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Hora de relaxar?
Donald Trump teceu duras críticas à regulação do mercado financeiro. E pode ser que ele tenha alguma razão

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Eleito presidente dos Estados Unidos no último mês de novembro, Donald Trump passou a campanha inteira dando sinais ambíguos sobre como conduziria a política econômica do país. Enquanto candidato, prometia protecionismo no caso das importações, principalmente chinesas e mexicanas. Mas, de maneira contraditória, cogitava ter como secretário do Tesouro o megainvestidor Carl Icahn, dono de ações de companhias como a Apple, que se beneficiam de componentes baratos vindos da China.

No campo regulatório, o discurso de Trump igualmente apontava para direções opostas. Ao mesmo tempo em que defendia um mercado menos regulado, com o fim da Dodd-Frank — lei promulgada em 2010 que impôs novas (e duras) obrigações a grandes bancos e a companhias de capital aberto —, Trump exaltava o retorno do Glass-Steagall Act, de 1933, período da grande depressão. A lei, que determinava a completa separação entre bancos comerciais e de investimento, foi revogada em 1999, durante o governo Bill Clinton; sua volta é, há alguns anos, também uma bandeira do partido democrata. Para quem olha de fora, é difícil entender o que Trump realmente pensa e planeja executar no governo. No meio de aparentes incoerências e palavras inflamadas do empresário, entretanto, há argumentos racionais e um sinal claro: o pêndulo está se movendo para o lado da desregulamentação.

Ao expressar sua opinião sobre a Dodd-Frank, Trump não economizou críticas. À emissora Fox News, em outubro, disse que “queria se livrar” da lei porque ela é “um tremendo fardo para os bancos”. Nas suas propostas de campanha, o republicano deixou claro que lutaria contra “regulações desnecessárias, que matam empregos e incham o governo”. Já a sua defesa de “uma Glass-Steagall do século 21” se apoia no tamanho dos bancos. Trump acredita que a lei é uma forma de combater o gigantismo de algumas instituições de Wall Street. Os EUA, ressalta, também precisam dos bancos menores.

As declarações deixaram o mercado em polvorosa. Afinal, o que esperar de Trump no campo regulatório? Para entender o que pode estar a caminho, a CAPITAL ABERTO conversou com cinco estudiosos americanos — alguns mais favoráveis a regulações rígidas, outros mais liberais. Nenhum deles, no entanto, acredita que Trump vai rasgar as mais de 20 mil páginas da Dodd-Frank (algumas normas da lei sequer foram implementadas). “Mas é provável que as regras que afetam bancos sejam relaxadas ou adaptadas”, avalia John C. Coffee Jr., da Universidade de Columbia, em Nova York.

O fardo dos bancos
Publicada menos de dois anos após o estouro da crise de 2008, a Dodd-Frank tinha em seu cerne a intenção de tornar o sistema bancário mais resiliente e evitar que instituições financeiras fossem grandes demais para quebrar (“too big to fail”, na famosa expressão), precisando ser socorridas pelo Estado por causa da ameaça sistêmica representada por suas derrocadas.

A Dodd-Frank determina que bancos com mais de US$ 50 bilhões em ativos totais se submetam a testes de estresse — um por ano, aplicado pelo Federal Reserve, e um por semestre, pela própria instituição. Esses testes fazem uma análise aprofundada das contas dos bancos, para previsão de como reagiriam a choques externos e quais seriam as consequências. Professor do departamento de finanças da Universidade de Wisconsin, Robert E. Krainer observa que essa obrigação é uma das mais relevantes da lei, pois permite identificar com antecedência potenciais riscos sistêmicos. “Os grandes bancos, contudo, não gostam muito desses testes”, diz Krainer, lembrando que, às instituições que não vão bem, é imposta uma barreira à porcentagem de dividendos que podem distribuir aos acionistas. Embora considere improvável uma abolição completa dos testes de estresse, Krainer observa que as grandes instituições tendem a aproveitar o momento para defender o fim da prática. Uma possível solução para o impasse, opina, seria impor os exames apenas a bancos com mais de US$ 100 bilhões em ativos.

