O verde chega à bolsa
Com os leilões de créditos de carbono lançados pela BM&F, Brasil reforça seu potencial de líder em projetos de Mecanismo de Desenvolvimento Limpo e garante vaga num mercado que promete movimentar US$ 80 bilhões em 2010

ed50_p26-31_1Apesar de os discos voadores terem sido a escolha número 1 de escritores e roteiristas de cinema para retratar o que se esperava do século XXI nas décadas de 50 e 60, cidades desoladas, abatidas pela poluição e onde só era possível sobreviver usando máscaras antigases também eram uma imagem recorrente. Hoje, olhando para trás, constata-se que a fantasia, infelizmente, não era assim tão descabida. Sua distância da realidade só não é menor graças aos vários mecanismos de proteção ao meio ambiente e às políticas de redução de emissões de gases que contribuem para o efeito estufa. Mas o que nem mesmo as ficções mais ousadas conseguiram imaginar era que um dia poderíamos extrair dinheiro do nosso próprio lixo. E foi isso o que a Prefeitura de São Paulo fez na última semana de setembro, quando arrecadou mais de R$ 34 milhões ao vender, num leilão organizado pela Bolsa de Mercadorias & Futuros (BM&F), certificados de créditos de carbono obtidos a partir do projeto de queima de gases de um de seus aterros sanitários.

ed50_p26-31_2O Projeto Bandeirantes de Gás de Aterro e Geração de Energia, situado na zona norte da capital paulista, recebe 7 mil toneladas de lixo por dia — metade do total produzido na cidade. Considerado um dos maiores do mundo, o aterro utiliza, desde 2006, um dispositivo que gera energia termoelétrica a partir da queima do gás metano, liberado durante o processo de decomposição dos resíduos. Por evitar que um gás extremamente nocivo seja lançado na atmosfera, e ainda produzir energia alternativa a partir de seu processamento, o aterro pode ser qualificado como um Mecanismo de Desenvolvimento Limpo (MDL) e, a partir daí, habilitar-se para a negociação no mercado internacional de créditos de carbono.

ed50_p26-31_3O comprador foi um dos maiores grupos de serviços financeiros da Europa, o belga-holandês Fortis, que colocou um lance de € 16,20 (R$ 41,96, no câmbio do dia) a tonelada para todo o lote ofertado, de 808.450 toneladas de dióxido de carbono (CO2). O lance mínimo era de € 12,70, e a expectativa da prefeitura era chegar ao máximo de € 14. O Fortis é um ativo participante do mercado de carbono europeu. Atua como formador de mercado na maior bolsa de créditos de carbono do mundo, a European Climate Exchange (ECX). Além deste, havia outros 13 investidores cadastrados no leilão dos créditos gerados pelo aterro paulistano, que marcou a estréia do Mercado Brasileiro de Redução de Emissões (MBRE) e, de acordo com a BM&F, foi o primeiro do mundo a ocorrer numa bolsa regulada.

A lista era composta por outros grandes participantes do mercado mundial, como o banco de investimentos Morgan Stanley — que, desde agosto deste ano, tem o seu próprio banco de carbono, criado para auxiliar clientes interessados em neutralizar as suas emissões. Participaram também os bancos Goldman Sachs, Merrill Lynch e ABN Amro, entre outras empresas especializadas e corretoras de valores. Segundo Manoel Felix Cintra Neto, presidente do conselho da BM&F, o plano é realizar outros dez eventos similares em 2008. Apesar de ocorrer na BM&F, o leilão negocia títulos à vista, e não a futuro.

NOVO CAPÍTULO — Embora seja apontado por cientistas do mundo todo como um país com tudo para ser líder mundial em projetos do setor, o Brasil segue um ritmo lento no que diz respeito às iniciativas de MDL. Quem atua na área — como as consultorias em desenvolvimento de projetos de MDL Climate Care e The Carbon Neutral Company, ambas sediadas no Reino Unido — aponta duas razões principais para isso. A primeira é a dificuldade de obter a certificação da Organização das Nações Unidas (ONU) para os créditos gerados. O processo, complexo, burocrático e custoso, envolve a contratação de auditoria de emis sões e o monitoramento da tecnologia empregada por empresas especializadas.

