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  • Regulamentação
Pecado original
Concebida há 50 anos e implementada na ditadura militar, Lei do Mercado de Capitais cometeu erros que impediram o mercado de evoluir como se pretendia

historiasEm 14 de julho, comemoram-se 50 anos da edição da Lei 4.728, a Lei do Mercado de Capitais. O objetivo principal, atingido, era quebrar o contexto monolítico e notarial das Bolsas de Valores e de seus corretores, que vigorava em plenitude desde os 1890.

Com 84 artigos distribuídos em 15 seções, a lei, naturalmente, é produto da visão dos que a conceberam, sobretudo porque o País vivia um regime de exceção, com o Congresso controlado pelo governo. Essa concepção surgiu no ventre da burocracia governamental, que assistia ao início da prevalência dos economistas sobre os bacharéis, que sempre haviam pautado o estilo da política brasileira. Não foi uma lei nascida do Parlamento, mas a ele imposta para aprovação, com ínfimas margens de manobra sobre o texto original. Não houve debates em torno dos temas suscitados. O arbítrio que duraria 20 anos tinha apenas começado, 15 meses antes.

A oportunidade foi usada, também, para criar o chamado Sistema de Distribuição do Mercado de Capitais, que promovia uma hierarquização das atividades de novas instituições financeiras. Além disso, estabeleceu-se um registro prévio de emissões de títulos e empresas para acesso ao mercado no âmbito do Banco Central, transformando-o no primeiro órgão regulador do mercado de capitais no Brasil. Assim também ocorreram inovações em diversas modalidades de papéis e formas societárias mais adaptadas às circunstâncias daquele momento econômico.

A inspiração de todas as mudanças na arquitetura das bolsas e da criação do sistema de distribuição foi extraída de instituições americanas. Nada mais lógico: os Estados Unidos contavam com as bolsas mais desenvolvidas e uma cadeia de intermediários que exercia plena e satisfatoriamente a tarefa de originar e promover a colocação dos títulos emitidos pelas empresas do país. Com isso, o Brasil abandonava a influência francesa que comandara a legislação bursátil desde os 1890.

A concepção fundamental foi copiada da Lei Glass-Steagall, que, em junho de 1933, na sequência do craque de 1929, estabeleceu a separação entre mercado de capitais e bolsas do setor bancário comercial nos Estados Unidos. No Brasil, para evitar a contaminação do mercado de investimentos pelos bancos comerciais, a regulamentação posterior à lei determinou que o controle acionário de corretoras fosse detido somente por pessoas físicas. Logo surgiram testas de ferro e procurações de gaveta que desvirtuaram as intenções do regulador. No mandato do presidente Costa e Silva, a partir de 1968, o governo começou a estimular a conglomeração financeira, copiada dos “zaibatsus” japoneses, deitando por terra o espírito de separação entre os mercados, tanto quanto o mesmo governo fizera com a independência do Banco Central.

A lei teve nítidos defeitos de tradução e interpretação da realidade americana. Aliados aos nossos formalismos e à experiência regulatória anterior, esses ruídos desvirtuaram alguns dos institutos transplantados de Wall Street. O mais bizarro dos erros de tradução resultou num conceito único em todo o mundo. Desde os mercados flamengos do século 16, a associação às Bolsas, em qualquer parte, sempre foi prerrogativa de pessoas físicas, como a adesão a um clube. Na Bolsa de Nova York, os associados podiam se associar entre si, ou com terceiros não participantes da comunidade, formando firmas limitadas de investimentos, para exercer suas atividades. E as empresas que tinham entre seus sócios um afiliado da Bolsa podiam se identificar como “member firm”, isto é, firma membro, o que lhes incrementava o status. Ele continuava a ser o sócio pessoa física, mas a sociedade de que participava se prestigiava com a condição.

O regulador brasileiro não percebeu a sutileza e, em seu ímpeto renovador, transformou a associação às Bolsas em exclusividade de pessoas jurídicas. Sob o critério de ampliação e capilaridade do mercado, aliado ao de aumento da competição entre seus agentes, objetivos importantes, essa estratégia brasileira se revelou um erro. Quando se abriram inscrições para novas corretoras, já em fins de 1966, surgiram, entre Rio de Janeiro e São Paulo, cerca de 120 empresas além das 100 formadas pelos antigos corretores das duas praças, número diminuto ante as necessidades de crescimento. Ademais, manter membros individuais nas Bolsas teria sido fundamental na consolidação do desmembramento permanente entre os mercados de capitais e bancário, por mais tempo do que foi atingido.

