Os primeiros efeitos de um aperto de liquidez são o esgotamento das fontes de financiamento e a elevação das taxas cobradas pelos financiadores, que passam a exigir um prêmio maior vis-à-vis o aumento da aversão ao risco. O grau de endividamento das empresas cresce, as receitas caem e a piora dos balanços e o estrangulamento de garantias tornam a captação uma missão quase impossível.
Nos últimos anos, uma nova fonte de liquidez tem despertado a atenção das empresas: a negociação estruturada de ativos contingentes ilíquidos. Trata-se muitas vezes de créditos não performados, que ainda dependem de prazos e eventos para que sejam classificados como uma entrada provável de recursos e, assim, reconhecidos nos balanços. São os chamados ativos alternativos, ou special situations no jargão utilizado pelos investidores americanos.
Uma dessa classes de ativos tem conquistado maior evidência: os direitos creditórios que são objeto de discussões judiciais e/ou administrativas. Justamente por envolverem um tempo incerto e variáveis jurídicas capazes tanto de afetar o valor de face quanto de anular o seu recebimento, é comum que esses direitos apareçam, quando muito, mencionados nos formulários de referência e nas notas explicativas das demonstrações financeiras.
O tema não é novo. Sempre existiu um mercado de negociação de precatórios (direitos creditórios oriundos de uma discussão judicial já transitada em julgado), durante muitos anos fomentado por contribuintes que os adquiriam com o objetivo de oferecê-los em garantia de execuções fiscais. Entretanto, a experiência frustrada na aceitação desses papéis pelo fisco acabou limitando esse mercado aos que visavam tão somente o diferimento da cobrança pela Fazenda, utilizando o fator tributário como vantagem competitiva de preço.
A existência de um mercado cada vez mais ativo, fruto da necessidade de diversificação e de criatividade em uma realidade de Selic em patamares inferiores a 6% ao ano, tem estimulado cada vez mais a entrada de novos investidores nesse mercado, agora com o objetivo de carregar o ativo até o seu recebimento ou de revendê-lo a outros investidores no secundário.
A dificuldade na precificação das negociações — dadas as incertezas relacionadas a tempo e valor e as subjetividades próprias do Judiciário brasileiro — acabou exigindo um maior grau de sofisticação na estruturação. Pode-se afirmar que cerca de 70% das operações realizadas atualmente envolvem o pagamento inicial (true sale, sem direito de regresso) e um complemento de preço variável atrelado ao efetivo pagamento pelo devedor (União, estados, municípios, estatais, empresas de economia mista ou mesmo privadas).
Do lado das empresas, a operação se assemelha muito mais a um private equity do que propriamente à captação de um empréstimo. Muitos desses direitos creditórios são objetos de ações judiciais que ainda se arrastarão por 5, 10, 15 anos, demandando um investimento em advogados (internos e externos) e um tempo que poderia ser mais bem alocado no core business da empresa. Parece fazer todo sentido a lógica de trazer um “sócio” que se dedicará exclusivamente ao tema, com a intensidade e a profundidade que tais discussões jurídicas exigem. Esse é o conceito. Diferentemente do empréstimo, a única fonte de pagamento é o próprio ativo. É justamente esse o risco que justifica retornos de ao menos 25% ao ano para o investidor.
Do lado dos investidores, o mais difícil tem sido o entendimento de que esses atrativos retornos apenas se materializam de fato com uma análise profunda tanto da tese jurídica quanto dos riscos de contraparte e de capacidade de pagamento do devedor. Daí porque essas operações, quando bem estruturadas, contam com a ajuda não apenas de escritórios renomados, mas também de peritos, auditores e consultores. É um trabalho árduo e muitas vezes desperdiçado. Esse é outro um motivo pelo qual esses investimentos se justificam apenas em cenários de retornos superiores a 25% ao ano.
Em meio ao contexto da pandemia — e com o inevitável aperto de orçamento que obrigará os entes federativos a pressionar o Congresso para a aprovação de medidas legislativas que lhes permitam postergar o pagamento das suas dívidas judiciais —, parece interessante realizar e levar a resultado uma parcela desses ativos como estratégia de gestão. Já há, inclusive, movimentações legislativas para a suspensão do pagamento de precatórios no ano de 2020 e alongamento do prazo limite de pagamento de estados e municípios de 2024 para 2030.
Os efeitos positivos podem ser os mais diversos. O primeiro é a melhora do balanço, dado que o caixa gerado na operação é levado a resultado. Outro, menos óbvio, é a utilização desses recursos por empresas listadas na recompra de ações da própria emissão a um preço atrativo, dada a desvalorização recente. É uma alternativa interessante até mesmo para bancas de advogados, que podem antecipar as receitas de honorários contratuais de êxito e empregar os recursos no custeio de folha salarial durante o período de quarentena.
Tanto do lado das empresas quanto dos investidores, é fundamental uma compreensão profunda do tema, que demanda uma abordagem multidisciplinar: jurídica, contábil, orçamental e financeira. A insegurança jurídica, típica do nosso Legislativo e Judiciário, é fator decisivo a ser considerado na tomada de decisões por ambas as partes. Uma vez bem estruturada, não há dúvida que tende a se tornar cada vez mais uma fonte alternativa de liquidez para as empresas em meio à recessão e com uma relação risco versus retorno adequada sob a ótica do investidor disposto a entrar nesse mercado de forma prudente.
*Daniel Cardoso ([email protected]) é advogado em São Paulo e mestre em Direito econômico e financeiro pela USP
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