Muito além dos balanços
Contabilidade internacional abre portas para companhias que buscam financiamento e clientes fora do País

Entre 2007 e 2009, a paulista Mangels Industrial, fabricante de lâminas de aço, botijões de gás e rodas de automóveis, vai investir R$ 192 milhões em seu projeto de expansão, que inclui a construção de uma planta em Três Corações (Minas Gerais) e a modernização de fábricas de São Bernardo do Campo e Guarulhos, em São Paulo. Metade desses recursos será financiada pelos bancos de desenvolvimento DEG, da Alemanha, e FMO, da Holanda. Para conseguir levantar os empréstimos, a Mangels teve de recorrer ao IFRS, sigla em inglês para as normas contábeis internacionais. Iniciada em 2005, a conversão dos balanços para o International Financial Reporting Standards foi uma condição imposta pelas próprias instituições de fomento, segundo o diretor de finanças e Relações com Investidores (RI), Adelmo Felizati.

A partir de 2010, o IFRS será uma realidade para todas as S.As abertas brasileiras, pelo menos no que se refere às demonstrações contábeis consolidadas. É o que prega a Instrução 457 da Comissão de Valores Mobiliários (CVM), publicada em julho. Hoje, somente as companhias listadas no Nível 2 e no Novo Mercado da Bolsa de Valores de São Paulo (Bovespa) devem conciliar o patrimônio líquido e o resultado do exercício com o US Gaap, conjunto de pronunciamentos contábeis norte-americano, ou com o IFRS. Mas, como mostra a história da Mangels, negociada no Nível 1, aderir às normas internacionais não significa apenas cumprir a regulação ou atender às expectativas dos investidores. A convergência pode abrir portas e trazer ganhos para as companhias em outras esferas.

“Temos vários clientes que já tinham de apresentar seus números em IFRS para atender às exigências de financiamento de bancos estrangeiros”, afirma Fábio Cajazeira, sócio da PricewaterhouseCoopers e especialista nas normas contábeis internacionais. Cajazeira explica que cláusulas contidas nos contratos assinados com os financiadores, conhecidas como “covenants”, obrigam os tomadores de empréstimo a manter índices financeiros mínimos, como o de liquidez e de geração de caixa. Como esses índices são obtidos a partir dos balanços, nada mais natural que eles sejam expressos numa língua que os bancos compreendem. Na União Européia, o IFRS é lei desde 2005.

Durante a crise da Ásia em 1997, empresas de países emergentes iam pedir socorro nos grandes bancos empunhando balanços contábeis. Esses relatórios, porém, não seguiam regras universais de contabilidade — eram simplesmente traduzidos para o inglês. Obviamente, a tática foi insuficiente para despertar a confiança dos credores, lembra Edimar Facco, sócio da área de auditoria da Deloitte. A adoção das normas internacionais visa justamente mitigar riscos, à medida que reduz incertezas sobre a real situação econômico-financeira das empresas. “Quando você tem uma demonstração financeira em IFRS, itens como a participação de empregados nos programas de opções de ações ficam mais claros”, diz ele.

Uma conseqüência natural do aumento da segurança quanto à precisão dos balanços é a diminuição do prêmio cobrado pelos bancos na hora de conceder empréstimos. “Em finanças, tão inevitável quanto a morte é a contaminação do preço pelo risco”, compara Nelson Carvalho, presidente do Conselho Consultivo de Normas do International Accounting Standards Board (Iasb) e professor da Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade da Universidade de São Paulo (FEA-USP). Ele ressalta que os principais financiadores europeus, como o francês BNP Paribas, o alemão Deutsche Bank, o inglês HSBC e o espanhol Santander, devem reduzir as taxas de juro impostas a empresas adeptas do IFRS.

“O HSBC sempre privilegia os clientes que adotam práticas de transparência e padronização em suas normas contábeis”, confirma Emilson Alonso, CEO do banco britânico no Brasil, em e-mail enviado à Capital Aberto. “Empresas que oferecem maior transparência e permitem uma avaliação adequada do risco são tomadoras a taxas de juro diferenciadas.”

A conclusão de que o IFRS abriria as portas dos bancos do Velho Continente contribuiu para que a Renar Maçãs, estreante no Novo Mercado em 2005, o escolhesse como padrão de suas demonstrações contábeis de 2008 em diante. A Europa é o destino de 80% da fruta exportada pela Renar. Nos últimos três anos, a companhia faturou, em média, cerca de € 5,4 milhões com os europeus, que correspondem a 32% de sua receita.

A adoção do IFRS visa mitigar riscos, à medida que reduz incertezas sobre a situação econômicofinanceira das empresas

SELO DE CONFIANÇA — E não é só junto a bancos que o IFRS pode criar valor. Para o professor de contabilidade da FEA-USP e vice-coordenador técnico do CPC, Eliseu Martins, o relacionamento com clientes e fornecedores também pode ser facilitado quando a linguagem contábil é uma só. Clientes se sentem mais à vontade para fechar contratos depois de analisarem os resultados financeiros dos fornecedores e concluírem se eles terão condições de entregar o prometido. Exportadores, por sua vez, concedem crédito a compradores se têm certeza de que receberão o pagamento devido.

A Grendene é uma das que pretendem se beneficiar dessas condições. “É um ponto a mais que consigo colocar na decisão de um cliente”, diz Doris Wilhelm, diretora de RI. Em março deste ano, a fabricante de calçados apresentou o resultado de 2006 e o patrimônio líquido apurado no período reconciliados com o IFRS. Como lida com clientes estrangeiros, espalhados por cinco continentes, Doris acredita que, embora não tragam impactos mensuráveis isoladamente, as normas contábeis internacionais podem ajudar a Grendene em sua penetração no mercado externo. “Há uma diminuição da percepção dos riscos.”

