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O que é preciso para o trust evoluir no Brasil?
Apesar da reconhecida validade do instrumento perante o Direito brasileiro, falta de clareza de seu tratamento legal leva a diversas dúvidas
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No Brasil, ainda não existe nenhuma lei que regule expressamente a figura do trust | Imagem: Freepik

Foi o historiador inglês Frederic Willian Maitland quem disse que o trust é “uma instituição tão flexível, tão geral quanto o contrato… e, talvez, a realização mais original obtida pelos juristas ingleses.” Trata-se de uma criação jurídica destinada à proteção e exploração econômica da propriedade e que foi se constituindo ao longo dos séculos na Inglaterra, por meio de regras formadas pelos julgamentos das Cortes de common law e, principalmente, das Cortes de equity, quando da análise de casos que envolviam o desmembramento do direito de uma propriedade em favor de terceiros. 


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Para se ilustrar a origem da figura aqui tratada, imagine-se que, na época do baixo medievo, cavaleiros feudais detinham o domínio de grandes imóveis rurais. Quando precisavam abandonar suas terras para partir para as cruzadas, em direção à Terra Santa e para Jerusalém, esses senhores conferiam o domínio da terra a uma pessoa de confiança, para administrá-la em favor de seus familiares.  

Ao longo do tempo, os precedentes judiciais foram formando regras claras sobre esse tipo de relação jurídica, que hoje possibilita que um indivíduo (denominado de settlor ou grantor) transfira a sua propriedade sobre determinados bens ou direitos para uma pessoa de sua confiança (o trustee), condicionando o exercício desse direito de propriedade em favor de um beneficiário, ou então, para a concretização de um objetivo social ou fim econômico específico.  

Assim, a propriedade sobre o bem ou direito objeto do trust se divide em duas: a propriedade jurídica (legal estate) e a propriedade econômica (equitable estate). A propriedade jurídica é exercida pelo trustee, que deve guardar e administrar os bens, nos termos determinados pelo settlor no instrumento de constituição do trust (o trust deed). Já a propriedade econômica é exercida pelo beneficiário que, em virtude de tal titularidade econômica (equitable title), possui o direito de receber os frutos da exploração econômica dos bens consignados no trust, também dentro das condições estabelecidas pelo instituidor.  

Usos diversos 

Em virtude da versatilidade da situação acima descrita, atualmente o trust é utilizado para a concretização de diversas finalidades econômicas dentro da sociedade: a curadoria de bens de incapazes, o exercício de atividades filantrópicas, a realização de atividades securitárias e financeiras, a estruturação de fundos de investimento, a administração profissional de patrimônio, a consecução de objetivos associativos ou societários, além de possibilitar — de forma segura e eficiente — o planejamento sucessório e tributário do patrimônio familiar.  

Sendo uma figura originária do Direito anglo-saxão, o trust é muito utilizado no Direito inglês e no estadunidense, bem como em outras culturas jurídicas de países pertencentes à Commonwealth. No entanto, com o fenômeno da globalização, essa proteção jurídica ao direito de propriedade acabou se disseminando também em países de cultura jurídica descendente da Europa continental, principalmente naqueles signatários da “Convenção de Haia sobre a Lei Aplicável ao Trust”, assinada em 1 de julho de 1985, da qual o Brasil não participou. 

No que tange à sua utilização para fins de planejamento patrimonial, o trust é muito comum em jurisdições de tributação favorecida (os chamados paraísos fiscais), tanto por aqueles que agem dentro das leis, como também por aqueles que pretendem se valer ilegitimamente do instituto, como subterfujo para ocultar patrimônio obtido ilicitamente. Por isso, o trust já foi objeto de muitas polêmicas na mídia. Internacionalmente é muito ilustrativo o episódio do Panamá Papers. Já, no Brasil, a questão ganhou notoriedade em razão do trust descoberto no âmbito da Operação Lava-Jato, mantido no exterior pelo então presidente da Câmara dos Deputados, Eduardo Cunha, e que foi considerado instrumento de interposição fraudulenta para ocultação de patrimônio, tanto pela Justiça Criminal quanto pelo Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf).  