A segunda razão, de acordo com Bill Sneyd, diretor da The Carbon Neutral Company, é a incerteza provocada pela ausência de uma plataforma de negociação. “Sem um mapa claro da demanda e diante da falta de uma referência de preços, típica do mercado de balcão, muitos interessados desistem”, afirma, esclarecendo que essa situação também ocorre em outros países. Por isso, o leilão de créditos de carbono realizado na BM&F, em 26 de setembro, é considerado o primeiro capítulo de uma nova etapa para os empreendimentos de MDL nacionais. Além do sistema eletrônico de negociação, o MBRE conta com um banco de projetos — tanto os já aprovados quanto em fase de aprovação pela ONU — e outro de investidores interessados em adquirir os créditos gerados. Assim, a BM&F pretende unir as duas pontas do mercado, num ambiente que oferece garantias para as duas partes e viabiliza negócios no mercado ambiental de maneira organizada e transparente.

A Prefeitura de São Paulo planeja vender novos créditos no ano que vem. O Aterro Sanitário São João, que recebe a outra metade do lixo produzido diariamente na cidade, está em processo de certificação para também ingressar nesse mercado. Até meados de setembro, o Brasil tinha 106 projetos registrados no conselho executivo da ONU, além de outros 21 em fase de avaliação. E há vários outros interessados em acessar o mercado internacional via BM&F. Além do Aterro Bandeirantes, oito projetos estavam cadastrados no banco de proponentes do MBRE. A Organização das Cooperativas Brasileiras divulgou a meta de cadastrar pelo menos outros 15 no ano que vem.

TRÊS SISTEMAS DE NEGOCIAÇÃO — Para entender melhor o potencial de negócios e os parâmetros de preço, é importante diferenciar os três tipos de mercados de créditos de carbono em funcionamento no mundo hoje. O primeiro é o de balcão, onde investidores identificam projetos de geração de créditos e negociam diretamente a sua aquisição para neutralizar emissões de gases de efeito estufa. É o que faz, por exemplo, o britânico HSBC. Em 2004, o banco decidiu sair na frente de outras grandes instituições financeiras e ser o primeiro a neutralizar os efeitos de suas atividades sobre o clima e o meio ambiente. Para tanto, optou por utilizar fontes de energia limpa — gerada sem utilização de combustíveis fósseis — em seus escritórios e agências nos Estados Unidos, no Reino Unido, no Brasil e na Austrália, além de investir diretamente em projetos voltados à redução de carbono.

Em 2005, foram adquiridas pelo HSBC 170 mil toneladas de CO2, mediante investimento de US$ 750 mil em uma fazenda de vento na Nova Zelândia, num aterro sanitário na Austrália, numa planta de biogás na Alemanha e numa usina de biomassa na Índia. O banco continuou a investir nesses projetos em 2006 e 2007 para neutralizar as emissões que não conseguiu reduzir, mas as quantidades de créditos adquiridos e os volumes investidos ainda não foram divulgados. Para que os créditos de carbono obtidos sejam considerados válidos, é preciso que os projetos tenham sido previamente certificados pelo conselho executivo de MDL da ONU, que se encarrega de transferir os títulos ao comprador e garante que eles não sejam comercializados mais de uma vez por seus geradores.

Os outros dois tipos constituem mercados organizados, nos quais os negócios são realizados por meio de um sistema de negociações semelhante ao das bolsas de mercadorias e futuros. Há os mercados desenvolvidos a partir do Protocolo de Kyoto — que, em 2006, movimentaram US$ 30,4 bilhões — e os de emissões voluntárias, onde foi negociado outro US$ 1 bilhão. Nos mercados alinhados a Kyoto, são negociados papéis que representam as permissões de emissão detidas por empresas (dos setores de energia elétrica, petróleo, papel e celulose, metalúrgico e de materiais para construção) dos países signatários do acordo de redução de emissões. Sempre que uma empresa for exceder o seu limite legal, ela deve adquirir permissões de empresas que não utilizam todo o seu estoque para compensar as emissões extras.

Essas permissões de emissão de gases que contribuem para o efeito estufa são chamadas de “allowances”. O maior mercado em funcionamento para esses ativos é a European Climate Exchange (ECX), com sede em Londres — que responde por 80% do volume de permissões de carbono negociadas em bolsa. As operações são realizadas através da plataforma eletrônica de contratos futuros da Intercontinental Exchange (ICE), chamada de ICE Futures — o maior mercado europeu de contratos futuros e de opções no setor de energia. Há também outras bolsas importantes, como a Nord Poole, da Noruega, a Powernext, da França, e a Asia Carbon Exchange (ACE), que pertence ao Asia Carbon Group, sediado na Holanda.

