As leis e sua aplicação existem para punir ou inibir os crimes, mas os castigos podem perder a eficácia com o tempo. No caso do mercado de capitais brasileiro, a Lei 6.385, que criou a Comissão de Valores Mobiliários (CVM) e instituiu as penalidades a atos ilícitos, está tão ultrapassada que mal assusta os potenciais infratores. Ela completa 40 anos no fim de 2016, e as multas aplicadas tiveram seus valores atualizados pela última vez há 18 anos. Na época, estabeleceu-se três possibilidades de sanção pecuniária: 50% do valor da emissão ou operação irregular; três vezes o montante da vantagem econômica obtida; ou o teto de R$ 500 mil, quando as situações anteriores não são aplicáveis. Se a quantia fosse corrigida pela inflação medida pelo IGP-M de maio de 1997 a agosto de 2015, estaria hoje em torno de R$ 2 milhões. “Do jeito que está, o crime compensa”, observa Mauro Cunha, presidente da Associação de Investidores no Mercado de Capitais (Amec).
Diante da defasagem dos valores, a CVM levou ao Ministério da Fazenda, que possui competência para encaminhar projeto de lei ao Congresso, um pedido de revisão das penalidades. A iniciativa partiu do próprio presidente da CVM, Leonardo Pereira. “Punições mais rígidas tendem a inibir a prática de irregularidades e, consequentemente, permitir que o mercado esteja cada vez mais seguro. Esse é nosso foco”, resume a CVM. A autarquia não divulga em que proporção as penalidades podem crescer, mas se tiver levado em conta as sugestões do mercado, o aumento pode ser grande. Na opinião de José Alexandre Tavares Guerreiro, advogado e professor da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP), a multa de R$ 500 mil deveria ser elevada a ponto de se tornar “impagável”, para inibir os ilícitos de fato. “O valor atual é irrisório”, critica. Nelson Eizirik, sócio do Carvalhosa e Eizirik, compartilha a opinião. Ele observa que, como na maioria das vezes é difícil para a CVM determinar o montante da vantagem econômica obtida pelo infrator, a multa aplicada acaba sendo a de R$ 500 mil. Dada a sua defasagem, é possível que compense o risco de se praticar ilícito.
Prioridade correta?
Sócio do Stocche Forbes, Henrique Filizzola acredita que, antes de revisar as multas, a CVM deveria discutir como se aparelhar melhor. Ele reconhece que os valores são baixos, mas considera difícil chegar a montantes que resolvam o problema. “Muitas vezes o infrator, na análise do custo e do benefício de cometer a infração, conclui que o ato vale a pena. Mas não podemos virar uma indústria da multa.” Para ele, o ideal seria a CVM ter instrumentos para apurar mais atos ilícitos como o insider trading. “Aplicar melhor a norma talvez seja mais eficaz do que mudá-la”, afirma. Hoje, compete à CVM apurar responsabilidade pelo descumprimento de deveres fiduciários por parte de administradores das companhias abertas (dever de lealdade, dever de informar e dever de diligência). Casos que envolvem a prática de crimes de corrupção cabem às autoridades policiais e ao Ministério Público.
A CVM afirma que vem reforçando seu aparelhamento e os procedimentos para identificação de irregularidades. Por exemplo, estipulou metas internas para análise das investigações, com o objetivo de assegurar celeridade às análises de processos administrativos. Implantou a metodologia de Supervisão Baseada em Risco (SBR), na qual as áreas técnicas analisam todas as operações que se enquadram nos parâmetros e eventos de risco designados em um plano bienal e buscam identificar irregularidades e determinar a sua normalização, sob pena de adoção de medidas sancionadoras: “A autarquia tem sido mais vocal em relação às suas metas internas, tanto para análise das investigações quanto para a apreciação dos casos pelo colegiado”, afirmou em nota à capital aberto.
Uma ajuda importante poderá vir do Ministério da Fazenda, caso ele acate a proposta da CVM de incluir, na Lei 6.385, os acordos de leniência. Atualmente, observa Eizirik, o parágrafo 9o do artigo 11 da Lei 6.385 faz menção en passant à colaboração de infratores: o texto diz que suas declarações “serão consideradas”, mas não dá garantia real de reduzir a pena dos acusados que usarem os acordos. Por meio dos acordos de leniência, o investigado se compromete a auxiliar o regulador na apuração de ilícitos em troca de punição mais branda. Eles já são usados pela Securities and Exchange Commission (SEC) e, no Brasil, pelo Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade). Ajudariam a CVM a apurar infrações difíceis de investigar, como insider trading e prática fraudulenta no mercado, devido à participação de diversas pessoas.
