Dois séculos de história
Em meio à fuga de D. João VI e o empreendedorismo de Mauá, nascem as primeiras ofertas públicas de ações no Brasil

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Em 1808, quando Napoleão Bonaparte resolveu invadir Portugal exasperado com a aliança econômica entre os lusos e os ingleses, indiretamente ele ajudou a iniciar o desenvolvimento econômico do Brasil e a acelerar o que viria a ser a primeira oferta pública inicial de ações da então colônia, perdida no Novo Mundo. Talvez seja exagero afirmar que a bonança do atual cenário no mercado de capitais, com seus 26 lançamentos de ofertas públicas iniciais em 2006, deve um pouco de sua pujança ao comandante corso. Mas até que, historicamente falando, faz todo o sentido olhar para além-mar ao lembrar o passado.

O mercado de capitais brasileiro surgiu timidamente no século 19. A história começou com a chegada da família real portuguesa ao Brasil. Ao se instalar no Rio de Janeiro, alguns meses depois de aportar por aqui, ainda em 1808, dom João VI tinha como missão fundar o banco da metrópole. Pediu, então, aos governadores das capitanias que buscassem acionistas para o futuro Banco do Brasil (BB), fundado em dezembro de 1809. E foi assim que esses governadores empreenderam, há quase dois séculos, a primeira oferta pública de ações brasileira — que, a bem da verdade, não seria necessariamente um sucesso. Até 1912, apenas 126 ações do BB haviam sido subscritas. A oferta durou nove anos, terminando somente em 1817, quando haviam sido captados 1.200 contos de réis. O Banco do Brasil protagonizava, assim, aquela que seria não apenas a primeira, mas também a mais longa oferta pública inicial de ações realizada no País.

Nessa época, não havia um lugar apropriado para o pregão. Por isso, em 1819, dom João VI mandou que se organizasse a construção de uma sede para a Bolsa do Rio de Janeiro. O Banco do Brasil financiaria a obra e, em seu balanço de 1821, estaria registrada a conta: cento e sessenta e oito contos, trezentos e cinqüenta e seis mil e trinta e três réis. Mas nem tudo são flores no coração do empreendedorismo português. Nesse mesmo ano, a família real portuguesa voltou para casa, levando com ela todo o dinheiro do banco. Resultado, a instituição, totalmente esvaziada por saques da coroa portuguesa, foi liquidada em 1833.

Em 1851, já com o Brasil no status de nação soberana, Irineu Evangelista de Souza, o Barão e Visconde de Mauá, cria uma nova instituição, também chamada Banco do Brasil. A Bolsa do Rio de Janeiro, criada em 1845, passa a ser o centro das reuniões de negócios do novo banco, e também o palco para o seu IPO: o novo BB arrecada 10 mil contos de réis com ações, uma quantia de respeito para a época. É nesse período — precisamente em 1843 — que é instituída a regulamentação dos profissionais responsáveis pela comercialização das ações. A atividade de corretor foi criada, principalmente, para a fiscalização e o reconhecimento das letras de câmbio, e a lei vedava o ofício a “mulheres, estrangeiros, militares, padres e falidos”.

Em 1853, o BB se funde com o Banco Comercial do Rio de Janeiro e triplica o seu capital. Mais um lançamento de ações é feito: 53% dos papéis do banco ficam com os acionistas já existentes, e os outros 47% são comercializados com sucesso. Nessa mesma época, o Barão e Visconde de Mauá cuidou também da oferta pública inicial da primeira indústria brasileira a ter ações lançadas em bolsa: a fabricante de tubos, bombas hidráulicas e navios chamada Companhia da Ponta D´Arêa, de Niterói, da qual era o principal acionista. Mauá elaborou os estatutos da companhia, que previam pagar dividendos de 7% ao ano aos acionistas, com garantia de cinco anos. Pouco depois, o empreendimento sofreu com a entrada de produtos estrangeiros no País, não resistiu à competição e faliu.

Em 1852, a Imperial Companhia de Navegação a Vapor Estrada de Ferro de Petrópolis, também do visionário Visconde de Mauá, assumiu a incumbência de construir a primeira estrada de ferro do País. O trecho, de 15,19 quilômetros, ligaria a Praia da Estrela à Raiz da Serra, no Rio de Janeiro. Para financiar o projeto, foram lançadas ações da companhia. Uma delas, reproduzida no livro História da Engenharia no Brasil, é uma cautela de 2.000 contos de réis. Mas nem mesmo a estrada de ferro e sua “locomotiva veloz, cujo sibilo agudo ecoaria nas matas do Brasil e marcaria uma nova era no País”, conseguiram garantir o sucesso dos negócios da Imperial Companhia na bolsa. Assim como a Companhia Ponta D´Arêa, ela acompanhou o declínio de seu fundador e faliu.

Em 1893, o Banco do Brasil se une ao Banco da República dos Estados Unidos do Brasil, passando a se chamar Banco da República do Brasil. Já no século 20, em 1905, seu nome perde o “República” e volta a ser Banco do Brasil. Depois de um acordo com os acionistas privados e uma autorização do Congresso Nacional, o governo passou a deter 50% do capital da instituição. Em 1906, suas ações ordinárias foram finalmente listadas na Bolsa do Rio. Em 1921, ingressaram na Bolsa de Valores de São Paulo. O pioneirismo do BB formou laços fortíssimos com o mercado de capitais brasileiro. O banco é a companhia aberta há mais tempo listada em bolsa de valores.