Nos mercados voluntários, também chamados de “não-Kyoto”, não há qualquer espécie de limite legal de emissões. As allowances, portanto, não existem, e neles são negociados os créditos de carbono — termo adotado para se referir de maneira genérica aos títulos de redução de impacto ambiental. Tecnicamente, esses créditos referem-se às Reduções Certificadas de Emissão (RCEs), geradas a partir de projetos de MDL. Empresas e governos dos países que aderiram ao Protocolo de Kyoto também podem adquirir esses créditos nas bolsas dos mercados voluntários para compensar as suas emissões (veja gráficos na página 29). Entre as grandes companhias que ostentam o selo de “carbono neutro” estão a rede varejista de moda Marks & Spencer, a cadeia de mídia News Corp (de Rupert Murdoch), a locadora de veículos Avis, o banco Barclays e a firma de auditoria PricewaterhouseCoopers, entre outras. No Brasil, a Natura foi uma das primeiras a anunciar um projeto de neutralização de carbono (confira detalhes no quadro na página 28).

Com a perspectiva de acirramento dos limites de Kyoto em 2012, acreditase que este seja o melhor momento para ingressar no mercado

É nesse nicho de emissões voluntárias que o Mercado Brasileiro de Redução de Emissões (MBRE) se insere. A liderança é ocupada pela primeira bolsa dedicada à negociação de RCEs, a Chicago Climate Exchange (CCX), onde estão listadas companhias abertas brasileiras, embora algumas não tenham começado a negociar seus créditos de carbono. A lista ainda é pequena, formada pelas fabricantes de papel e celulose Aracruz, Klabin e Suzano, e pela produtora de borrachas sintéticas Petroflex. Ao aderirem à CCX, essas empresas assumem um compromisso de redução de emissões de gases de efeito estufa e iniciam uma auditoria dos créditos de carbono que são capazes de gerar.

DISTANTE DOS RIS — Rosane Monteiro, gerente de meio ambiente corporativo da Aracruz, é a responsável por acompanhar esse processo na companhia. O trabalho foi iniciado em 2005 e espera-se concluí-lo até o fim de 2007. Ela explica que, antes de receber o sinal verde da Bolsa para iniciar a negociação dos créditos, a equipe responsável precisa produzir uma série de inventários e relatórios e submetê-los à revisão da consultoria contratada para auxiliar no processo de mensuração. Só então os créditos são enviados para a avaliação da auditoria — o que explica o longo intervalo entre a data de adesão e a realização da primeira venda.

A companhia foi a segunda brasileira a chegar à CCX, logo depois da pioneira Klabin, ambas em 2004. Luiz Antonio Cornacchioni, diretor de relações institucionais da Suzano, afirma que vendeu, desde o início do projeto até meados de setembro, 11 mil toneladas de RCEs, com as quais faturou cerca de US$ 43 mil. “Os ganhos ainda são marginais, mas fizemos questão de entrar nesse mercado cedo para adquirir experiência e também porque os nossos clientes, especialmente os internacionais, valorizam a iniciativa”, explica o diretor. Na Klabin, a negociação de créditos de carbono também é uma operação marginal, restrita por regras do Protocolo de Kyoto, conta José Oscival dos Santos, assistente de meio ambiente e energia. Como os limites de emissões colocados pelo tratado serão revisados em 2012 — e a expectativa dos especialistas é de que se tornem muito mais duros —, há um consenso entre as empresas com grande potencial de geração de créditos de que este é o melhor momento para ingressar no mercado. “Hoje estamos negociando os créditos obtidos com projetos de reflorestamento, mas estamos nos preparando para incluir as florestas plantadas, que têm um potencial de geração menor, mas não irrelevante”, conta Cornacchioni, da Suzano.

Justamente por ainda não representar ganhos expressivos, a participação das brasileiras na bolsa do clima ainda é pouco repercutida pelas áreas de Relações com Investidores (RI). Isso se deve, em parte, ao fato de a sustentabilidade e os efeitos das mudanças climáticas sobre a competitividade das companhias ainda não estarem entre as principais preocupações dos acionistas (e até mesmo dos consumidores) brasileiros. Nas ações voltadas ao mercado externo, porém, a estratégia é outra. Prova disso é o destaque dado à participação na CCX nas embalagens dos papéis da Suzano comercializados no exterior. Todas elas trazem os logos da bolsa e também os das certificações ambientais.

