Pé no freio
Plataformas de negociação lançam estratégias para combater algoritmos ultravelozes
Ilustração: Marco Mancini / Grau 180

Ilustração: Marco Mancini / Grau 180

Brad Katsuyama ganhou notoriedade depois de o jornalista Michael Lewis ter contado sua história no livro The Flash Boys: a Wall Street Revolt. Diretor da mesa de operações da corretora do Royal Bank of Canada de 2002 a 2012, ele não entendia por que muitas vezes em que estava a um clique de fechar uma operação as ações que pretendia negociar simplesmente sumiam de sua tela ou mudavam de preço. Ele se dedicou, então, a uma vasta pesquisa e conseguiu desvendar o mistério: a culpa era dos robôs para operações em alta frequência, conhecidos como HFTs. Por meio de algoritmos, essas máquinas são capazes de vasculhar diversas plataformas de negociação — nos Estados Unidos, são quase 60 — e encontrar a melhor oferta para um mesmo ativo, tirando vantagem da chamada arbitragem de latência, que é a compra ou venda ligeiramente à frente de outros participantes do mercado. Detalhe: todo esse processo transcorre em microssegundos. Não à toa, quem pode pagar por essa tecnologia tem nas mãos uma vantagem poderosa. A desigualdade incomodou Katsuyama — a ponto de, em 2012, ele criar a IEX, plataforma alternativa de negociações anônimas (dark pool) que tem como objetivo frear as estratégias dos HFTs. “Hoje já estamos na terceira posição entre as plataformas alternativas e somos maiores, em volume de negociação, do que 4 das 12 bolsas de valores americanas”, ressaltou Katsuyama em entrevista no começo deste ano ao Market Watch, site de notícias do grupo Dow Jones.

Dado o avanço da plataforma, é compreensível que o herói de The Flash Boys queira voar mais alto. Em setembro do ano passado, ele pediu autorização ao regulador americano para transformar a IEX em uma bolsa de valores e, no dia 17 de junho, recebeu a boa notícia: seu pedido foi autorizado. “Esse é um marco para todos aqueles que apoiaram a IEX. Estamos ansiosos para funcionar como bolsa de valores, o que nos dará a oportunidade de ter um impacto ainda maior sobre os mercados”, disse Katsuyama, em comunicado à imprensa.

A transformação da IEX em uma bolsa teve o apoio de grandes nomes, entre eles o magnata do ramo hoteleiro Steve Wynn e a firma de investimentos Bain Capital. Juntos, eles investiram US$ 100 milhões na preparação da IEX para se tornar um pregão. A mudança é vantajosa por alguns motivos. Primeiro porque, como uma dark pool, a IEX fica com acesso a uma fatia restrita de mercado. De acordo com normas da Securities and Exchange Commission (SEC), quando uma bolsa oferece um preço melhor para um ativo, a ordem do investidor deve obrigatoriamente ser enviada para ela. Isso deixa as plataformas alternativas de negociação em segundo plano. Outro motivo é a possibilidade de recebimento de listagem de ações, que deve criar uma fonte adicional de receita.

Para subsidiar a análise do pedido da IEX, a SEC solicitou comentários do mercado — recebeu mais de 300 manifestações. A demora do regulador para dar o aval reflete o cuidado com que estava avaliando o principal diferencial da plataforma: o uso de uma espécie de amortecedor, chamado POP (point-of-presence), que impõe um atraso de 350 microssegundos na entrada e saída de ordens. Isso torna inviável estratégias de arbitragem de latência. Entre os quase 100 usuários da plataforma estão J.P. Morgan, Bank of America, Goldman Sachs e até Itaú BBA, que opera na IEX por meio de seu braço nos EUA.

Para subsidiar a análise do pedido da IEX, a SEC solicitou comentários do mercado — e recebeu 300 manifestações

Se o grupo a favor da IEX incluiu pesos-pesados, o time que torcia contra tem semelhante relevância. Nasdaq, Nyse e o hedge fund Citadel (com US$ 25 bilhões de ativos sob gestão) tentaram persuadir a SEC a rejeitar o pedido de Katsuyama. Na avaliação deles, a autorização tende a encorajar outras plataformas de negociação a copiar o sistema de redução de velocidade proposto pela IEX. A disseminação desse modelo, alertam os críticos, pode tornar o mercado americano extremamente complexo, uma vez que o investidor passaria a ter acesso a dois tipos de cotação: uma em tempo real e outra defasada. Ao dar a autorização à IEX, a SEC disse que vai conduzir um estudo de dois anos para mapear o efeito de atrasos intencionais sobre a qualidade do mercado, incluindo os preços de ativos, e que vai autorizar apenas plataformas que trabalhem com atrasos de menos de um milésimo de segundo.

O uso de um “amortecedor” de ordens, contudo, é apenas uma forma de se sobrepujar os investidores que usam algoritmos ultravelozes. Lançada em novembro de 2015 nos Estados Unidos, a Luminex simplesmente não autoriza que esses investidores negociem na plataforma — proibição que se estende aos hedge funds quantitativos. A decisão se alinha ao objetivo da Luminex de ser um ambiente de negociação para investidores de longo prazo (e com mais de US$ 1 bilhão sob gestão) e que queiram movimentar grandes volumes. Entre seus proprietários estão as duas maiores gestoras de recursos do mundo: BlackRock, com US$ 4,5 trilhões de patrimônio, e Fidelity Investments, com US$ 5 trilhões. “Nós existimos porque as grandes firmas de investimento estão ficando frustradas com o mercado de capitais”, diz Jonathan Clark, executivo-chefe da Luminex. Hoje, cerca de 100 gestoras de recursos estão aptas a negociar na plataforma.