O que diz a Lei
A CVM deve promover processo administrativo para investigar a ocorrência de irregularidades no mercado, ensejando aos acusados amplo direito de defesa.As sanções para quem descumpre as regras legais do mercado de valores mobiliários, sobretudo as normas editadas pela CVM, são: advertência, multa, suspensão ou inabilitação para o exercício do cargo, ou cassação da autorização ou do registro, bem como a proibição por prazo determinado para o exercício de atividades e operações do sistema de distribuição.Também o investidor pode ser proibido temporariamente de atuar, direta ou indiretamente, no mercado.A CVM tem a obrigação de comunicar ao Ministério Público quaisquer indícios de ilícito penal verificados nos processos sobre irregularidades no mercado. Da mesma forma, tratando-se de ilegalidade fiscal, deve encaminhar o processo à Secretaria da Receita Federal.Em matéria criminal, a Lei 10.303/2001 acrescentou à Lei 6.385/76 três delitos dolosos contra o
• mercado de valores mobiliários:
• manipulação de mercado;
• uso indevido de informação privilegiada;
• exercício irregular de cargo, profissão, atividade ou função.
As mudanças sugeridas pela CVM
• Aumento do valor das multas.
• Inclusão do acordo de leniência nos moldes do que está no Cade.
• Criação de um fundo que reverta as multas em investimentos voltados a atividades educacionais e ao desenvolvimento do mercado.
A ideia de revisão das multas também foi o estopim para o mercado pensar em alternativas para a destinação desse dinheiro. Em julho, Cunha, da Amec, sugeriu, em carta aberta ao presidente da CVM, a alteração da lei para permitir que penalidades impostas aos infratores pela autarquia sejam revertidas em compensação aos acionistas minoritários prejudicados. Hoje, o valor das multas vai para o Tesouro Nacional. No caso de elas serem aplicadas a uma empresa estatal, por exemplo, o dinheiro sai e volta para os cofres do governo.
O problema é que a proposta fere a Constituição. A CVM não possui mandato legal para determinar a indenização, compensação ou qualquer tipo de ressarcimento aos minoritários lesados por práticas irregulares no mercado de capitais. “Eventuais pedidos de indenização devem ser requeridos ao Judiciário, que é o poder competente para esse tipo de demanda”, explica a autarquia Atualmente, cabe à CVM apenas manifestar sua opinião em juízo sob a forma de amicus curiae, iniciativa realizada por meio de sua Procuradoria Federal Especializada, que oferece provas ou pareceres para auxiliar na decisão da Justiça.
O professor Guerreiro lembra que a transferência impositiva de renda entre particulares no Brasil recai necessariamente no domínio do monopólio da jurisdição, a cargo do Judiciário. Como alternativa para aplacar a ânsia dos minoritários por indenização, ele sugere que as multas arrecadadas pela CVM sejam transformadas em um título executável. “Submetido ao Judiciário, o título seria imposto aos acusados, com força coercitiva, mas a eles dando a oportunidade de ampla defesa, em processo judicial de execução. É esse o caso, tradicional em nosso direito, da ação de execução de crédito tributário.”
A CVM não tem, por ora, um plano para fazer os recursos chegarem ao investidor lesado. O que planeja é a criação de um fundo para reverter as multas em investimentos voltados a atividades educacionais e ao desenvolvimento do mercado. Uma outra possibilidade, elabora Guerreiro, seria esse fundo voltar-se ao financiamento do depósito de cauções e custas dos processos movidos por minoritários. “Esses acionistas não têm recursos para mover ações individualmente. Vi vários processos morrerem na praia.”
Embora as sugestões de mudanças na Lei tenham sido encaminhadas ao Ministério da Fazenda no fim do terceiro trimestre do ano passado, é possível que demorem a ser incorporadas. O momento político e econômico hostil leva o governo a eleger outras prioridades. Ainda assim, a CVM não esmorece. “Entendemos que esse projeto é fundamental para fortalecer o mercado de capitais. Caberá aos legisladores brasileiros, de posse dessas informações, e analisando o cenário atual, refletir sobre os pontos apresentados e tomar as decisões cabíveis”, afirma a autarquia. Se os pedidos do regulador forem acatados, os infratores terão dois bons motivos para pensar bem antes de agir: a possibilidade de ser delatado e o medo de um castigo de verdade no bolso.
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