Grande parte das expansões eram financiadas por ofertas de ações. Quando os acionistas não iam até a bolsa, o presidente da companhia ia até os acionistas

DOIS ANOS PARA O IPO — No início do século, outras empresas vêem na bolsa uma forma atrativa de captar recursos para ampliar a infra-estrutura e crescer. Em fevereiro de 1907, a diretoria da Companhia Força e Luz Cataguazes-Leopoldina (atual Energisa S.A) se reuniu para discutir a captação dos 300 contos de réis necessários a investimentos no setor elétrico. Apenas dois anos após a sua fundação, a companhia mineira decide abrir o capital e, em 23 de maio de 1907, é listada sob o registro número 3 na Bolsa de Valores do Rio de Janeiro. Desde 1911, a companhia paga dividendos semestralmente aos acionistas. A primeira emissão de ações foi subscrita pelo Banco de Crédito Real, de Juiz de Fora, e pela Companhia Industrial Sul-Mineira de Itajubá.

Além da complicada tarefa de manter uma companhia aberta, a Cataguazes-Leopoldina teve dificuldades em vender seu produto, a energia elétrica. “Não bastava a companhia ligar a luz nas casas. Primeiro, ela precisava convencer o seu dono de que a energia era boa e útil. Então, tinha de fazer tudo, instalar fios, doar lâmpadas para acostumar as pessoas a usar energia. “Elas estavam tão habituadas a viver no escuro que não tinham a menor idéia do que era o progresso”, diz Ivan Botelho, presidente do conselho da administração da empresa.

Desde o início, grande parte do financiamento necessário às expansões foi obtida no mercado de capitais, por meio de oferta de ações. Quando os acionistas não iam até a bolsa, o presidente da companhia ia até os acionistas. Na década de 50, Ormeo Junqueira Botelho (1897-1990), presidente ao longo de seis décadas, chegou a percorrer diversas fazendas da região mineira para apresentar a Cataguazes- Leopoldina aos fazendeiros locais, na tentativa de atrair mais investidores. O pioneirismo não poderia ter sido mais bem-sucedido, e a Cataguazes-Leopoldina continua listada, hoje apenas na Bovespa.

O mercado de capitais brasileiro passou por um longo período de estagnação após a Segunda Guerra Mundial. Voltou a dar sinais de vida e a crescer com o Decreto-Lei 157, de fevereiro de 1967, que permitia utilizar parte do Imposto de Renda para compra de ações como forma de estímulo ao investimento na empresa privada nacional. “O mercado começou a crescer a partir de 1967, até então era bem incipiente”, lembra o economista Roberto Teixeira da Costa, primeiro presidente da Comissão de Valores Mobiliários (CVM).

O BOOM E A BOLHA — Nessa ocasião, os incentivos e a inexperiência com o mercado provocaram um correcorre à bolsa, culminando em diversos lançamentos de ofertas públicas iniciais e numa bolha que explodiria em 1971. Aliás, foi essa crise que precipitou a criação da CVM, em 1976. “O desgaste sofrido entre 1971 e 1975 foi brutal. O mercado, antes da CVM, estava totalmente destruído, desmotivado. Era quase como se tivéssemos de reconstruir a confiança do zero. Para que isso fosse feito, ficou patente a necessidade de se criar um órgão regulador”, diz Teixeira da Costa.

Até então, o mercado de capitais brasileiro operava sem um órgão específico para o seu controle. Era supervisionado apenas pela Gerência de Mercado de Capitais do Banco Central (a Gemec), que mal dava conta da tarefa. No início da década de 80, já com a consolidação da Comissão de Valores Mobiliários, a publicação de novas diretrizes para a política nacional de informática, com medidas que visavam o fomento das empresas desse setor, ajudou a incentivar a abertura de capital e o lançamento de ações de diversas companhias. Nessa época, aconteceu um ciclo muito forte de ofertas públicas, e cerca de 40 empresas lançaram ações.

Mas o cenário, embora efervescente, pecava pela inexperiência. “Naquela época, a qualidade da informação e o nível de preparação das empresas era completamente diferente. Se compararmos um prospecto daquela época com os de hoje, é quase uma piada”, lembra José Olympio Pereira, diretor do banco de investimentos Credit Suisse. Depois do movimento de 1986, o mercado de capitais brasileiro registrou mais um período de paralisia, ultrapassado no início da década de 90 com a entrada de capital estrangeiro no País. A criação de outra medida legal, o Anexo 4 (que permitia a entrada e a saída do capital estrangeiro das bolsas sem restrição de tempo, necessidade de reter imposto na fonte ou obrigatoriedade de diversificação), voltou a incentivar o mercado, mas desta vez com menos vigor. De 1994 a 1997, 11 empresas abriram o capital.

A partir daí, a crise da Ásia voltou a influenciar negativamente a economia do País. Resultado: entre 1998 e 2003, foram feitas apenas duas ofertas públicas de ações: a do Grupo Ultra, em 1999, e a da CCR, em 2002, já no Novo Mercado. Recuperado do baque, em 2004, o mercado de ações mostrou um fôlego surpreendente a partir do IPO de Natura, em maio daquele ano. E as perspectivas de aumento das ofertas públicas iniciais para 2007 são ainda melhores: “Devemos chegar a 40 aberturas de capital”, estima José Olympio Pereira.


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