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O atavismo na reforma da Lei das Estatais
É manifestamente contrária ao interesse público a tentativa de revogação do diploma pelo atual governo
Lei das Estatais, O atavismo na reforma da Lei das Estatais, Capital Aberto
Se concretizada, reforma da Lei das Estatais caracterizará indesejável volta ao passado. | Imagem: Freepik

Em sua novela “Antes de Adão”, Jack London conta uma história singular. O narrador e personagem principal, durante sua infância, sonha todas as noites que está vivendo na época em que nossos ancestrais ainda habitavam em árvores, quando a queda era uma ameaça constante e poderiam ser devorados por predadores. Um período em que o homem, tal como hoje o conhecemos, ainda não existia, embora estivesse em processo de evolução. O perigo maior nos sonhos do narrador era um membro da tribo, o Olho Vermelho. De porte descomunal, agressivo, andava em quatro patas, atacando os demais e matando brutalmente suas companheiras. Era uma criatura do passado que insistia em viver no presente, impondo sua presença na brutalidade. Revertia ao tempo mais primitivo dos habitantes das árvores, mas não mais pertencia àquela época e lugar; era um atavismo.


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Impossível não evocar a imagem do atávico personagem à pretendida reforma da Lei das Estatais (Lei 13.303/16), que, se concretizada, caracterizará uma indesejável volta ao passado.

Após suas invectivas contra algumas das principais instituições republicanas (educação, cultura, saúde, meio ambiente e povos originários, minorias raciais e identitárias, urnas eletrônicas e Poder Judiciário), o governo agora tem como alvo a Petrobras. Sua intenção é interferir na gestão da petroleira para evitar o aumento dos preços dos combustíveis, pelo menos até as eleições presidenciais. Contando com um aliado de peso, o Centrão, o governo parece pretender ampliar o leque da discussão para revogar a Lei das Estatais e, com isso, facilitar o processo de aparelhamento e apadrinhamento nas empresas públicas e sociedades de economia mista.

A Lei 13.303/16 foi promulgada para regular o artigo 173, parágrafo primeiro da Constituição, após quase 20 anos desde a edição da Emenda Constitucional n. 19, de 1998. A Lei visou principalmente evitar a indevida influência política do governo nas sociedades de economia mista. À época, a Eletrobrás, com o voto da União, sua então acionista controladora, aceitou a renovação antecipada de contratos de geração e transmissão de energia elétrica mediante redução de sua remuneração, nos termos da MP 579/12, que traz más memórias. Esse caso, somado a outros revelados pela Operação Lava Jato, evidenciou a necessidade de aprimoramento da governança das sociedades de economia mista, “blindando-as” contra a atuação política do governo.

Méritos da Lei das Estatais

Diante desse contexto, é válido destacar algumas inovações da Lei das Estatais. Em primeiro lugar, ela consolidou, num só diploma legislativo, os contratos e as licitações da administração pública, antes disciplinados em leis esparsas e às vezes conflitantes. Em segundo lugar, fortaleceu as exigências de transparência, ao dispor que todas as sociedades de economia mista, inclusive as de capital fechado e suas subsidiárias, devem observar as disposições da Lei das S.As. e as normas da CVM sobre escrituração e elaboração de demonstrações financeiras, dentre elas a obrigatoriedade de auditoria independente. Ademais, estabeleceu que o conselho de administração dessas empresas deve elaborar uma carta anual explicitando os compromissos na execução de objetivos de políticas públicas, com a definição dos recursos neles empregados; divulgar informações sobre suas estruturas de controle e fatores de risco, bem como sobre sua política de dividendos; e fixar uma política de transações com partes relacionadas, objetivando principalmente sua transparência e comutatividade.

É claro que a Lei tem alguns defeitos, principalmente de redação, às vezes prolixa e pouco técnica. Mas, no momento, ela está sendo alvo de ataques por causa de suas principais virtudes: as normas sobre governança e os limites ao exercício do poder por parte do acionista controlador, que garantem independência às sociedades de economia mista.

Muitas vezes as ações clientelísticas do governo redundavam no “loteamento” dos cargos de direção em sociedades de economia mista, seja para atender pedidos de políticos aliados, seja para acomodar candidatos que não se elegeram, ou ainda para ter administradores “dóceis” aos comandos do acionista controlador. Para impedir ou mitigar tais práticas, a Lei 13.303/16 estabeleceu requisitos mínimos para a indicação dos membros do conselho de administração das sociedades de economia mista, bem como novas hipóteses de impedimento ao exercício de tais cargos, além daquelas já previstas na Lei das S.As. De acordo com o artigo 17 da Lei das Estatais, os conselheiros devem ter experiência profissional de, no mínimo, dez anos na área de atuação da empresa ou de quatro anos em cargo de chefia em empresa de porte ou objeto social semelhante. Ademais, dentre outras vedações, proíbe que sejam conselheiros pessoas que tenham atuado nos 36 meses precedentes em partidos políticos ou participado em campanha eleitoral. Além disso, é vedada a ocupação remunerada de membros da administração pública em mais de dois conselhos de administração ou fiscal de sociedade de economia mista ou de suas subsidiárias. Segundo o artigo 22 da Lei das Estatais, o conselho de administração deve ser composto por, no mínimo, 25% de membros independentes.

Como se vê, estamos diante de normas de elevado teor moralizante, que obrigam as estatais e companhias de capital misto a terem gestão técnica e profissional, o mais independente possível de pressões por parte de políticos e do próprio governo.

Objetivos da sociedade de economia mista

Embora apresente uma estrutura de Direito Privado, nos termos da Constituição, a sociedade de economia mista é instituída para alcançar objetivos de interesse público. Persegui-los é obrigação do Estado, que deve atuar no interesse da comunidade. Ademais, deve a sociedade de economia mista, que conjuga capitais públicos e privados, buscar o escopo lucrativo, comum a toda companhia. Cabe assim à sociedade de economia mista conciliar a finalidade lucrativa com o interesse público que orientou a sua criação, podendo também atuar no desenvolvimento de projetos de interesse da comunidade, como na educação, cultura, preservação do meio ambiente, etc.

Quando o acionista controlador desvia-se de tais objetivos para atender fins pessoais, caracteriza-se o abuso do poder de controle, que enseja a sua responsabilidade. A União por exemplo, comete abuso de poder de controle quando orienta sociedade de economia mista, como a Petrobras, não para seus objetivos legítimos (atender ao interesse público e obter lucros), mas para fins eleitoreiros, como ocorre com a tentativa de “congelar” os preços dos combustíveis, ou quando remove, com seu voto na assembleia geral da companhia, administradores que não seguem suas orientações contrárias ao interesse social.

É manifestamente contrária ao interesse público a tentativa de revogar a Lei das Estatais. Trata-se de movimento atávico, de verdadeira volta indesejada ao passado. Cabe aos partidos de oposição, particularmente ao PT, ora com maior viabilidade na corrida para a eleição do próximo presidente, lutar contra sua revogação, até mesmo para demonstrar que não pretende repetir erros do passado.

*Nelson Eizirik é sócio do Eizirik Advogados e professor da FGV Direito Rio

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