Apesar dos exemplos mencionados, o trust não pode ser generalizado como um mero instrumento de fraude e ocultação ilícita de ativos. Ele é um meio legítimo e útil para se estruturar e proteger patrimônio, sendo um dos institutos jurídicos mais relevantes desenvolvidos ao longo da história.  

Incertezas 

Apesar disso, no Brasil ainda há uma grande dificuldade de se tratar da matéria, já que não existe, até o momento, nenhuma lei que regule expressamente a figura do trust. Há apenas o Projeto de Lei 4.758, que tramita no Congresso Nacional. Em nosso Direito Civil também não existe hipótese legal de desmembramento da titularidade sobre o direito de propriedade, tal qual ocorre com o trust. Mesmo assim, os efeitos de trusts firmados no exterior são válidos perante o ordenamento jurídico brasileiro, já que os artigos 8º e 9º da Lei de introdução ao Direito brasileiro (LINDB) determinam a aplicação, no Brasil, da lei estrangeira, em caso de contrato firmado no exterior ou de bens localizados fora do País. 

Ainda que se tenha como premissa a validade, perante o Direito brasileiro, das regras de trusts firmados no exterior, a falta de uma lei expressa no Brasil continua gerando muitas incertezas, principalmente em relação ao tratamento fiscal a ser dado ao patrimônio ou renda decorrente de trust que tenha por instituidor ou beneficiário pessoa residente fiscal no Brasil. 

Em 2020 a Receita Federal do Brasil (RFB) emitiu resposta à consulta de uma viúva, beneficiária de trust instituído por seu falecido marido nas Bahamas. A dúvida da contribuinte era se deveria recolher imposto de renda sobre os valores recebidos do trust, em virtude da morte de seu marido.  

Ao responder à consulta, sem esclarecer a que título esses valores estavam sendo transferidos à viúva, a RFB manifestou entendimento de que haveria incidência de imposto de renda. Contudo, a depender do que estava sendo de fato transferido à beneficiária, a conclusão pode ser muito questionável. Caso ela estivesse recebendo o fruto da exploração do capital, ainda sob a guarda do trust, de fato haveria argumentos para se defender a incidência do imposto. Por outro lado, caso o que estivesse sendo transferido fosse o próprio capital, em razão da extinção da titularidade do trustee sobre os bens do trust, condicionada à morte do instituidor (marido da beneficiária), não se trataria de rendimento tributável, mas sim de transferência gratuita de capital — algo semelhante ao recebimento de uma herança.  

Em linha com a posição da RFB, em 2021, a 11ª Vara Cível da Justiça Federal de São Paulo considerou ser devido imposto de renda sobre valores recebidos por residente fiscal brasileiro, beneficiário de trust firmado na Nova Zelândia. Mais uma vez se ignorou a natureza das transferências, o que gera muitos questionamentos sobre a decisão como um possível precedente persuasivo a ser seguido por outros magistrados. Atualmente, esse processo encontra-se pendente de julgamento pelo Tribunal Regional Federal da 3ª Região. 

Essas situações evidenciam que, apesar da reconhecida validade do trust perante o Direito brasileiro, a falta de clareza de seu tratamento legal leva a diversas dúvidas, causadoras de insegurança jurídica e inimigas do progresso econômico. Isso precisa ser mudado, de modo que os efeitos patrimoniais e fiscais do trust tenham o devido tratamento jurídico pelo nosso Direito pátrio. 

Caio Malpighi é advogado no escritório Mannrich e Vasconcelos Advogados e pesquisador do Núcleo de Estudos Fiscais (NEF) da FGV Direito de São Paulo e do Núcleo de Pesquisas do Mestrado Profissional em Direito Tributário Internacional e Comparado (Nupem) do IBDT. 

 

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