Sim, a B3 acertou ao admitir, no Nível 2, companhias que emitiram ações preferenciais cujos proventos são bem maiores que os pagos ao titular de ordinárias, as chamadas superPNs.
A questão surgiu quando a Azul, ao pleitear seu registro de companhia emissora na CVM, teve seu pedido indeferido pela área técnica, que entendeu que as superPNs não observavam o disposto no artigo 15 da Lei 6.404/76, que trata do limite de ações PN em relação ao total de ações emitidas. A decisão foi, no entanto, reformada pelo colegiado da CVM, que reconheceu poder a companhia emitir superPNs, visto que o limite legal diz respeito à quantidade de ações emitidas, e não à exposição econômica por elas proporcionada, e que a lei prevê, como uma das preferências possíveis das PNs, o direito ao recebimento de dividendo no mínimo 10% superior ao pago às ONs, sem teto.
Resolvida a questão da legalidade do conceito, os críticos voltaram-se contra a listagem de superPNs em segmentos especiais. O argumento é que eles deveriam ser reservados para companhias aderentes a boas práticas de governança corporativa, ao passo que a adoção de superPNs iria de encontro a essa ideia, por potencializar o desalinhamento de interesses entre o controlador e os preferencialistas.
É preciso lembrar que é de natureza contratual o compromisso entre companhia e acionista controlador, de um lado, e a B3, de outro, relativo à adesão ao conjunto de normas de um determinado segmento especial. Elas estão instituídas num regulamento, e a adesão ou não a certo segmento se dá pela observância desse regulamento. Nada há nos regulamentos dos segmentos especiais da B3 que admitem a emissão de PNs que impeça as companhias de emitir superPNs.
Poderiam os críticos dizer, ainda, que a B3 deveria exercer a discricionariedade prevista em seus regulamentos de listagem e, em nome da higidez do mercado, rejeitar essa listagem. Todavia, isso não poderia subsistir, pois rejeitar a listagem de uma companhia em um segmento especial simplesmente por ter emitido superPNs estaria longe de atender a esse princípio.
Nos casos concretos, as emissoras de superPNs buscaram atender aos requisitos do Nível 2, incluindo nos seus documentos de disclosure uma descrição clara dos direitos que essas ações conferem a seus titulares, bem como do risco de eventual desalinhamento entre os interesses de controlador e minoritários (potencializado pela desproporcional exposição econômica a que estão sujeitos). Uma vez feito o disclosure da forma exigida pela regulamentação, cabe ao investidor avaliar se a estrutura de capital com superPNs é justificável para a companhia, e com isso decidir se investe ou não.
Cabe ao investidor avaliar se a estrutura se justifica
Vale lembrar que um impedimento à listagem inviabilizaria o acesso ao mercado de capitais dessas companhias, uma vez que as instituições associadas à Anbima, por norma autorregulatória, só podem participar de IPOs e follow-ons de companhias que tenham aderido a um dos segmentos especiais.
Portanto, a B3 fez bem ao admitir a listagem de superPNs no Nível 2, reconhecendo a maturidade do mercado de capitais brasileiro, em que as companhias podem ajustar a sua estrutura de capital para atender às condicionantes legais de cada setor, sem prejudicar a listagem de suas ações — se o fizerem de forma lícita, justificada e com riscos devidamente divulgados.
É comum no mundo todo a utilização dos chamados mecanismos de alavancagem de controle. Trata-se de arranjos instituídos pelas companhias capazes de criar discrepâncias na relação entre a propriedade e o controle, resultando na possibilidade de que um acionista reforce sua posição de controle sem que haja correspondência com sua respectiva participação no capital da companhia.
Em países com regras mais brandas de proteção aos acionistas, como é o caso do Brasil — onde o potencial para a extração de benefícios particulares do controle é elevado —, os controladores buscarão financiamento para a companhia mediante o uso de expedientes que permitam não apenas a sua manutenção no controle, mas também que diminuam os impactos em sua participação na companhia na hipótese de tomada de decisões que afetem o patrimônio social.
É nesse contexto que aparecem as ações superpreferenciais. Elas possibilitam o exercício do controle da companhia por meio da titularidade de parcela ínfima de seu capital, o que leva a um quadro preocupante de distorção da essência da lei — especialmente na sua função de promover a organização dos direitos políticos e patrimoniais
dos acionistas.
Muito embora a emissão não seja proibida, a reforma na lei societária de 2001 (que reduziu o limite de emissão das ações preferenciais sem direito a voto) teve por objetivo corrigir a situação que permitia o exercício do controle com apenas 16,66% de contribuição para a formação do seu capital. Verificou-se que a possibilidade de manutenção do controle com tão pouco capital criava numerosas distorções, vindo a se transformar num dos principais entraves ao desenvolvimento do mercado de capitais.
Assim, como sustentar que, justamente em um ambiente que se propõe a estabelecer regras mais rígidas de governança, seja admitida a adesão de companhias emissoras de superPNs, que protegem apenas o controlador? Veja que, por meio da emissão dessas ações, além de o controlador ficar estável em sua posição, recebe a benesse de desembolsar muito pouco para comandar a sociedade; isso significa que seu patrimônio também estará a salvo caso tome decisões desacertadas na companhia.
Ação superPN distorce a essência da lei
A intensificação desse modelo pode promover não apenas um verdadeiro encastelamento do controlador, mas também o entrincheiramento dos administradores, uma vez que a sua permanência ou não na companhia depende, na maioria das vezes, apenas da vontade do controlador.
Nesses termos, não parece legítimo permitir que companhias com superPNs recebam o selo de qualidade em suas práticas de governança, sobretudo no momento em que escândalos políticos e financeiros têm emergido no País, com contribuição ao encolhimento do mercado.
Diante de toda evidência, o desafio atual está centrado na retomada e na sustentação do crescimento da economia do País e de sua competitividade frente ao restante do mundo. Para tanto, a força do mercado deve ser retomada com base na formatação de regras que despertem confiança nos investidores e financiadores.
Essa confiança, por sua vez, está fundamentalmente associada ao fim do fenômeno da manutenção do controle a qualquer custo — e isso, certamente, não se dá por meio de oportunidades que reforcem a posição estável de certos acionistas.
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