Nem tudo é consenso
Sistemas de venda, dinheiro na mesa e conflitos de interesse rendem discussões calorosas no mundo dos IPOs

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Quando as ofertas públicas iniciais de ações (IPOs) voltaram a acontecer no País — em maio de 2004, com Natura — o mercado de capitais brasileiro já tinha até esquecido como essas operações funcionavam. Vinha-se de um jejum persistente desde o boom de 1986 — quando foi registrado o último movimento expressivo de abertura de capital — e interrompido apenas na segunda metade dos anos 90, sem muito entusiasmo, por algumas poucas ofertas. Diante da rala experiência no tema, estava claro que não havia muito a fazer além de comemorar a volta das empresas ao mercado. Questionar a forma como essas operações estavam sendo conduzidas não vinha ao caso, até porque os formatos escolhidos, de tão padronizados, sempre deram ares de absoluto consenso. Na definição do preço, por exemplo, a escolha é sempre pelo sistema de bookbuilding — com apenas uma exceção, a Renar Maçãs, que teve suas ações vendidas a preço fixo. No cronograma da oferta, os prazos são praticamente idênticos e, no conteúdo do prospecto, frases e estruturas se repetem com pouco disfarce. Engana-se, porém, quem pensa que tudo isso é parte de uma fórmula testada, comprovada e livre de contestações. Ainda há muita briga entre os especialistas em IPOs sobre alguns desses dogmas.

Um dos alvos mais freqüentes é o sistema de venda das ações, o bookbuilding. Importado dos Estados Unidos, ele é o mais utilizado naquele país, mas não está livre de críticas nem mesmo por lá. Por esse método, os bancos normalmente estabelecem uma faixa inicial de preço baseada na avaliação da companhia e fazem uma série de road shows para “coletar” as intenções dos mais variados investidores com os quais têm relacionamento. A partir daí, definem as alocações que serão feitas a cada um, conforme o interesse demonstrado, e fixam o preço mais conveniente para atender a toda a demanda.

A principal crítica de quem faz oposição ao bookbuilding é em relação ao preço. Diversas pesquisas acadêmicas já demonstraram que ele oferece cotações inferiores às que seriam obtidas nos sistemas de preço fixo e de leilões. “Não vemos evidências de benefícios de longo prazo nas ofertas com bookbuilding. Prova disso é o quanto as ações sobem no primeiro dia de negociação. Os underwriters fixam o preço abaixo do mercado, enquanto, nos leilões, os interessados fazem suas propostas visando o valor justo”, afirma Kent Womack, professor da Tuck School of Business, da Dartmouth College, e um dos mais ferrenhos opositores do bookbuilding no mundo acadêmico.

Entender por que os bancos gostam tanto do bookbuilding — e as companhias os aceitam, a despeito da desvantagem de preço — é uma tarefa na agenda dos especialistas em IPO desde o final dos anos 90. O debate esquentou nos anos 2004 e 2005, depois que Google e Morningstar quebraram esse paradigma e venderam suas ações pelo sistema de leilão. Quando a questão vem à tona, o time de defensores do bookbuilding logo trata de valorizá-lo deixando claras as deficiências dos leilões.

Um dos principais problemas diagnosticados nestes últimos é o chamado “free rider problem”, que torna o resultado do leilão altamente imprevisível. Por “free rider” pode-se entender aquele sujeito que não estudou a fundo a companhia, entra no leilão com um preço bem acima do que os outros tinham se proposto a pagar e leva um lote considerável de ações. Embora a idéia pareça sedutora para os emissores num primeiro momento, seu horizonte é de curtíssimo prazo. Ao mesmo tempo em que, numa próxima oferta, ninguém poderá assegurar que esse ou outro investidor cairá de pára-quedas pagando preços fabulosos, é bem provável que os compradores assíduos de IPOs, dispostos a estudar a operação e a adquirir bons lotes com regularidade, estarão desestimulados pelo ocorrido na operação anterior.

Google e Morningstar quebraram o paradigma do bookbuilding vendendo suas ações pelo sistema de leilão

“Quando é custoso juntar informações para avaliar uma empresa, os investidores querem ser recompensados, e os leilões tradicionais não permitem isso”, afirmam Ravi Jagannathan e Ann Sherman, em Why do IPO auctions fail?, publicado pelo National Bureau of Economic Research (NBER) em abril de 2006. Essa é, segundo os autores, a grande diferença entre as ofertas de ações e de títulos de renda fixa, que costumam ocorrer no modelo de leilão. Se o título requer um estudo menos acurado, como os bonds, por exemplo, o sistema de leilão funciona bem. Afinal, as ofertas são muito mais freqüentes e os títulos, mais simples de analisar. Ativos mais complexos, porém, exigem investidores mais qualificados e estes, por sua vez, querem alguma garantia dos bancos de que terão a alocação de recursos desejada. “Hoje podemos dizer que os bancos e seus clientes (empresas e investidores) preferem o sistema de bookbuilding. Por isso ele é tão popular”, defende Tom Troubridge, chefe da área de mercado de capitais da PricewaterhouseCoopers (PwC) em Londres, que acompanha o movimento de IPOs em todo o mundo.

Umas das principais deficiências diagnosticadas nos leilões é o chamado “free rider problem”, que torna seu resultado altamente imprevisível

PRIVILÉGIOS? — Mas é justamente a relação entre o banco e o cliente investidor que ganha destaque na cartilha dos críticos do bookbuilding. “O underwriter tem dois importantes clientes: os investidores — que, para aparecer nas próximas ofertas, exigem as condições de um bom negócio — e as companhias emissoras, que voltam ao mercado com pouca freqüência. Por isso ele se dedica aos interesses dos que voltam sempre”, afirma Womack, da Tuck School. Para ele, o bookbuilding concede uma liberdade excessiva aos bancos na hora de fazer a alocação de recursos, o que pode levar a preços não muito justos para o emissor.

