Indicação obrigatória de tratamento fiscal incerto no balanço das empresas é positiva?
Regra contábil visa demonstrar a real alíquota efetiva dos tributos sobre o lucro, mas levantou dúvidas se poderia gerar autuações antecipadas do Fisco
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Rafael Palma Bifano/ Ilustração: Julia Padula

SIM

No final de 2018, a Comissão de Valores Mobiliários (CVM) e o Conselho Federal de Contabilidade (CFC) aprovaram a Interpretação do Comitê de Pronunciamentos Contábeis nº 22 (ICPC 22), denominada “incerteza sobre tratamento de tributos sobre o lucro”. Os órgãos editaram, respectivamente, a Deliberação 804/18 e a CFC-ITG 22. O escopo da ICPC 22 é o tratamento da divulgação de posições incertas na interpretação da legislação atinente aos tributos sobre o lucro — o que significa, essencialmente, o Imposto sobre a Renda (IR) e a Contribuição Social sobre o Lucro Líquido (CSLL).

A norma, que tem caráter interpretativo, é conexa a outras regras contábeis — notadamente os pronunciamentos CPC 32 (tributos sobre o lucro) e CPC 26 (apresentação das demonstrações contábeis) — e esclarece alguns balizadores que a administração de uma entidade deve observar ao confeccionar os seus demonstrativos contábeis, e que já eram tratados nesses pronunciamentos. No caso específico, o objetivo é melhor demonstrar ao usuário dos balanços a real alíquota efetiva dos tributos sobre o lucro, baseando esse indicador na apuração dos tributos, tais quais provavelmente sejam aceitos pelas autoridades fiscais.

Não há como negar que, do ponto de vista do acionista, a rentabilidade do investimento deve tomar em consideração indicador que se aproxime ao máximo da realidade. Nesse sentido a norma é inegavelmente positiva, afora ser nada mais do que justa, como prestação de contas do administrador aos sócios.

Existe um outro reflexo, até mais positivo que o aumento da transparência, provocado pela regra. Trata-se de um forte estímulo à consolidação da boa governança tributária, na medida em que a administração da entidade deve estar apta a suportar todas as suas posições perante os donos da empresa e demais interessados, o que exige um processo decisório bastante consistente.

A norma é um forte estímulo à consolidação da boa governança tributária

Há indicadores sugerindo que nem sempre a prática é essa. Um exemplo emblemático foi o que aconteceu no Brasil durante o chamado “Refis da crise”, aplicável a qualquer um desses programas. Durante anos empresas apuraram os seus tributos sobre o lucro assumindo posicionamentos para os quais havia baixa probabilidade de ganho perante um tribunal, sem evidenciar essa decisão para os seus acionistas. Ao ser publicada a norma do Refis, subitamente surgiram pesadas contas a pagar nos balanços dessas empresas, pois a condição de pagamento estaria “muito favorável”.

Aos acionistas, certamente causou desconforto a decisão de pagar-se uma conta, que não era devida, em razão de uma condição de pagamento favorável. Afinal, o que seria mais favorável do que nem ter de pagá-la?

O fato é que a posição incerta não havia sido claramente evidenciada e refletida nos demonstrativos contábeis. Se fossem utilizados os parâmetros da ICPC 22, talvez menos acionistas tivessem ficado surpresos com a imediata migração de um valor da categoria de contingência de perda remota para a de dívida confessada, líquida e certa.

Em suma, àqueles que utilizam critérios consistentes para a tomada de decisões em matéria tributária, a nova norma pouco agrega. Mas às entidades que tenham políticas e padrões inconsistentes, ela trará sim muito o que pensar e aprimorar.


Rafael Palma Bifano ([email protected]) é advogado tributarista no PLKC Advogados


 

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Vanessa Rahal Canado/ Ilustração: Julia Padula

NÃO

A Comissão de Valores Mobiliários (CVM) aprovou, em dezembro passado, a Deliberação 804. A norma incorporou a Interpretação do Comitê de Pronunciamentos Contábeis nº 22, que obriga as empresas a reconhecer contabilmente (e não apenas a divulgar) incertezas sobre a aplicação de regras dos tributos sobre o lucro — no Brasil, o imposto de renda (IRPJ) e a contribuição social sobre o lucro (CSLL).

Mas, não há, no País, ambiente institucional para aplicação dessa regra. Por aqui, a incerteza é a regra. Somos diferentes dos demais países em muitos aspectos: temos um sistema duplo de contestação de autos de infração (esferas administrativa e judicial) e um Judiciário sem especialidade na matéria; são frágeis os processos de interlocução entre fisco e contribuintes. Os processos de consulta não têm funcionado como canal de comunicação, tampouco os programas de cooperative compliance ganharam a credibilidade de que precisavam. Nossa legislação tributária é muito complexa: são numerosas diferenciações que multiplicam as possibilidades interpretativas, favorecendo o planejamento tributário, a arbitrariedade e o contencioso.

Antes de implementarmos o disclosure pretendido pela ICPC 22, precisamos reformular os processos
de integração entre os vários órgãos da Fazenda (elaboração, regulamentação, interpretação, aplicação e julgamento) e garantir segurança jurídica ao contribuinte. Nossos problemas tributários resultam, basicamente, de quatro fatores: má política tributária, com uma legislação recheada de tratamentos diferenciados, induzindo escolhas e classificações que sempre podem ser questionadas; regulamentações complexas e que desvirtuam o objetivo do legislador; interpretações tardias e reinterpretações retroativas; e falta de coordenação entre os órgãos de interpretação, autuação e julgamento, que gere previsibilidade sobre a posição oficial do fisco.

Não há no Brasil ambiente institucional para aplicação dessa regra

Segurança jurídica não é um mito. Ao contrário, requer padrões legais claros e procedimentos concretos de interlocução e solução de dúvidas e conflitos. Se há prazo para as consultas serem respondidas, ele deve ser atendido. Se não há, deveria haver. Se a legislação tributária está repleta de tratamentos diferenciados e incentivos (aliás, muitas vezes equivocados), têm que existir procedimento e prazo para coordenação da atuação da Receita Federal com a revisão das normas que geram o contencioso. Se as audiências públicas precedem a publicação de normas infralegais, elas devem ocorrer sempre e ter prazos invariáveis. Não se pode esperar que isso dependa da vontade do gestor do momento.

É preciso enfrentar nossos problemas institucionais com práticas e estudos. Não teremos um ambiente imparcial, que permita a aplicação da ICPC 22, apenas com boa vontade e regras pontuais. Isso requer mudança da cultura organizacional; é preciso revisar e padronizar os processos internos que abrangem elaboração, revisão, interpretação e aplicação da legislação tributária. A brincadeira de gato e rato entre fisco e contribuintes já causou prejuízos suficientes e que vão muito além de mais essa batalha pela efetividade do IFRS no Brasil.


Vanessa Rahal Canado ([email protected]) é advogada no Derraik & Menezes e pesquisadora do Insper


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