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Trincas expostas
Assombradas por erros do passado, incorporadoras sofrem com aumento de estoques e distratos de clientes
Construção

Ilustração: Marco Mancini/Grau 180

Há exatos dez anos o setor de construção civil começava a se tornar um dos mais representativos da BM&FBovespa. A partir de 2006, nada menos que 20 incorporadoras ingressaram no pregão, arrecadando, em conjunto, cerca de R$ 11,4 bilhões por meio de ofertas públicas iniciais de ações (IPOs). Com o caixa abarrotado de dinheiro, as empresas correram para adquirir terrenos e lançar empreendimentos. Entre 2010 e 2013, as incorporadoras viviam um período áureo — o crescimento da economia e os juros baixos alimentavam a fartura de crédito e o sonho do brasileiro de comprar a casa própria. De 2014 para cá, entretanto, o cenário mudou completamente: hoje o País passa por uma profunda crise política e econômica, ao mesmo tempo em que a taxa Selic atinge a casa dos dois dígitos, sem perspectiva momentânea de redução. O efeito dessa reviravolta está estampado no Produto Interno Bruto (PIB) da construção civil. Em 2015, o indicador encolheu 8% e, neste ano, a queda deve ser de aproximadamente 5%, segundo prognóstico do Sindicato da Indústria da Construção Civil do Estado de São Paulo (Sinduscon-SP) e da Fundação Getulio Vargas (FGV).

Na bolsa, os preços dos papéis das incorporadoras refletem a atrofia. No dia 22 de abril, as nove empresas integrantes do Imob (índice imobiliário da BM&FBovespa) — Cyrela, Even, Eztec, Gafisa, Helbor, MRV, PDG, Rossi e Tecnisa — valiam R$ 14,56 bilhões. O montante é bem menor do que a capitalização dessas empresas no encerramento do primeiro trimestre de 2011 (R$ 38,52 bilhões). “Nesses cinco anos, o setor conviveu com um paradoxo. Mesmo vendendo vários imóveis a preços altos, as incorporadoras perderam rentabilidade, pois enfrentaram problemas de execução e planejamento, além de aumento das despesas”, explica o professor de negócios imobiliários da Fundação Armando Álvares Penteado (Faap) Ricardo Rocha Leal.

Alguns desses obstáculos foram consequência de ações equivocadas das próprias incorporadoras. Sem calcular adequadamente os riscos de uma eventual mudança no cenário econômico — não imaginavam, por exemplo, que em pouco mais de dois anos a Selic passaria de 7,25% (seu menor patamar histórico) para 14,25% ao ano, ou que a concessão de crédito imobiliário iria minguar, espalharam canteiros de obras por todo o País. Hoje, sobram empreendimentos concluídos com parte das unidades encalhadas ou devolvidas. Segundo o empresário e ex-presidente da Even Carlos Terepins, a ânsia em mostrar trabalho foi uma das várias decisões estratégicas erradas tomadas pelas incorporadoras na época de bonança — elas acabaram cedendo à pressão dos investidores por resultados rápidos. “O problema é que essa visão de curto prazo não combina com o tempo de maturação do setor”, avalia. O ciclo de produção da construção civil pode superar cinco anos (da aquisição do terreno ao repasse do imóvel ao comprador depois que obtém o financiamento bancário).

Outro efeito da corrida das construtoras para lançar projetos: a disparada dos preços dos terrenos, dos insumos e da mão de obra — aumento devidamente repassado para os imóveis. Entre janeiro de 2008 (início da série histórica do índice FipeZap) e março de 2016, o preço médio do metro quadrado anunciado na cidade de São Paulo, maior mercado do País, saltou de R$ 2,6 mil para R$ 8,6 mil, uma alta de 225%. “Os valores subiram muito e, agora, é necessária uma adaptação à nova realidade da capacidade de pagamento dos clientes”, observa a coordenadora de projetos da construção do Ibre/FGV, Ana Maria Castelo.

Essa adequação, contudo, tem impacto direto sobre os resultados das empresas. Para se livrar das unidades empacadas, as companhias oferecem aos compradores descontos entre 10% e 20%. “Mas, para os imóveis devolvidos às incorporadoras, o percentual pode atingir 30%”, ressalta Leal, da Faap. Como consequência, a margem bruta do setor vem caindo. De acordo com o J.P.Morgan, a retração foi de 31,4% em 2015, ante recuo de 32,2%, em 2014. A situação não é muito melhor quando se olha a última linha do balanço das incorporadoras. Entre as companhias do Imob, apenas Gafisa e Tecnisa conseguiram fazer o lucro líquido crescer no período (veja o infográfico).

Construção - tabelas 2 e 3

Cabe ressaltar que o aumento apresentado pela Tecnisa, de expressivos 52,9%, está ligado a um evento não recorrente: a empresa vendeu, em outubro do ano passado, uma fatia de sua participação no empreendimento Jardim das Perdizes, por R$ 179 milhões. A compradora foi a gigante americana do mercado imobiliário Hines. Voltado às classes A e B, o Jardim das Perdizes é uma espécie de bairro planejado, na região oeste de São Paulo, com 28 torres. De acordo com o analista da área de construção do J.P.Morgan, Marcelo Motta, a venda de participação em projetos ou empreendimentos é a melhor alternativa para as incorporadoras reduzirem o endividamento — outro grave problema enfrentado pelo setor. A PDG, que também se desfez de sua participação no Jardim das Perdizes, por R$ 160 milhões, é a incorporadora mais encrencada nesse quesito. Dona de uma dívida líquida de R$ 5,55 bilhões, enfrenta problemas para refinanciar seus compromissos financeiros. Embora possua quase R$ 11 bilhões em ativos, sua liquidez é restrita, já que a maior parte do valor se refere a estoques de imóveis, terrenos e contas a receber.