Também é polêmica a imposição, pela Dodd-Frank, da chamada Volker Rule. Ela proíbe o proprietary trading — negociação de ativos como ações, bonds e derivativos com recursos da própria instituição financeira. Pela lei, os bancos — não importa o tamanho — só podem receber como remuneração por negociação um percentual do ganho sobre o capital dos clientes. Além disso, a Volker Rule limitou as participações acionárias que essas instituições podem ter em hedge funds e empresas de private equity. O objetivo da norma, regulamentada apenas no fim de 2014 e ainda não completamente implementada, é evitar que haja conflitos de interesses e que os bancos tomem riscos excessivos.

“O problema é que a Volker Rule acaba punindo bancos de pequeno e médio porte”, diz Geoffrey Rapp, professor de direito na Universidade de Toledo, em Ohio. A regra parece simples, mas é cheia de detalhes. Como várias operações feitas pelos bancos com o próprio capital são necessárias e permitidas, como a formação de mercado para garantia de liquidez e alguns tipos de hedge, o cumprimento da regra exige que as instituições financeiras adotem mecanismos para separar as operações autorizadas das não autorizadas e prestem satisfações ao regulador — esse controle, contudo, exige altos gastos com compliance. “Um dos princípios da Dodd-Frank era acabar com a ideia do ‘too big to fail’, mas somente grandes bancos conseguem gastar tanto para cumprir a lei e continuar lucrativos; o efeito é o oposto ao desejado. Com isso, o mercado se concentra”, argumenta David Skeel Jr., da Universidade da Pensilvânia.

De fato, o número de bancos pequenos nos Estados Unidos diminuiu de 6.533 em 2010 para 5.349 em 2015, de acordo com dados do governo. Contribuíram para essa queda tanto fusões quanto falências e encerramentos de atividades. É pertinente observar que, mesmo antes da Dodd-Frank, o número de instituições no país vinha caindo — em 2000 eram 8.307. “Essa redução pode ter relação com a regulação, mas muitos outros fatores, como a própria crise econômica, podem ter contribuído”, pondera a professora Kristin Johnson, da Seton Hall University, de Nova Jersey. Apesar de ser cautelosa quando o assunto é o afrouxamento de regras, ela concorda ser necessário cuidado especial na regulação de instituições de menor porte. “Pensar em exceções para a Volker Rule pode ser mais apropriado que acabar com ela”, avalia.

A imposição de obrigações pesadas demais aos bancos menores pode ter outro efeito colateral: o repasse dos custos aos consumidores, por meio do aumento das taxas de juros de empréstimos. Essa reação pode prejudicar principalmente pequenos negócios e agricultores que se relacionam com bancos regionais — não à toa, a proposta de Trump de afrouxar a regulação tem apelo inclusive entre alguns democratas.

Estudo divulgado em agosto de 2015 pela Federal Financial Analytics, consultoria privada que trabalha para agências governamentais, concluiu que para instituições médias — entre US$ 50 bilhões e US$ 100 bilhões em ativos — os custos para cumprimento da Volcker Rule e os testes de estresse podem chegar a US$ 2 bilhões por ano, o que diminui a capacidade de empréstimos entre 5,7% e 8%. A análise não contempla o impacto sobre os bancos ainda menores — nos Estados Unidos há uma miríade deles, alguns com capital inferior a US$ 1 bilhão (para efeito de comparação, os ativos do J.P.Morgan, o maior, somam pelo menos US$ 2 trilhões).

Tempo de ajustes
Na opinião de Coffee Jr., da Universidade de Columbia, os EUA estão entrando numa previsível fase que ele chama de regulatory sine curve — ou onda regulatória, em uma tradução livre. Depois de uma crise, afirma, é comum que normas rígidas sejam aprovadas, muitas delas com falhas e efeitos imprevistos; passado algum tempo, a lei é ajustada.

Uma das consequências indesejadas da Dodd-Frank, por exemplo, é o inchaço das clearings — responsáveis pela compensação e liquidação de negociações. Para restringir o escopo de atuação dos bancos e dar mais segurança ao sistema financeiro, a Dodd-Frank determinou que várias transações de derivativos começassem a passar por essas câmaras. “Agora as clearings também estão se tornando grande demais para falir e podem oferecer risco sistêmico”, avalia Skeel Jr., da Universidade da Pensilvânia.