Xerifes atentos

Embora não tenham a intenção de banir as operações em alta frequência, os reguladores estão cada vez mais preocupados com sua proliferação e seus potenciais riscos. Em outubro de 2015, a presidente da SEC, Mary Jo White, alertou para a necessidade de as empresas de HFT serem submetidas a uma regulamentação mais rígida, em razão de sua crescente participação no mercado de títulos da dívida americana. Segundo o grupo TABB, firma de pesquisa sobre os mercados de valores mobiliários de Estados Unidos, Europa e Ásia, as empresas não bancárias que usam o HFT são responsáveis atualmente por 60% das negociações no Tesouro americano, contra 45% em 2012. No mercado acionário, o peso das transações em alta frequência também é grande. Para se ter uma ideia, em maio deste ano elas representaram 49% do volume diário de ações negociadas no mercado americano. Em 2009, quando foram registrados os maiores níveis de transações em microssegundos da história, esse percentual chegou a 61%.

Não por acaso, em abril passado, a SEC tornou obrigatório o registro de firmas responsáveis pela concepção, desenvolvimento ou modificação de estratégias de negociação algorítmicas na Financial Industry Regulatory Authority (Finra), entidade dedicada à proteção dos investidores e à integridade do mercado. A medida visa aumentar a supervisão sobre esses participantes e, assim, prevenir problemas causados pelo mau uso de ferramentas de negociação automatizadas.

A Organização Internacional das Comissões de Valores Mobiliários (Iosco) também tem seu papel nesse movimento. Desde 2013, a entidade recomenda, em seus relatórios anuais, que os reguladores criem normas e monitorem possíveis abusos gerados pelas operações em alta frequência. Alinhada com a Iosco, a americana Commodity Futures Trading Commission (CFTC) avalia impor limites de velocidade às negociações automatizadas realizadas nos mercados futuro e de opções, sob os quais têm responsabilidade. Antes disso, entretanto, ela deve criar regras para controlar os riscos operacionais que podem surgir com o mau funcionamento de algoritmos e propor medidas para facilitar intervenção em casos de emergência.

No Brasil, as operações em alta frequência ainda não têm o mesmo impacto. Primeiro porque o mercado é concentrado na BM&FBovespa. Em segundo lugar porque essas negociações representam uma fatia pequena do volume diário de negociações — no ano passado, corresponderam a 15%. Por ter começado a lidar com os algoritmos ultravelozes apenas depois de terem se disseminado nas principais bolsas do mundo, a BM&FBovespa conseguiu aprender com o que estava acontecendo no cenário internacional e pôde estabelecer controles adequados para proteger o mercado brasileiro, explica Mario Palhares, diretor de operações da BM&FBovespa. Para evitar as chamadas fleeting orders — estratégia comumente utilizada pelos operadores de HFT em que várias ordens de compra ou venda são enviadas e canceladas logo em seguida para diminuir ou aumentar artificialmente o valor de um ativo —, por exemplo, excesso exagero, ela pede, primeiro, para a corretora reduzir essas operações; mas, num caso extremo, pode até cortar a mensagem que ela envia para a Bolsa.

Exagero?

Mas será que o HFT só provoca prejuízos? “Demonizar as negociações em alta frequência funciona bem para um livro”, pondera Bill Harts, executivo-chefe da Modern Markets Initiative, grupo que defende operações automatizadas e estratégias quantitativas. De acordo com ele, os HFTs geram liquidez no mercado, diminuem os custos de transação e aumentam a eficiência na formação de preços. Harts ressalta ainda que, embora Katsuyama pregue a importância de “um mercado mais justo”, a IEX não tem dados que provem que o atraso intencional das ordens protege os investidores dos alegados efeitos predatórios das negociações em microssegundos.

A argumentação de Harts em prol dos HFTs é corroborada por estudos acadêmicos. No artigo “High-frequency trading and price discovery”, publicado em 2014, pesquisadores americanos analisaram dados disponibilizados pela Nasdaq e concluíram que a demanda incessante de ordens de compra e venda provocada pelos HFTs ajuda a evitar distorções de preços, melhorando a eficiência dos mercados. Publicado em 2012, um relatório da Foresight, divisão do Ministério da Ciência britânico, também é favorável aos algoritmos ultravelozes: segundo ele, não há evidências de que o HFT aumenta a volatilidade do mercado. Os autores destacam que a evolução concomitante das negociações em alta frequência com a de outros fenômenos, como a fragmentação da liquidez entre numerosas plataformas de negociação e a desregulamentação dos mercados, pode ter contribuído para a percepção de que o HFT aumenta os casos de manipulação.

Controvérsias à parte, não há dúvidas de que as negociações em alta frequência vieram para ficar. A desigualdade criada por essa tecnologia é incontestável, mas, como observam dois professores da Georgetown University, autores do artigo “Fairness in financial markets: the case of high frequency trading”, os mercados financeiros e de capitais nunca foram justos — a vantagem sempre esteve ao lado de quem tem mais dinheiro para investir e, com isso, obter vantagens competitivas. A autorização do regulador americano para que a IEX se torne um pregão mostra que há disposição para se mudar essa realidade. Resta saber qual será a capacidade da IEX para catalisar uma transformação num mercado dominado por grandes bolsas que ainda operam à moda antiga.


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