Na tentativa de encontrar um equilíbrio em meio à crise, as incorporadoras reduziram em 19,3% o número de lançamentos em 2015 em comparação com 2014, totalizando 60.274 unidades. Os dados são da Associação Brasileira das Incorporadoras Imobiliárias (Abrainc), que reúne informações de 19 grandes companhias do setor, em parceria com a Fipe. Algumas construtoras, como Eztec, Even, PDG e Rossi, foram mais longe nos cortes, a ponto de ficarem um ou mais trimestres de 2015 sem colocar um novo projeto sequer na praça. Nos cálculos do J.P.Morgan, o valor geral de vendas (VGV) no ano passado somou R$ 10,7 bilhões, pouco mais da metade do registrado em 2014 (R$ 18,2 bilhões).

Dinheiro escasso

A devolução de imóveis adquiridos na planta — o chamado distrato — é hoje um grande calcanhar de aquiles do setor. Segundo a Abrainc, apenas no quarto trimestre de 2015, foram computados 12,9 mil distratos, uma alta de 20,2% sobre igual período de 2014. Por causa do aumento do desemprego e da redução da renda, muitos compradores enfrentam dificuldades para obter um empréstimo bancário — ainda mais em um ambiente de restrição da oferta de crédito e juros altos. Principal agente financiador do segmento imobiliário, a Caixa já elevou desde o ano passado suas taxas em quatro oportunidades. A mais recente ocorreu no fim de março, quando a chamada taxa balcão, para quem não é cliente do banco, atingiu 11,2% ao ano e para correntistas, 11%. Os percentuais são válidos para financiamentos enquadrados no Sistema Financeiro de Habitação (SFH) (veja infográfico abaixo).

Construção - tabela 1

Os saques da caderneta de poupança (principal fonte de recursos para os bancos emprestarem aos futuros mutuários) explicam a restrição no crédito. No ano passado, o patrimônio da poupança atingiu R$ 656,5 bilhões, depois de ter sido registrada saída líquida de R$ 53,5 bilhões — o pior resultado desde 1995, quando começou a série histórica do Banco Central. Como comparação: em 2013, o saldo ficou positivo em R$ 71 bilhões. No primeiro bimestre de 2016, a sangria se manteve, com uma retirada recorde para o período, de R$ 18,8 bilhões. Não é difícil entender por que os recursos minguaram. Com a Selic a 14,25% ao ano, os investidores têm preferido aplicações mais rentáveis.

Dados da Associação Brasileira das Entidades de Crédito Imobiliário e Poupança (Abecip) mostram que o volume financiado com recursos da poupança recuou 33% em 2015 em relação ao ano anterior, para R$ 75,6 bilhões. Como resultado, o total de unidades financiadas encolheu de 538,3 mil em 2014 para 341,5 mil no ano passado, uma retração de 36,6%. Para 2016, Gilberto Abreu, presidente da entidade, projeta um novo tombo no volume financiado, em torno de 20%, com o mercado ainda se “ajustando à nova realidade macroeconômica”.

Descoladas

Em meio a esse cenário desolador, duas companhias abertas, a MRV e a Gafisa, se destacam pela resiliência. A primeira deve o sucesso ao nicho de atuação: compradores de imóveis elegíveis ao programa federal de habitação popular Minha Casa Minha Vida. A construtora é líder no segmento, que tem seu fôlego para expansão de lançamentos e vendas sustentado pelos recursos originários do Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS), cujo funding continua abundante. “Sempre existirá farta demanda em nosso segmento, já que o Brasil possui enorme déficit habitacional”, observa o copresidente da MRV Rafael Menin. Diferentemente da maioria de seus pares listados na bolsa, a empresa aumentou o valor geral de vendas (VGV) em 2015, em 8,4%. Além disso, a companhia ampliou em 25,2% seu banco de terrenos, a fim de elevar o market share dentro do programa do governo e se expandir em cidades com maior potencial de demanda.

Outra companhia com desempenho descolado do resto do setor na bolsa é a Gafisa. Ela se beneficia dos bons resultados gerados pela sua subsidiária Tenda, que também atua no mercado de baixa renda. Adquirida em 2008, foi motivo de grande dor de cabeça para sua controladora anos atrás. Entre 2011 e 2012, com pelo menos 100 canteiros de obras atrasados pelo País, a Tenda foi obrigada a parar os lançamentos e a se concentrar na entrega dos imóveis — objetivo alcançado apenas no ano passado. No período, aproveitou para colocar a casa em ordem. Uma das medidas adotadas foi a concentração dos negócios em apenas seis grandes cidades (São Paulo, Rio de Janeiro, Belo Horizonte, Porto Alegre, Recife e Salvador). Ao trabalhar dessa forma, a empresa tem a vantagem de poder manter equipes regionais, que, ao fim de uma obra, já partem para outro canteiro. Há, com isso, um ganho de eficiência. Bom saber que há companhias do setor se esforçando para aprender com erros.


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