliária rural (CIR). Embora tenham despertado pouca atenção durante os debates na gestação da MP, essas inovações representam mudanças paradigmáticas para o crédito imobiliário no País. No entanto, o texto, pouco técnico, tem provavelmente significado mais risco que avanço.
Passados dois meses da publicação, a comissão mista do Congresso Nacional que a analisa acaba de divulgar o parecer do relator, com tímidas alterações à MP. Há ainda espaço para reverter seu saldo negativo? Pensamos que sim.
O texto tem ao menos dois problemas fundamentais. O primeiro consiste na concepção de patrimônio de afetação. De um lado, a sua limitação ao imóvel, sem abranger direitos e obrigações do empreendimento rural, representa configuração pouco usual. De outro, causa estranhamento a regra prevista na MP que afasta da proteção da afetação todos os débitos trabalhistas e fiscais do produtor, ainda que não relacionados ao empreendimento. Ao final, é incerto se haverá qualquer ganho de segurança ao produtor e ao credor.
A segunda e maior preocupação decorre da CIR. Um artigo da MP a define, em dois incisos, como representativa de: “I- promessa de pagamento em dinheiro, decorrente de operação de crédito (…)” e “II – obrigação de entregar, em favor do credor, bem imóvel rural (…) que seja garantia da operação de que trata o inciso I, nas hipóteses em que não houver o pagamento da operação até a data do vencimento”. Em essência, a natureza do título é aquela do primeiro inciso: título de crédito devido em dinheiro. O inciso II apenas lhe acresce um elemento de garantia em que, após o vencimento, a obrigação de pagamento em dinheiro é convertida em entrega do imóvel ao credor.
Essa garantia, que já era conhecida dos romanos nos tempos mais primitivos, denomina-se “pacto comissório”. Com o avanço da ciência jurídica, logo percebeu-se que o objeto da garantia deveria ser valorado, para que não houvesse simplesmente sua perda em favor do credor. O imperador Constantino proibiu o pacto comissório no ano 320 d.C. e passou-se, então, a determinar a venda do bem em leilão, pagando-se o saldo devedor com o dinheiro arrecadado e devolvendo ao devedor o montante excedente. Alternativamente, a apropriação do bem poderia ser realizada quando determinado seu justo valor. De modo semelhante ao leilão, o credor “compraria” o bem do devedor, utilizando seu crédito como parte do pagamento. Essa alternativa resultou na hipótese de adjudicação no processo judicial.
O pacto comissório permanece proibido em todos os sistemas desenvolvidos do Ocidente, seja nos de common law, seja nos de origem latina — a França admitiu a apropriação privada por justo valor em 2006, com a denominação equivocada de “pacto comissório”, constituindo a única (e falsa) exceção. Na jurisprudência brasileira, não há sequer dúvida: tanto o Supremo Tribunal Federal (STF) quanto o Superior Tribunal de Justiça (STJ) não admitem o pacto comissório, considerado inconstitucional. Eis a surpresa geral quando medida provisória contraria algo que, há quase dois milênios, é considerado a melhor prática jurídica e — também — econômica.
Ao contrário do que pretende, a regra constante de MP representa grave risco ao mercado de crédito. Isso porque o STF, na esteira de um movimento protecionista, ameaça julgar inconstitucional, de uma só vez, o leilão extrajudicial da alienação fiduciária de imóvel1 e a excussão da hipoteca sob o Decreto-Lei 70/19662. Nesse cenário, o mecanismo introduzido pela MP é munição gratuita para quem pretende restringir os meios de execução do credor.
Isso não significa que devamos ser avessos à inovação. Ao contrário, há espaço (necessário) para aprimoramento.
Atualmente, com a tendência internacional de desjudicialização, passou-se a admitir ambos os meios de excussão de forma privada. A venda privada encontra semelhança no modelo adotado no Brasil, apesar de restrito à alienação fiduciária de imóvel. Já a apropriação privada por justo valor, conhecida como “pacto marciano”, permanece desconhecida da legislação brasileira, embora admitida por boa parte da doutrina.
Em 2016, a ONU aprovou, com o voto do Brasil, a lei-modelo para garantias. Seu texto, de clara inspiração no sistema dos EUA, admite a excussão extrajudicial de garantias por venda e por apropriação privadas, em ambos os casos com devolução do valor excedente. A exigência de ambas as alternativas privadas está refletida na metodologia do relatório Doing Business, do Banco Mundial, em matéria de crédito — ranking em que, por sinal, o Brasil tem péssimo desempenho.
Não há dúvida de que uma melhor regulamentação da excussão extrajudicial traria estímulo ao crédito no Brasil. Também não se questiona que o caminho do pacto comissório constitui um grave equívoco. A doutrina internacional, nos parece, já oferece uma melhor solução para o País. Seria prudente e oportuno aproveitá-la.
*Fábio Rocha Pinto e Silva ([email protected]) é doutor em direito civil e presidente da comissão de crédito imobiliário e garantias do Instituto Brasileiro de Direito Imobiliário (Ibradim)
Notas
1RE 860.631/SP
2RE 627.106
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