Diante disso, em setembro passado, a Securities and Exchange Commission (SEC) anunciou que adotaria medidas para regular as câmaras de compensação. Entre as grandes clearings dos Estados Unidos estão a Fixed Income Clearing Corporation, a National Securities Clearing Corporation e a Options Clearing Corporation. “Não se sabe o que aconteceria se uma delas falisse, e não está claro se disporiam dos mesmos sistemas de segurança dos quais outras instituições se beneficiam”, diz Johnson.

Skeel Jr. compara a proposta de revisão da Dodd-Frank com um fenômeno já visto antes, tendo como protagonista a lei Sarbanes-Oxley (SOX), de julho de 2002. Assinada na esteira do escândalo da Enron, que faliu após descoberta de fraudes contábeis que inflavam seus resultados, a SOX impôs diversas regras às companhias abertas. Uma delas exige a realização anual, pelas empresas, de uma avaliação dos controles e procedimentos internos, que devem, ainda, passar pelo escrutínio de uma auditoria independente. Com isso, a listagem nas bolsas americanas acabou se tornando excessivamente cara para as empresas menores. Sensibilizado com a questão, em abril de 2012, o presidente democrata Barack Obama assinou o Jumpstart our Business Startup Act (JOBS Act), que abrandou para companhias com faturamento de até US$ 1 bilhão uma série de exigências impostas pela SOX: elas não precisam mais, por exemplo, atestar a eficiência de seus controles internos por até cinco anos após a listagem.

No Brasil, é possível traçar um paralelo da Instrução 531 da Comissão de Valores Mobiliários (CVM) com a SOX e a Dodd-Frank, ainda que o escopo da norma brasileira seja infinitamente menor. A Instrução 531 também foi uma resposta a um escândalo — no caso, o do Panamericano. Em 2012, uma investigação da Polícia Federal revelou que o banco fundado por Silvio Santos cedia a fundos de investimento em direitos creditórios (FIDCs) carteiras de crédito que já haviam sido contabilizadas como prejuízo no balanço do Panamericano. O problema é que as obrigações impostas pela Instrução 531 acabaram aumentando os custos de estruturação e oferta dos FIDCs. Boa parte do aumento das despesas está associada à ampliação das responsabilidades dos custodiantes, encarregados agora da verificação do lastro e da guarda de documentos que atestem sua existência. Antes da norma, os cedentes dos ativos é que faziam essa guarda. Como resultado, as ofertas públicas dos FIDCs despencaram: em 2012, em um cenário pré-Instrução 531, o mercado estruturou 30 ofertas públicas, que movimentaram R$ 7,1 bilhões. Em 2015, com as novas regras já em vigor, apenas oito operações ocorreram, num total de R$ 2,9 bilhões, segundo dados da última edição do Anuário Uqbar Finanças Estruturadas.

Funcionário da SEC na época da implementação da Dodd-Frank, Guilherme Monteiro, sócio do escritório Pinheiro Neto, acredita que a discussão que ocorre nos EUA pode estimular a CVM a rever suas normas e impor regulações menos rígidas. “Regulações duras demais acabam travando o mercado de capitais e têm o efeito perverso de encarecer o crédito, prejudicando o crescimento econômico”, diz Monteiro.

Retorno improvável
Além de concordarem que algumas regras da Dodd-Frank precisam ser passadas a limpo, os estudiosos ouvidos pela reportagem também são uníssonos num ponto: a Glass-Steagall dificilmente será ressuscitada, tanto pela dificuldade de Trump de conseguir apoio político quanto pelos sinais que o empresário vem dando desde sua eleição. Apesar das críticas que fez aos grandes bancos durante sua campanha, o republicano convidou Gary Cohn para presidir o conselho econômico da Casa Branca. Ele aceitou e, no início de dezembro, pediu demissão de seu cargo: chefe de operações (COO) do Goldman Sachs.

Agora é esperar para ver o que acontece na prática. Uma mudança radical na Dodd-Frank é vista como improvável — mas, até há bem pouco tempo, muitos americanos também não imaginavam que poderiam ter o extravagante empresário como presidente.


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