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Proposta de código comercial ameaça vencer pelo cansaço
Embora a ideia de codificação já seja ultrapassada, tramita no Congresso projeto que pode reavivar assunto que parecia enterrado
Código comercial pode ser reavivado pelo Congresso

* Carlos Portugal Gouvêa | Ilustração: Julia Padula

A intenção de edição de um novo código comercial1 no Brasil arrasta-se já há alguns anos, e com algumas dificuldades. Tudo indica que a simples ideia relacionada a um código, qualquer código, é datada. A codificação moderna surgiu após a Revolução Francesa, como um mecanismo para se atingir dois objetivos políticos relevantes: reduzir o poder político dos juízes, os quais eram predominantemente membros da nobreza, e lidar com a dificuldade de explicar conceitos jurídicos complexos para uma população majoritariamente analfabeta. Mais tarde, após a Crise de 1929, houve a ascensão de um novo tipo de Estado, chamado de “Estado regulador”, baseado na existência de setores regulados de altíssima complexidade, como os setores financeiro, de mercado de capitais, de energia e telecomunicações, demandantes de leis especializadas e não mais de códigos pretensamente universalistas.

Vivemos agora em uma sociedade na qual o Judiciário é parte do regime democrático e em que a internet ampliou o acesso à informação sobre o sistema jurídico. O país de grande porte cuja economia mais cresce no mundo, a China, segue sem precisar de um código comercial. Nos Estados Unidos, a maior economia mundial desde o fim da Segunda Guerra e muito diversa da chinesa, também não existe um código comercial nacional — há apenas um esforço autorregulado de unificação de alguns aspectos pontuais da legislação comercial estadual chamado de “Uniform Commercial Code”. A dúvida seria então se, atualmente, um código comercial, com a ideia de abarcar toda a matéria relacionada à atividade empresarial, não causaria mais danos do que benefícios, suscitando grande insegurança jurídica.

Projetos no Congresso

Até o início de 2019, tramitavam no Congresso Nacional dois projetos. O primeiro é o Projeto de Lei 1.572/11, da Câmara dos Deputados, apresentado pelo deputado Vicente Cândido (PT-SP), contando com 670 artigos. Pouco antes, o professor Fábio Ulhoa Coelho havia publicado um livro que continha uma minuta de anteprojeto de código comercial2, com um texto praticamente idêntico ao do projeto de lei. O segundo é o Projeto de Lei 487/13, do Senado Federal, apresentado pelo senador Renan Calheiros (MDB) — teve por origem um anteprojeto de 1.102 artigos.

Ambos os projetos foram duramente criticados. Do ponto de vista do conteúdo, por exemplo, o professor Erasmo Valladão Azevedo e Novaes França criticou a prolixidade do PL 1.572/11, que pretendia regular matérias muito díspares, da figura do empresário às sociedades empresárias, incluindo títulos de crédito, recuperação judicial e o chamado “processo empresarial”. O projeto original pretendia abordar até mesmo a sociedade anônima, com o risco de alterar anos de desenvolvimento da jurisprudência administrativa e judicial do País sem um propósito claro.

Do ponto de vista da inconveniência da promulgação de um novo código comercial, nomes como os professores Haroldo Malheiros Duclerc Verçosa e Rachel Sztajn, entre outros, destacaram a contribuição do jurista italiano Natalino Irti que, há 40 anos, na obra L’età della decodificazione (Milano, Giuffrè, 1979), já verificava a tendência de declínio dos códigos e a prevalência de normas especiais, criadoras de verdadeiros microssistemas jurídicos orientados pelos princípios constitucionais e capazes de lidar com a complexidade da sociedade capitalista moderna.

Em maio de 2014, a professora Luciana Yeung publicou um estudo voltado a mensurar os impactos da promulgação dos projetos. Partindo de um número ainda limitado de artigos (os mais aptos a gerar insegurança jurídica), o estudo apontou potenciais gastos milionários a cargo das empresas — de, aproximadamente, 83 milhões de reais (PL 1.572/11) a 137 milhões de reais (PL 487/13) por ano — como consequência de um provável incremento de milhares de litígios judiciais a cada ano.

“Código da prosperidade”

Os projetos ganharam novas versões ao longo dos últimos anos, com diversas alterações pontuais insuficientes para fazer frente às críticas. Com a mudança de governo e de comando no Congresso Nacional, a ideia que parecia enterrada renasceu recentemente no Senado Federal, sob a forma de um texto substitutivo ao PL 487/13. O novo texto, que está sob responsabilidade da senadora Soraya Thronicke (PSL), atual relatora do projeto, ainda não foi oficialmente divulgado ao público. Não obstante, já se noticiou que se trata de um projeto mais modesto, com 173 artigos, os quais tratariam apenas de “pontos urgentes”. A senadora, em vídeo postado em 21 de agosto de 2019, comemora a promulgação da MP da Liberdade Econômica e indica que o que seria então chamado de “Código da prosperidade” representaria o passo seguinte à aprovação da MP. Operou-se, então, uma mudança ideológica radical, considerando-se a origem do projeto.

Entre as principais novidades, está a criação da sociedade anônima unipessoal, e um “regime fiduciário” para o empresário individual, com a criação de um patrimônio exclusivo da empresa, que teria por função blindar o patrimônio pessoal. São medidas que podem ter mérito individual e que merecem ser debatidas. Existem outras alterações que merecem discussão, como uma possível reforma no regime das leis das sociedades limitadas.

No entanto, não parece adequado consolidar essas mudanças em algo que venha a se chamar de um “código comercial”. Seria melhor chamar esse esforço de uma lei de “modernização do Direito comercial” ou qualquer outro título grandiloquente. A ideia de codificação faz parte do passado, de uma época em que líderes políticos, como Napoleão Bonaparte, desejavam ficar para a história como patronos de peças legislativas, seguindo o exemplo do imperador romano Justiniano. Em uma sociedade democrática, livre de personalismos, seria recomendável deixar o apego a um mero nome, o de um “código”, em prol de maior segurança jurídica. É hora de nos dedicarmos a um trabalho meticuloso e difícil: melhorar continuamente as milhares leis que de fato afetam a atividade empresarial no Brasil.


* Carlos Portugal Gouvêa ([email protected]) é sócio do escritório PGLaw, professor de Direito comercial da USP e doutor pela Universidade de Harvard


Notas

1O atual código comercial brasileiro, de 1850, teve quase todas as suas matérias revogadas pelo Código Civil de 2002 excedo as de Direito marítimo.

2O futuro do Direito Comercial, São Paulo, Saraiva, 2011


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código comercial, Proposta de código comercial ameaça vencer pelo cansaço, Capital Aberto


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