Custou, mas deslanchou. E o embalo cresceu quando a palavra clube começou a ser levada ao pé-da-letra. A Instrução número 40 parecia uma daquelas fadadas a não pegar. Baixada no final de 1984 pela Comissão de Valores Mobiliários (CVM), passou década e meia em marcha lenta na Bolsa de Valores de São Paulo. Ainda em março de 2000, havia apenas 179 clubes de investimento registrados na Bovespa – nem um por mês em quinze anos, média que inclui os clubes abertos para adoçar a boca dos desempregados da privatização.
De repente, disparou. Em setembro do ano passado, o pessoal da Força Sindical registrou o seu. Nos doze meses seguintes, criaram-se 146 clubes – uma dúzia por mês. Se computados ainda os que estão na bica para obter o registro de pessoa jurídica na Receita Federal, o número de clubes formados só entre estes dois setembros deixa longe o daqueles primeiros quinze anos de pasmaceira.
Neste setembro, havia 684 clubes na Bovespa. Desses, duas centenas são de clubes gaúchos, migrados em dezembro de 2002, quando a Bolsa de Valores do Extremo Sul se incorporou à paulista. Mas nenhuma onda – nem a das privatizações, nem a migratória – se compara à atual, provocada por gente que, embora não confesse, está mais interessada no clube do que no investimento.
Não será o clube de campo ou o da piscina domingueira, nem o das noites de embalo, carteado ou boliche, que vai manter unido o grupo de formandos, a equipe técnica condenada ao desmonte após a tarefa ou “o pessoal da firma” – turma querida que convive tão bem, que se gosta tanto e agora teme ser dispersada pela vida afora em afazeres distantes ou no vendaval do desemprego em voga.
Será sim um clube que une seus participantes por botar dinheiro na parada. Dinheiro grosso: o patrimônio líquido dos 666 clubes era de R$ 2,48 bilhões em julho – último mês apurado pela Bovespa. Onde a turma arrumaria desculpa melhor para se manter unida e comprometida com reuniões periódicas? Desculpa inclusive divertida, pois trata-se de jogo de equipe e apostado, contra um adversário externo e invisível.
Se não fosse jogo, comprariam ações de empresas sólidas e esperariam quietinhos pela valorização. Poderiam até deter boa parcela das ações das 377 empresas do pregão (que valem R$ 530 bilhões), mas ficariam sentados em cima, sem negociar. Se não fosse jogo, teriam participação pequena nos 35.740 negócios de cada dia. Mas não é o que se vê. Pessoas físicas e clubes já são mais presentes no painel da bolsa do que empresas e casas financeiras. Respondem por um quarto dos R$ 687 milhões negociados na média de cada dia de 2003.
PESSOAS FÍSICAS À FRENTE DOS ESTRANGEIROS – Com 25,9% do movimento de maio, 25,5% de junho, 27,6% de julho e 26,5% de agosto, pessoas físicas e clubes ultrapassaram os estrangeiros, justamente no ano do recorde do investimento externo na bolsa brasileira – R$ 3,5 bilhões até agosto.
Embora sejam pessoas jurídicas, os clubes entram na estatística da Bovespa como pessoas físicas, que aplicam diretamente ou pela internet, porque ambos têm a mesma natureza e não raro seus sócios já investiam. A exemplo de William Dalmas. Atraído por Wagner Marques e por Roberto de Oliveira, Dalmas entrou para o clube embrionário.
Oliveira é o pai da idéia. Com outros quatro consultores autônomos de TI (tecnologia da informação) para banco, escolheu na Bovespa a corretora Concórdia como sua operadora. Nem registro seu clube tem ainda e os cinco já são 37.
Cada um deu R$ 100 de entrada e dá R$ 100 semestrais e R$ 50 por mês. “Daqui cinco anos, quem quiser poderá colocar a mão na grana “, diz. Criaram um site e levam notícias de jornais e revistas para as reuniões semanais. No começo, pretendem ser conservadores e dar preferência a empresas transparentes, não poluidoras e boas patroas. E torcem para que novas sociedades anônimas abram seu capital.
“Se os clubes continuarem proliferando e drenando para a bolsa o dinheiro da poupança e das aplicações financeiras, a abertura do capital será o caminho, especialmente para as empresas de bom nome, que tratam bem os clientes, os empregados, o meio ambiente. E que aprendem a lidar bem com os acionistas”. O presidente da Bovespa, Raimundo Magliano Filho, concorda e acrescenta: “Se os juros continuam caindo, mesmo o dinheiro das grandes aplicações financeiras acabará na bolsa.”