Outro defeito de tradução na Lei de Mercado de Capitais diz respeito à criação dos bancos de investimentos. Desta vez o erro foi não haver compreendido a natureza dos investment banks americanos. Os investment bankers, como preferiam ser chamados, não eram bancos na acepção da palavra, mas simplesmente grandes e poderosas firmas corretoras, que funcionavam como intermediários entre os emitentes de papéis de longo prazo — estados, municípios ou companhias — e o mercado comprador.

historias2Ignorando essas peculiaridades, a Lei de Mercado de Capitais criou uma instituição financeira especializada em financiamentos de longo prazo, sapecando-lhe o rótulo de bancos de investimentos. Mas as condições de operação e funcionamento estabelecidas pelo artigo 29 os transformavam em bancos comerciais de longo prazo. O mesmo artigo legal conferiu-lhes a prerrogativa de conceder aval em empréstimos em moeda nacional ou estrangeira. Mais do que intermediários ou captadores de depósitos, eles passaram a garantidores de operações creditícias de longo prazo concedidas por bancos do exterior ou seu fornecedor interno: o BNDES e suas agências. Essas atribuições não contribuíam para revigorar o mercado de capitais, como pretendia a Lei 4.728.

Em fevereiro de 1966, o Conselho Monetário Nacional (CMN) editou a Resolução 18, que regulamentava a atividade dos bancos de investimentos. Havia nítida tentativa de impulsionar negócios vinculados a debêntures, ações, fundos de investimento e mesmo em bolsa de valores. Entretanto, a colocação das novas instituições no contexto do mercado de capitais tinha sido desconectada da filosofia original, que pretendia apartar o setor de investimentos da área bancária comercial. Na imensa maioria dos casos, os bancos de investimentos já nasceram com relação de subordinação aos bancos comerciais, quase como seus departamentos, herdando-lhes as práticas e vícios de concessão de crédito, apenas voltados para prazos mais longos, superiores a um ano. Não floresceram a inovação e criatividade que se esperava dos bancos de investimento para a construção permanente de um mercado de capitais privado no Brasil. Duas exceções devem ser anotadas nesse quadro de anemia institucional: o Investbanco e seu maior concorrente, o Banco de Investimentos do Brasil (BIB), ambos extremamente atuantes em underwritings e gestão de fundos mútuos até 1971.

Outro aspecto contribuiu, adicionalmente, para complicar a evolução do mercado de capitais. Até fins dos anos 1950, os bancos comerciais eram as únicas empresas financeiras existentes no país. Sua supervisão ficava por conta da antiga Sumoc, antecessora do Banco Central e entidade alicerçada no funcionalismo do Banco do Brasil, um banco comercial. Portanto, a escola dos quadros que viriam a regular o mercado de capitais era vinculada à experiência bancária comercial de práticas de curto prazo. Não existia compreensão do mercado de investimentos, muito menos de suas peculiaridades.

Assim, a constituição de um capital mínimo, exigência elementar para bancos comerciais, passou a ser requisito no mercado de capitais. Um ambiente em que talento, criatividade e capacidade de colocação de papéis são condições bem mais necessárias do que recursos propriamente ditos. As transações bancárias comerciais, de curto prazo, são como saídas de uma linha de montagem e demandam capital para suportá-las. Já as operações no âmbito do mercado de capitais constituem produtos de ourivesaria financeira, em que engenho e arte se sobrepõem a quaisquer outros atributos. Para piorar, exigiu-se das corretoras — que dependem exclusivamente de competência gerencial, e não financeira — capital mínimo três vezes maior do que o imposto às caixas de liquidação, organismos encarregados de garantir negócios a termo e compensar as operações de pregão.

As mudanças introduzidas pela Lei do Mercado de Capitais não chegaram a constituir uma reforma de costumes e procedimentos. O mercado evoluiu favoravelmente, o que redundou na bolha especulativa de 1971 e no marasmo a seguir. Mais tarde, em 1976, uma nova onda de adaptação seria necessária, com a criação da Comissão de Valores Mobiliários, a CVM.

Ilustração: Marco Mancini / Grau 180.com


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