Para investidores estrangeiros, o aquecimento global e as demandas por mudanças na forma de atuação das companhias já figuram entre os assuntos mais importantes da agenda. Em meados de setembro, um grupo de 22 investidores institucionais que atuam no mercado norte-americano solicitou à Securities and Exchange Commission (SEC) para que passasse a exigir das companhias abertas a publicação de um relatório de riscos financeiros relacionados a questões ambientais. Outra iniciativa importante surgiu há cinco anos, sob a autoria de investidores com mais de US$ 41 trilhões em suas carteiras. Denominado Carbon Disclosure Project, o trabalho prevê o envio de um questionário sobre os riscos e as oportunidades decorrentes das mudanças climáticas às maiores companhias abertas do mundo. Os resultados são compilados num relatório, que é atualizado anualmente. Várias empresas listadas na bolsa brasileira participam do projeto, embora uma série delas ainda se recuse a fazê-lo. A lista de todas as empresas e as informações fornecidas por quem já aderiu pode ser acessada no website do projeto (www.cdproject.net).

Natura muda a produção para reduzir CO2

Sua meta é reduzir em 33%, nos próximos cinco anos, as emissões de todos os gases de efeito estufa em sua cadeia produtiva, desde a extração de matéria-prima até o descarte das embalagens pelo consumidor. Para isso, precisou mexer nas formulações de seus produtos, reduzindo a presença dos ingredientes derivados de petróleo e substituindo-os por elementos de origem vegetal. O óleo mineral e a glicerina foram trocados por oleína de palma, o álcool convencional utilizado na formulação dos perfumes deu lugar ao orgânico e as embalagens passaram a ser produzidas com 30% de plástico reciclado. A iniciativa se estende aos fornecedores, que têm pela frente o desafio de rever seus processos e equilibrar os custos econômicos e ambientais. A partir de 2008, as reduções chegarão às consultoras de vendas.A contribuição de cada uma dessas medidas para a meta global de redução foi toda mapeada num projeto desenvolvido em parceria com a consultoria especializada Fábrica Ethica. As alterações nas embalagens são as de maior impacto individual — chegam a 10% do potencial de reduções. A substituição de matéria-prima será responsável por 7%, os projetos de reciclagem das embalagens descartadas pelo consumidor, por outros 7%, as mudanças promovidas pelos fornecedores, por mais 4%, a melhoria da matriz energética das fábricas, por 2% e, finalmente, o uso de biocombustíveis e a otimização nos processos de distribuição, por outros 3%.

O vice-presidente de inovação, Eduardo Luppi, explica que tudo o que não puder ser reduzido será compensado. “Daremos prioridade para projetos florestais que tenham benefícios socioambientais adicionais — como geração de renda para populações locais, recuperação e manutenção da biodiversidade ameaçada — e projetos energéticos, particularmente com uso de biomassa renovável.”

 

Há quatro décadas, os primeiros rabiscos

Mais de 40 anos antes de o ex-vice-presidente dos Estados Unidos Al Gore mobilizar o mundo com suas palestras sobre o aquecimento global, um de seus compatriotas, o economista Thomas Crocker, da Universidade de Wyoming, e o canadense John Dales, da Universidade de Toronto, rabiscaram o conceito de um mercado para negociação de emissões. Inspirados na proposta de Alfred Marshall — economista britânico do século XIX que defendia a criação de direitos de propriedade sobre os recursos naturais como forma de protegê-los —, eles desenvolveram um modelo de atribuição de limites máximos de poluição que cada cidadão e instituição poderiam gerar, permitindo que negociassem entre si o uso desses limites, de maneira a otimizar os custos de proteção ambiental. Assim, quem degradasse menos o meio ambiente poderia vender seu excedente para aqueles que precisassem extrapolar o limite estabelecido. A idéia foi adotada pela agência de proteção ambiental dos EUA na década de 80 para reduzir os níveis atmosféricos de elementos que provocam a chuva ácida, como os dióxidos sulfúrico e de nitrogênio.

Quando, em 2005, 169 países endossaram o Protocolo de Kyoto — tratado da Organização das Nações Unidas (ONU) sobre mudanças climáticas que previa a redução nas emissões de gases geradores de efeito estufa —, o primeiro mercado oficial para negociação de créditos de carbono foi estabelecido. O European Union Emission Trading Scheme (EU ETS) entrou em operação em janeiro daquele ano e serviu de modelo para os vários outros criados nos meses e anos subseqüentes — principalmente nos países desenvolvidos, que concordaram em reduzir, até 2012, as suas emissões de gás carbônico (CO2) para níveis 5% abaixo do volume de emissões registrado em 1990. O Brasil, que não faz parte desse grupo, embarcou no mercado de carbono mesmo assim, como um celeiro de iniciativas de Mecanismo de Desenvolvimento Limpo (MDL). Esses projetos seqüestram o CO2 da atmosfera e, assim, geram créditos que podem ser adquiridos pelas empresas que não conseguem bater suas metas de redução apenas com a revisão do processo produtivo.


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