Isso faria da bolsa uma fonte convidativa de recursos e levaria mais empresas a abrirem seu capital. E, segundo Magliano, a própria profusão de clubes já poderia ter ocorrido, se, em vez de transferir o controle das estatais, o governo tivesse pulverizado as ações e democratizado a venda das estatais construídas com o dinheiro público. Democracia é a palavra: “Para o filósofo italiano Norberto Bobbio”, diz, “democracia é visibilidade, transparência e acesso”.
De fato, se o governo tivesse pulverizado a venda, o BNDES, dispensado de financiá-la, teria investido em coisas mais úteis – no saneamento básico, na geração de empregos ou na construção de hidrelétricas capazes de evitar o racionamento. As privatizadas não estariam hoje de novo na cola do BNDES e aplicando calotes e tarifaços. Se a falta de transparência pôs a privatização sob suspeita e gerou denúncias, a falta de democracia vetou o acesso do público, a eclosão dos clubes e a promoção da bolsa como fonte de recursos.
Oliveira diz que o melhor efeito da febre de clubes será o crescimento, a democratização da bolsa. “A corrida de novos acionistas e a festa de dinheiro novo convencerá empresas a abrirem o capital. E seremos milhões de sócios, antes excluídos do mercado acionário”, diz Oliveira. Seu clube aprecia a transparência, mas nem faz questão, por exemplo, de empresas com boa governança corporativa. “Importante é só decidir democraticamente”. Esse exercício democrático se dá nas reuniões – razão inconfessada, mas principal da existência do clube.
MÉTODOS PENDULARES – Reuniões semanais. E mesmo assim, menos freqüentes que as do clube Feng Shui, outro adepto da democracia assembleísta. É um clube da Luluzinha liderado pela química e consultora de feng shui Anna Vilarinho e pela administradora, pedagoga e dona de escola Joana Giannoccaro. Acolhe 31 gentis senhoras, como a socióloga e designer de jóias Lícia Monteiro Alves, a professora de educação artística Liabel Canto e Silva, as advogadas Silmara de Campos e Adelaide Maluf e as administradoras Liciane Penasso e Solange Cerazo.
“Tudo se decide na reunião”, diz Joana. “E a palavra final é do pêndulo”, diz Anna. Por reunião entenda-se chá da tarde com quitutes e sanduichinhos, sucos, café, tudo. Já por pêndulo entenda-se…, é melhor voltar ao começo. Na reunião, falam de empresas. Descartam a fábrica da linha popular quando possuem a alternativa de artigos charmosos. Preferem as que vêem na tevê, nas revistas e jornais, às sumidas do noticiário e da propaganda. Entre pequenas e grandes, nem piscam para escolher a maior.
A não ser quando Lícia levanta lebres politicamente corretas e lembra que, embora grande, tal empresa polui. Ou que, apesar da grife, aquela outra utiliza trabalho infantil na Tailândia. Lícia é capaz até de recuperar o interesse delas pela empresa descartada por falta de charme ou fama, evocando um benefício para a comunidade ao redor da fábrica, o cuidado com o meio ambiente, a decência com os filhos dos empregados, com o fornecedor ou o consumidor.
Selecionadas assim as finalistas, é hora de escolher as campeãs – as destinatárias do dinheiro. Aí entra o feng shui, critério adotado até na escolha da corretora, a Socopa. Essa última venceu a parada já na segunda visita delas. Ao entrarem na sala de Homero Amaral, viram a mesa de frente para a porta, o dragão e vasos verdes entronizados e a mobília disposta como manda o figurino do feng shui. Onde achar corretora melhor?
Os mesmos cânones determinam o papel a ser comprado, agora com a ajuda do pêndulo de cristal. Pendente na ponta de um cordão, nos dedos de pessoa dotada da sensibilidade adequada, como Anna ou Joana, o pêndulo se move suavemente sobre o papel com o nome da empresa. Sentido horário significa sim. O contrário é não.
Deve ser como a radiestesia. Aparelhos modernos captam a radiação da água no subsolo e indicam o local para o poço artesiano. Mas muitas empresas geofísicas continuam adeptas das forquilhas e pêndulos dos radiestesistas, pessoas sensíveis à radiação. Dá certo. Difícil é imaginar a radiação num papel. Mas Anna e Joana a sentem, e é isso que importa. Se o pêndulo recomenda, fazer o quê? Compram. Afinal, nem todo mundo consegue como elas “aplicar R$ 300 numa ação que em dois meses já vale R$ 700”.
