Neste julho de 2018, comemora-se os dois anos da Lei 13.303, conhecida como Lei das Estatais. Na época da sua publicação, a comunidade que acompanha o tema da governança corporativa até estranhou seu excessivo detalhamento, em especial porque saía do forno o Código Brasileiro de Governança Corporativa das Companhias Abertas. Pois uma ação do Legislativo ameaça estragar a comemoração. No último dia 11, comissão da Câmara que analisa projeto de lei relacionado às agências reguladoras aprovou a exclusão, do texto da Lei das Estatais, da restrição à indicação de políticos e parentes de autoridades a cargos em empresas controladas pela União2.
A Lei das Estatais nasceu como resposta às denúncias de corrupção envolvendo empresas controladas pelo governo. Contrariando alguns especialistas, sustentei a necessidade da criação de um “estatuto jurídico” para as estatais. Como administrador de sociedades de economia mista de capital aberto (membro de diretoria ou de conselho de administração), tinha a clara percepção do intuito da lei. “É fundamental que a lei imponha padrões de governança a serem observados na gestão das empresas estatais, estabelecidos por decisão de Estado, e que não estejam submetidos aos sabores dos interesses de governos”, diz um trecho da exposição de motivos.
Na esfera da União, a estrutura de controle da governança já existe há tempos, formada por Secretaria de Coordenação e Controle das Empresas Estatais (Sest) e Tribunal de Contas da União (TCU). Porém, a experiência no conselho de administração da Eletrobras agregou-me conhecimento a respeito de todo o sistema de controle externo. Era tudo muito bonito no papel, mas nada efetivo na prática.
A Eletrobras é um colosso organizado numa holding, com quatro grandes subsidiárias (as des-controladas), a Eletronuclear e pelo menos 200 sociedades de propósito específico. Investia em 2012 cerca de 10 bilhões de reais por ano, mas nenhum dos projetos em execução atingia a taxa interna de retorno projetada — em outras palavras, não dava dinheiro. Seu conselho de administração, com uma ou duas exceções, era composto de excelentes profissionais. Mas eles não tinham a necessária experiência com o negócio da companhia para desenvolver um planejamento estratégico sustentável. Somava-se a isso o fato de haver na diretoria dois ex-presidentes da Eletrobras que eram apadrinhados políticos.
Houve quem dissesse que, apesar de a lei ser obrigatória a partir deste julho, governadores estariam acionando parlamentares de seus partidos para modificá-la. Aqui é preciso voltar à origem do problema: os interesses de políticos sempre suplantaram os interesses das companhias. E parece que a lei “não pegou”.
Nas estatais, até a lei entrar em vigor, conselheiros e diretores representavam principalmente os políticos que os indicaram, secundariamente os acionistas que os elegeram e, quando sobrava tempo, a companhia em relação à qual teriam dever fiduciário. Mas, mesmo depois da edição da Lei das Estatais, persistem indicações de secretários estaduais e municipais e dirigentes partidários. É grande o perigo da indicação de pessoas que, mesmo capacitadas, entram nas companhias para trabalhar em prol de um projeto político, seja de um candidato ou de um partido.
A inconstitucionalidade da emenda que da Lei 13.303/16 exclui as vedações à indicação de políticos e parentes de autoridades é manifesta. O destaque integra o PL 6.621/16, que trata das agências reguladoras — nada tem diretamente a ver, portanto, com a governança corporativa de estatais. Conforme o Supremo Tribunal Federal (STF)3, a prática da inserção, mediante emenda parlamentar no processo legislativo de conversão de medida provisória em lei, de matérias de conteúdo temático estranho ao objeto originário da medida provisória “viola a Constituição da República, notadamente o princípio democrático e o devido processo legislativo”4.
A Jornada Técnica do Instituto Brasileiro de Governança Corporativa (IBGC) à Austrália, em 2013, envolveu troca de experiências com conselheiros de administração do país. Quando me apresentei como membro do conselho de duas companhias abertas de controle estatal, os australianos não entenderam. “Na Austrália não existe estatal de capital aberto. Se o Estado precisa desenvolver uma atividade econômica, a empresa é de capital fechado. Como é possível conjugar o interesse público com o principal objetivo de uma companhia aberta, que é o lucro? Depois que a estatal se torna lucrativa o Estado vende, porque o papel dele não é competir com a iniciativa privada.” A sentença resume o espanto.
O ser humano não lida bem com tentações, e a possibilidade de se ter cargos e influência política em estatais é uma serpente. Por isso, é premente uma reação contundente à decisão da comissão da Câmara. O mercado de capitais brasileiro é muito influenciado pelo desempenho de Petrobras, Banco do Brasil e Eletrobras e a manutenção das vedações da Lei das Estatais — seja por rejeição da emenda no Senado ou por veto presidencial — é o mínimo que se espera para impedir esse duro golpe.
*Marcelo Gasparino da Silva ([email protected]) é conselheiro de administração profissional certificado pelo IBGC
1PL 6.621/16, originado no Senado Federal
2A comissão aprovou revogação do inciso II, § 2º, e do § 3º do art. 17 da Lei 13.303/16
3ADI nº 5127/DF, relator para acórdão ministro Edson Fachin. Julgada em 15/10/2015
4Arts. 1º, caput, parágrafo único, 2º, caput, 5º, caput, e LIV, CRFB
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