“O ‘hardware’ do ser humano, isto é, nossa capacidade de agir racionalmente, vem com defeito de fábrica.” Após anos de estudos e publicações a respeito de sociologia e economia comportamental, hoje é difícil refutar a ideia de que nossa suposta racionalidade está sujeita a desvios sistemáticos. Mas imagine o furor que essa afirmação causou há 40 anos no mundo acadêmico e como reverberou pelo campo da economia. A história contada por Michael Lewis em The Undoing Project: a Friendship that Changed Our Minds descreve a parceria improvável entre Daniel Kahneman e Amos Tversky, dois psicólogos israelenses que receberam o prêmio Nobel por sua obra.
As trajetórias dos protagonistas não poderiam ser mais divergentes, e muitos de seus amigos em comum ainda se questionam como os dois desenvolveram o raro tipo de simbiose acadêmica em que o produto dos dois era muito maior que as contribuições individuais. Kahneman era inseguro e introvertido; Tversky, um herói de guerra extrovertido de personalidade dominante. Encontram-se na Universidade de Tel-Aviv — depois de Tversky literalmente cair de paraquedas no campo da psicologia — e rapidamente desenvolvem uma intensa conexão pessoal e intelectual, a ponto de não lembrarem quem criava a ideia original de cada “paper” acadêmico. Reza a lenda que eles jogaram cara ou coroa para decidir quem seria o autor do primeiro, e simplesmente alternaram seus nomes daí em diante.
A partir da apresentação dos protagonistas, o livro nos conduz pelos caminhos paralelos de suas vidas pessoais e suas produções acadêmicas, nem sempre em ordem cronológica. O autor conta os bastidores das origens de algumas das ideias e teorias mais influentes do século 20: efeito da ancoragem, viés de autoconfiança, enquadramento (“framing”), regressão à média, o efeito do halo, e uma série de outros vieses cognitivos hoje amplamente conhecidos.
Uma vez entendidas e catalogadas as fragilidades da mente humana diante de situações ambíguas, as implicações são vastas para os indivíduos responsáveis por decisões em qualquer tipo de organização. Kahneman e Tversky abordam situações como a escolha de oficiais em organizações militares, a seleção de jogadores por clubes de basquete, os diagnósticos médicos e numerosos outros casos em que a decisão humana está sujeita a ser sub-ótima. O próprio Lewis já resvalou nesse tema em Moneyball (que virou filme), em que o técnico de um time obscuro de beisebol nos EUA escolhe os jogadores do time com base em um algoritmo computacional — e com êxito.
Quando pensamos em duplas de sucesso, nossa mente nos remete ao ambiente artístico (Simon & Garfunkel, Butch Cassidy e Sundance Kid, duplas caipiras), mas deveríamos também conhecer o improvável duo Kahneman e Tversky, que produziu um enorme impacto na maneira como enxergamos vários campos do conhecimento e escancarou as limitações humanas em muitas situações, especialmente no campo econômico. Mas, apesar de contar a história do desenvolvimento da economia comportamental, o livro de Lewis trata do relacionamento entre dois indivíduos, seus altos e baixos. Como explicar essas parceiras longevas, que “desafiam a lei da gravidade”? Uma resposta possível é que o ego do personagem fictício “Kahneman+Tversky” tenha adquirido uma dominância sobre os egos de cada indivíduo, a ponto de ambos só reconhecerem sua produção como fruto de colaboração. A mente e o comportamento humano nunca deixarão de nos surpreender.
*The Undoing Project: A Friendship that Changed Our Minds
Michael Lewis
Editora: W. W. Norton & Company
368 páginas
1a edição, 2016
* Peter Jancso é sócio da Jardim Botânico Investimentos e conselheiro independente
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