DO FUNDAMENTALISMO… – O pessoalzinho de 20 a 23 anos que fundou o Gamblers Clube, na Fundação Getúlio Vargas, em vez de pêndulo usa a análise fundamentalista (que considera as projeções de resultados), aparentemente mais científica. Andrés Kikuchi, talvez por ser o mais velho, fala em nome de Lia de Lima, Lucas Vilas Boas, André Canto, Lucas Sacajiri, Ricardo Amaral, da turma toda, enfim – que usa até entrevista à imprensa como desculpa para se reunir. “A gente tende a se formar, arrumar emprego e ir cada um para um lado. O clube manterá nossa união”, diz ele.
O Gamblers não tem muito pudor em comprar ações da indústria maléfica, poluidora ou exploradora, desde que dê lucro. “É meio complicado misturar ética com aspectos financeiros”, diz Andrés. “Mas é bom lembrar que a empresa ética tem futuro mais promissor do que a outra. E isso pesa na análise fundamentalista”.
AO GRAFISMO… – Os engenheiros e consultores de negócios reunidos no Clube Jovem Ernesto adotam estratégia oposta: a análise gráfica. “Já escalamos até uma vítima, o Mauro Soares, para fazer todos os cursos de análise financeira e, depois, nos repassar”, diz Carlos Fogarolli. “O que ele aprende em uma semana, nos ensina em duas horas. Vamos acabar peritos”.
Como a garotada da FGV, também esse pessoal diz não caber “sentimentalismo” na escolha do papel. Exigem transparência das empresas (“balanços claros e bom atendimento para a corretora, já que não temos tempo para visitá-las”), mas nem ligam se ela mente, polui rios, explora crianças.
Com o apoio de professores, adolescentes montam seu próprio clube de investimentos
Daí aos adolescentes decidirem formar seu próprio clube de investimentos foi um pulo. Influenciados pelo entusiasmo dos professores com o tema, receberam uma semana antes da visita à bolsa a orientação de prestar atenção a tudo que vissem na TV sobre o mercado de ações. Nas aulas, os preparativos foram costurados com os professores de matemática, história e filosofia, num projeto didático calcado em valores como disciplina e precaução. “Somos uma escola adventista e nossa preocupação é formar os alunos para a vida. Por isso investimos na idéia de educá-los sobre a importância de poupar e de planejar financeiramente o seu futuro“, afirma Elize Keller, coordenadora pedagógica do colégio. O glamour do mundo dos investimentos contagiou os jovens alunos. Movidos pelo sonho de ver render o próprio dinheiro, começaram a transformar a teoria em prática. A turma de Felipe Reis de Carvalho, 17 anos, 3º ano do ensino médio, descobriu o site de investimen-tos do Folha Invest e começou a operar sua própria car-teira. Com um patrimônio fictício de R$ 140 mil, com-praram e venderam ações como se estivessem fazendo o investimento para valer, sempre com as cotações da Bovespa em tempo real. No simulado, começaram a exercer seu papel de in-vestidor. Passaram a ler os jornais com olho atento às notícias sobre as empresas abertas e tentando desvendar como o mercado reagiria a elas. Levaram um escorregão logo de cara. —Compramos Embraer após a notícia da venda de 20 aeronaves para a França, mas o pedido foi cancelado poucos dias depois e a gente perdeu“, conta Felipe, que não se deixou abater pelo imprevisto e agora conta orgulhoso que seus R$ 140 mil já são R$ 170 mil. Os alunos da Unasp não demoraram a tomar gosto pelas ações e a decidir levá-las a sério. Informados pela Bovespa dos clubes de investimento em formação, resol-veram, com o apoio dos professores, montar o seu. Com a papelada em andamento e um aporte inicial de R$ 100,00 de cada um, pretendem estar com tudo fun-cionando no começo de outubro. São 50 alunos, a maioria do 2º e 3º ano do ensino médio e alguns do cur-so técnico de contabilidade, um pouco mais velhos, na casa dos 20 anos. Os professores falam da iniciativa com o entusiasmo de quem educa para construir o futuro. “Queremos que eles invistam hoje para, ao sair da faculdade, terem con-dições de colocar projetos em prática, andar com as próprias pernas e continuar investindo em educação para o seu desenvolvimento profissional“, afirma Costa, o professor de matemática que puxou o fio dessa história com a leitura despretensiosa. A poucas semanas do início do funcionamento do clube, Felipe tratava de afiar seus conhecimentos para não fazer feio. A gestão dos investimentos será tocada pelos próprios alunos, em parceria com a corretora que administra o clube. Haverá um comitê de investimentos eleito democraticamente, para o qual Felipe planeja se candidatar. Ele afirma que já tem boas noções de como analisar um balanço e que conhece os princípios básicos para escolher uma companhia. “Queremos conhecer bem quem é o dono, quem manda na empresa. Sabemos que só vamos ter ações PN, sem direito a voto, e que é preciso estar numa empresa honesta“, afirma. Ele não sabe o que significa o termo governança corporativa, mas sabe que a companhia deve ser transparente na divulgação de informações e responsável com a sociedade e seus acionistas. “Nosso horizonte de investimento é de quatro a cinco anos. Por isso temos que buscar empresas que sejam sérias, éticas e, claro, lucrativas.“ |
Quem entrevista Carlos, Mauro, Marcos e Marino Thobias, Anísio Silva, e Ricardo Curado pode achar que se meteram nisso para fazer fortuna a qualquer custo.
