O aniversário de 20 anos da instituição da alienação fiduciária de bens imóveis representa uma boa oportunidade para uma reflexão sobre o que deu certo desde a promulgação da Lei 9.514/97 e o que ainda pode melhorar.
Em 1997 o mercado imobiliário enfrentava desafios com que as ferramentas legais então existentes não conseguiam lidar. O moroso processo de execução de hipoteca, principal modalidade de garantia real imobiliária naquele momento, permitia a ampliação exagerada do prazo de pagamento e a manutenção de todos os atributos dominiais (uso, gozo e disposição do imóvel) em favor do devedor. Assim, ele podia explorar economicamente o imóvel e até oferecê-lo a usufruto de terceiros; já o credor ficava exposto aos efeitos de eventual falência ou recuperação judicial do garantidor hipotecário e, por isso, não tinha qualquer motivação para fazer novos empréstimos ou reduzir o prêmio de risco. Esse cenário era um desincentivo à redução dos altos níveis de inadimplência de dívidas garantidas por hipoteca e à queda do spread bancário.
Era também necessário conciliar os objetivos sociais da política habitacional com um modelo de financiamento padronizável, com sólidas garantias reais, voltado à captação de recursos no mercado de capitais.
A alienação fiduciária de bem imóvel foi criada justamente para superar esses desafios e impulsionar o financiamento, destacando-se como garantia eficaz principalmente em razão da necessidade de circulação de créditos imobiliários. De fato, a satisfação extrajudicial de dívidas garantidas por alienação fiduciária tem se mostrado substancialmente mais rápida em comparação com a execução judicial de hipoteca, e a maior parte das decisões de nossos tribunais tem mantido o afastamento dos efeitos da falência ou da recuperação judicial da dívida objeto de alienação fiduciária em garantia, o que favorece a segurança jurídica para o ambiente de negócios e a redução da inadimplência.
Entretanto, para que instituto possa cumprir o papel inicialmente pretendido de reduzir os custos das operações, importantes aprimoramentos precisam ser feitos.
Infelizmente, não há o que festejar nos casos de rescisão judicial do contrato de alienação fiduciária pelo inadimplemento (concreto ou iminente) do devedor. A ausência de pagamento passa a ser tratada em ação judicial como causa de rescisão contratual, em flagrante arrepio ao cumprimento da lei.
Na prática, a consequência é uma espécie de engessamento; às vezes há atrasos imotivados decorrentes de dúvidas (ou desconhecimento) no correto uso da garantia fiduciária no âmbito do Judiciário e na condução dos procedimentos de consolidação de propriedade pelos cartórios de registro de imóveis — o que culmina em fatal prejuízo à segurança jurídica até aqui conquistada.
Nesses 20 anos de alienação fiduciária, temos que levar em consideração dois fatores. Primeiro: foi apenas a partir da Lei 10.934/04 (com disposições relevantes sobre patrimônio de afetação nas incorporações imobiliárias, letra de crédito imobiliário, cédula de crédito imobiliário e cédula de crédito bancário) que a alienação fiduciária em garantia passou a ser adotada em maior escala. Segundo: o período incluiu anos de crescente disponibilidade de crédito no País — casos de efetivo inadimplemento e necessidade execução da garantia eram esparsos.
Com maior frequência nos últimos anos, em decorrência da crise econômica, a falta de uniformização na interpretação e aplicação das regras de consolidação da propriedade fiduciária por cartórios extrajudiciais e Judiciário — com a permissão, ao devedor, de impugnar procedimentos sem qualquer consequência, furtar-se de intimações, protelar leilões, suscitar nulidade e levar a questão à Justiça — macula o instituto e concretiza o possibilidade de postergação da almejada recuperação do crédito de forma equivocada.
A crescente judicialização de discussões, em razão da ausência de regras claras na lei, prejudica sobremaneira a ampliação dos investimentos, e não pode prosperar. À medida que ganha vulto o fenômeno de rompimento das obrigações contratadas em razão de inadimplência (caso dos distratos), investidores se tornam vulneráveis financeiramente e o mercado se afasta novamente da oportunidade de manter uma estrutura eficiente e definitiva para o fomento de moradias.
Essas questões podem se desenrolar em debates mais aprofundados, e assim tem acontecido. Vale citar, com merecido aplauso, que a Corregedoria de Justiça do Estado de São Paulo vem se debruçando — e decidindo — sobre alguns procedimentos, como a notificação do devedor fiduciante a ser adotada pelos cartórios de registros de imóveis.
É indispensável destacar que o risco maior que o instituto corre é a sua judicialização. Além disso, existem vozes que querem transformá-lo em uma submodalidade de hipoteca, como mero gravame, com a consequente modificação de sua natureza jurídica. Isso pode representar em enorme retrocesso das garantias fiduciárias construídas nas últimas duas décadas.
Sob pena de se esvaziar a capacidade da alienação fiduciária de contribuir para a redução das taxas de remuneração e de incentivar a formação de crédito de natureza imobiliária, o aprimoramento da lei pode (e deve) se voltar à diferenciação de operações que são feitas por pessoas físicas no âmbito do SFI (financiamento imobiliário) de outras estruturas comerciais, na medida em que a quitação da dívida com o recebimento do imóvel após leilões (mesmo que o valor do bem adjudicado seja insuficiente para satisfazer a integralidade do débito, a dívida é considerada extinta, conforme Projeto de Lei 1.070/07, ainda em trâmite na Câmara dos Deputados) ou o exercício do direito de preferência do devedor no segundo leilão do bem constituiriam direitos meramente disponíveis para as últimas operações.
Uma das principais vantagens da Lei 9.514/97 é justamente a transferência da propriedade de forma fiduciária, o que permite a dispensa de execução judicial da garantia. Afinal, se um dos objetivos mais importantes do instituto é a celeridade na concessão do crédito e na sua eventual recuperação, a natureza extrajudicial da excussão da alienação fiduciária é característica essencial a sua eficácia. A simples adoção (ou omissão) de procedimentos extrajudiciais ou a existência de decisões recalcitrantes em afirmar e reconhecer os corretos efeitos jurídicos decorrentes da contratação com alienação fiduciária de bem imóvel em garantia caminha em direção diametralmente oposta ao propósito da lei.
Assim, para se preservar a alienação fiduciária como uma das principais modalidades de garantia e ratificar seus benefícios é premente a adoção de esforço comum e direcionado — não apenas a esclarecer a correta utilização das regras legais, mas para lapidar e aperfeiçoar a legislação pertinente (inclusive normas de corregedoria), encerrando quaisquer dúvidas que ainda desfavoreçam a manutenção da segurança jurídica necessária ao crescimento do setor imobiliário e a efetiva retomada da confiança de investidores.
Carlos Eduardo Ferrari ([email protected]) é sócio de NFA Advogados
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