Womack concorda que algum incentivo na largada — o chamado “desconto de IPO” — é necessário para estimular os investidores a comprar os papéis de uma companhia que ainda não tem histórico. É também uma forma de os atuais sócios e executivos “recompensarem” os investidores, uma vez que conhecem o valor intrínseco da empresa e visualizam o potencial de alta do papel. “Companhias de alta qualidade demonstram que fazem jus a esse status jogando dinheiro fora, e uma das formas de fazer isso é deixando dinheiro na mesa em um IPO”, já diziam Jay Ritter e Ivo Welch, em A review of IPO activity, pricing and allocations, de 2002, também publicado pelo NBER. Mas a crítica de Womack é que esse desconto não precisaria ser tão alto quanto se costuma praticar nos sistemas de bookbuilding.

Já Sherman e Jagannathan deixam claro que o “dinheiro deixado na mesa” não tem se revelado uma grande preocupação para os emissores. Eles observam que as vendas com preço fixo apresentam historicamente um desconto maior do que aquelas por leilões e, mesmo assim, em mercados que utilizam as duas formas, como os europeus, o modelo de preço fixo é mais popular que o de leilão. O grande problema deste último é a total ausência de “garantia de que um grupo de investidores sérios terá estímulo para dedicar tempo e recursos para avaliar a oferta”, afirmam os pesquisadores. Por isso, emissores preferem ser tolerantes com alguma defasagem de preço a cair nas mãos de investidores pouco qualificados. Para os dois pesquisadores, o melhor jeito de resolver o excesso de poder atribuído aos bancos no bookbuilding é ampliar ao máximo a transparência sobre o processo de alocação.

Outra forma de controlar a liberdade do banco é o chamado bookbuilding concorrente (competitive bookbuilding), utilizado pelo mercado londrino em duas situações relativamente recentes: o IPO da Pages Jaunes (Yellow Pages), na Euronext em 2004, e o da Inmarsat (Telco), em 2005. Nesta versão, a companhia escolhe três ou quatro bancos para tocar a coleta de intenções e, ao final do processo, fica com aquele que tiver conseguido o melhor preço. Os demais, portanto, ficam a ver navios. A experiência não só desagradou os bancos, que temiam amargar o prejuízo de fazer o trabalho e não levar a comissão, como arregalou os olhos do órgão regulador. A FSA deu um alerta de que a concorrência acirrada poderia induzir os analistas sell side dos bancos de investimento a produzir relatórios exageradamente otimistas com o intuito de levar a sua instituição a vencer a concorrência. Diante do desânimo dos bancos e do olhar atento do regulador, o modelo não pegou e, desde então, os bookbuildings voltaram a ser realizados nos moldes tradicionais, conta Troubridge, da PwC.

Os emissores preferem ser tolerantes com alguma defasagem de preço a cair nas mãos de investidores pouco qualificados

CONFLITOS DIVERSOS — O alinhamento de expectativas entre emissores e bancos sobre o preço do IPO é, sem dúvida, um tema intrincado. Se, por um lado, existe a desconfiança de que os bancos podem exagerar no desconto para atender aos interesses dos investidores, há também o fato de que os underwriters costumam ser remunerados com base no valor total da emissão e, em alguns casos, possuem até opções de ações da companhia. Por isso, conseguir o melhor preço não é apenas um interesse do emissor, mas também do banco. Do lado das companhias, em princípio, tudo o que se quer é a valorização máxima do papel. Mas também é preciso equilibrar essa aspiração com algum desconto, para que novos investidores se sintam motivados a comprar o papel e a trajetória na bolsa seja ascendente.

Duas soluções podem reduzir o excesso de poder atribuído aos bancos: ampliar a transparência na alocação ou utilizar o sistema de bookbuilding concorrente


Há quem ponha ainda mais pimenta nesse molho ao lembrar de uma outra variável (um tanto menos, digamos, ortodoxa) capaz de influenciar o interesse da companhia no preço de um IPO. Ou, melhor, o interesse de seus gestores ou proprietários. Womack e outros dois acadêmicos — Rajesh K. Aggarwal e Laurie Krigman — observaram, numa amostra de ofertas públicas iniciais de ações, forte correlação entre companhias que têm gestores com grandes participações no pré- IPO e casos de descontos elevados na oferta. Concluíram que este seria o indício de que gestores estariam manipulando o preço para ganhar mais com suas ações após encerrado o período de lock up — normalmente de seis meses, em que os administradores estão impedidos de se desfazer dos papéis que possuem. Ao “aceitar” um preço bastante inferior ao justo no momento zero, eles estariam motivando uma alta forte das cotações nos meses seguintes e, desta forma, alavancando os ganhos após o fim do lock up. A idéia, que só faz sentido em uma oferta eminentemente primária, se viabilizaria ao custo da oportunidade de aplicação do capital da companhia, que, em tese, faria bom uso dos recursos se eles estivessem em seu caixa. Como se vê, o processo de abertura de capital de uma companhia está longe de ser, ao contrário da impressão que se tem dos últimos IPOs brasileiros, uma ciência exata. Parece que essa receita teoricamente testada e aprovada está cheia de armadilhas e que o bolo pode, sim, desandar.


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