Mas como o clube nasceu num café, só tem marmanjo, reúne-se toda quinta, sempre depois do expediente e na mesa de um bar, dá para desconfiar que a fortuna seja objetivo secundário. Apertados para abrir o jogo, riem e Anísio admite: “era uma desculpa em casa para o happy hour das sextas-feiras. Daí elas chiaram e disseram que as sextas eram delas. O jeito foi puxar para as quintas”.
ELES LÊEM BALANÇOS E QUEREM RESPEITO – Nem todo clube, porém, é mais social do que de investimentos. O de 35 engenheiros da Telefônica é um exemplo. Nele, todos lêem balanços, estudam, informam-se, discutem e analisam para fazerem, de verdade, seu pé de meia. Vitório Ueno, Olívio Morgado, Leandro Feichtenberger, Alexandre Gomes, Patrícia Brancallion, Nelson Hara, Edson Moretti… qualquer um deles fala com propriedade do mercado de ações e das empresas que compõem sua fauna.
Parte deles já investia antes de fundarem o clube. Juntaram-se para pagar cauções menores, comprar lotes maiores e diversificar a carteira. Consideram “muito importante” a imagem da empresa e exigem dela “ética, preocupação social e ambiental, respeito pelo minoritário, pelo cliente e pelo empregado, histórico, discurso alinhado com a prática e transparência – principalmente nos balanços de publicação obrigatória”.
GARANTIA DE EMPREGO – Por incrível que pareça, existe pelo menos um clube ainda mais sério. O Cheninvesp, fundado pelos químicos David Minatelli e Alexandre Coelho. Seus critérios já se evidenciam no lema bolado para atrair colegas: “Invista na sua empregabilidade”. Quando falam em investir, não se limitam ao dinheiro. “Resolvemos criar o clube para aportar capital e tecnologia em pequenas empresas do nosso setor, no nosso mercado de trabalho”, diz Minatelli. “A idéia é congregar gente da universidade e da fábrica para propiciar, à pequena indústria, acesso a recursos e inovações tecnológicas”. Minatelli e Coelho pretendem limitar a cinqüenta o número de sócios. Mas esperam ser imitados por muitos dos 150 mil colegas registrados no Conselho Regional de Química do Estado de São Paulo. “Queremos ver muitos clubes, com químicos de cada setor empregador”, diz Coelho.
Novas tecnologias e descobertas, informações colhidas na imprensa e nos sites especializados, nas fábricas e nas universidades em que trabalham serão divulgadas numa rede de uso restrito na net e analisadas nas reuniões do clube que congrega técnicos, doutores, mestres e cientistas.
“Queremos conhecer as empresas antes de investir, de nos tornarmos sócios dela. Transparência é fundamental. A imagem da empresa também. Até para preservar nossa qualificação técnica, privilegiaremos aquelas que adotam práticas tecnicamente responsáveis. Não queremos ações da empresa que polui, só porque soubemos no chão de fábrica que o lançamento de um novo produto vai valorizar suas ações. Se estivéssemos atrás de lucro, deixaríamos tudo por conta da nossa corretora”.
O clube não tem ainda, mas pretende ter, quem leia e interprete balanços, “uma retaguarda própria na área de finanças”, até por saber da necessidade de recursos para o setor, o qual em 2002 faturou R$ 107 bilhões. “Queremos estreitar o contato com as empresas e ser reconhecidos como um grupo de cooperação, pela contribuição técnica e financeira que podemos dar”, diz Minatelli.
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