Com a harmonização das normas contábeis, as empresas brasileiras terão, de quebra, um incremento no potencial de captação com emissões de títulos no exterior. “A confiabilidade desses papéis aumenta”, diz Pedro Farah, sócio da área de auditoria da Ernst & Young. A Gerdau, que está implantando agora o seu projeto de conversão para o IFRS, vislumbra exatamente essa oportunidade. A expectativa é ganhar liquidez na negociação de bônus e letras de câmbio nos mercados europeu e asiático, conta Geraldo Toffanelo, diretor contábil.

O Itaú vem estudando a migração para o IFRS desde o anúncio da nova instrução emitida pela CVM. Assim como a Grendene, o banco espera que a nova contabilidade lhe propicie uma abertura ainda maior entre investidores estrangeiros. “Se o banco resolvesse fazer uma oferta de ações na Bolsa de Londres, por exemplo, as demonstrações já estariam adequadas ao perfil dos compradores”, comenta Marco Antonio Antunes, diretor-gerente de contabilidade do Itaú. Como até os Estados Unidos aceitarão demonstrações contábeis em IFRS, sem a atual exigência de reconciliação com o US Gaap, companhias globais lá listadas, como a Gerdau e o Itaú, não terão mais de se preocupar em produzir balanços distintos — um em IFRS e outro em US Gaap, além da contabilidade brasileira.

A aplicação do IFRS tem impacto direto não só nos negócios, como também no dia-a-dia das companhias. Baseadas mais em princípios do que em regras prescritivas, as normas contábeis internacionais são formatadas com o predomínio da “essência sobre a forma”, como explica o professor Eliseu Martins. E qual o significado disso para o contador? “Ele tem de assumir mais responsabilidades, sair da sua mesa e correr atrás de informações sobre aspectos com os quais não está acostumado”, diz o especialista. No Brasil, diz Martins, a cultura da preponderância da essência sobre a forma ainda é muito recente — consta da Deliberação 488 da CVM, de 2005, que incorporou procedimentos emitidos pelo Instituto dos Auditores Independentes do Brasil (Ibracon). “Com o IFRS, a dose de julgamento por parte do contador e do auditor é muito maior. É preciso analisar a substância das transações”, completa Cajazeira, da PricewaterhouseCoopers.

São esperadas também revisões nas políticas de remuneração variável. Programas atrelados ao lucro contábil terão de ser adequados para a realidade dos novos números. Outra mudança esperada refere-se aos indicadores de desempenho das companhias. Múltiplos baseados em dados contábeis extraídos de balanços elaborados conforme as normas brasileiras poderão gerar interpretações bastante diferentes sobre o desempenho da companhia quando calculados com números do IFRS. Entre essas e outras, é difícil prever a dimensão dos impactos proporcionados pelo conjunto de normas internacionais. Afinal, ainda são poucas as companhias brasileiras em estágio avançado de conversão. Mas uma coisa é certa: a revolução IFRS está só começando.

Primeira regra do CPC põe ativos à prova

Em março do ano passado, a britânica Vodafone surpreendeu investidores ao retirar £ 28 bilhões do total de seus ativos demonstrados no balanço. O valor foi extraído do ágio sobre a aquisição da provedora alemã de telecomunicações Mannesmann, em 2000. De acordo com reportagem publicada no britânico AccountancyAge, especializado no tema, a causa do desfalque foi a conversão das demonstrações financeiras para as normas contábeis internacionais (IFRS), que se tornou obrigatória na União Européia em 2005. “Companhias como a Vodafone agora têm de conduzir ‘impairment’ regular para garantir que seu valor seja contabilizado apropriadamente”, escreveu o repórter Kevin Reed. No Brasil, o conceito de impairment está sendo apresentado agora. Faz parte da primeira regra de contabilidade emitida pelo Comitê de Pronunciamentos Contábeis (CPC), a ser adotada pelas companhias de capital aberto a partir de deliberação da Comissão de Valores Mobiliários (CVM).

Como se sabe, os pronunciamentos técnicos do CPC são definidos à luz do IFRS. O próprio CPC foi criado com o objetivo de alinhar princípios contábeis brasileiros com as normas internacionais. A publicação da sua primeira norma, que permaneceu em consulta pública até o fim de julho, é aguardada com ansiedade pelo mercado. Basicamente, ela exige que os ativos sejam reavaliados, a cada exercício social, de acordo com os recursos que eles podem produzir para a companhia. Quando a geração futura de caixa indicar um valor menor que o dos ativos, deverá ser feita uma baixa dessa diferença, que afetará o resultado da companhia. Esse é o procedimento de impairment, chamado pela CVM de “redução do valor recuperável de ativos”.

A reavaliação de ativos não é exatamente uma raridade nas práticas contábeis brasileiras. A diferença é que agora haverá uma forma padronizada de se efetuar os cálculos. Para especialistas, a norma do CPC trará mais transparência às demonstrações contábeis. “Os ativos terão seu valor econômico mais bem representado”, diz Reginaldo Ferreira Alexandre, vice-presidente da Associação dos Analistas e Profissionais de Investimento do Mercado de Capitais em São Paulo (Apimec-SP).

Segundo Alexandre, a regra não deve mudar a avaliação do balanço das companhias, porque a readequação dos ativos não causa impactos relevantes na demonstração do fluxo de caixa — utilizada como base para as projeções. Um efeito importante, aponta o analista, pode ocorrer na definição do montante distribuído como dividendos, caso o impairment reduza o valor dos ativos e o lucro da empresa. (D.G.)


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