Fortuna soberana
Em busca de diversificação, fundos de reservas internacionais expandem as fronteiras e caem no radar dos reguladores, alarmados com a sua falta de transparência

ed49_p32-36 ed49_p32-36_2Os grandes investidores institucionais constituem peça relevante no mundo das finanças, principalmente quando o foco são os mercados de capitais. Cada vez maiores, mais articulados e influentes, eles estão no epicentro dos movimentos de governança corporativa e de criação de valor ascendentes na última década. Mas existe um outro tipo de investidor forte e poderoso que, a cada ano, vem ampliando o capital aplicado em ações de companhias de fora de seus países. Em junho deste ano, um deles chamou muita atenção com a notícia de que havia investido US$ 3 bilhões em ações do grupo de private equity Blackstone, e também no mês seguinte, quando injetou outros quase US$ 4 bilhões no banco britânico Barclays — onde garantiu um assento no conselho. O investidor em questão é o governo chinês, dotado de suas nada modestas reservas de US$ 300 bilhões. Assim como diversos outros países, este gigante emergente começa a despontar no mercado de capitais internacional com os chamados fundos de capital soberano (Sovereign Wealth Funds – SWFs), veículos de investimento utilizados para aplicar o caixa dos Tesouros nacionais.

O considerável aumento das reservas internacionais e, principalmente, dos superávits obtidos com a venda de recursos não-renováveis, como o petróleo, fez com que uma série de países criasse estruturas adicionais à do Banco Central para gerenciar parte dessa fortuna. Embora o registro histórico não seja preciso, acredita-se que os primeiros SWFs tenham sido o do Kuwait, criado em 1953, e o da Gilbert Islands, em 1956. O pequeno arquipélago situado na Micronésia era então governado pelo Reino Unido, que, preocupado com as limitações de geração de recursos da ilha, estabeleceu um imposto de exportação cujos recursos foram direcionados ao Revenue Equalization Reserve Fund. Os US$ 520 milhões gerados na época foram aplicados no mercado de capitais e se multiplicaram a ponto de superar nove vezes o produto interno bruto (PIB) da ilha.

Novos representantes de peso surgiriam quase 20 anos depois, como o Temasek, de Cingapura, que gerencia os investimentos diretos realizados pelo governo desde 1974, e a Abu Dhabi Investment Authority, de 1976. Cingapura conta também com um outro fundo de capital soberano, estabelecido em 1981 e que aplica as reservas internacionais nos mercados de ações e em títulos de dívida do mundo todo, o Government Investment Corporation (GIC). O GIC é, aliás, uma das principais referências mundiais desses instrumentos. Costuma ser citado como exemplo por vários países que decidiram adotar o modelo anos mais tarde, como a Austrália (2004) e a Coréia (2006).

Muitos bancos centrais têm estudado a possibilidade de criar veículos de investimento específicos para as reservas em moeda estrangeira, movidos pelo sentimento de que faz parte de seu dever fiduciário obter taxas de retorno maiores para os recursos sob sua supervisão, alocando uma parcela deles, que varia de acordo com o tamanho da dívida externa de cada país, em ativos de maior risco. No geral, esses veículos investem da maneira mais conservadora possível o montante equivalente à dívida, alocando-o principalmente em títulos do Tesouro norte-americano e de países da região do euro. Para os recursos excedentes, preferem compor uma carteira diversificada, adotando sempre uma visão de longo prazo. Esse modelo pode ser adotado pelo Brasil em breve. Segundo fontes ligadas ao BC, a área de risco do banco, responsável pelo desenho do portfólio de aplicações, está revisando as atuais diretrizes. Com reservas de US$ 160 bilhões e uma dívida externa líquida de US$ 60 bilhões, o País é um perfeito candidato a embarcar no processo de diversificação adotado pelos grandes fundos de capital soberano que gerenciam as reservas de moeda estrangeira.

É o que faz, entre outros, o Norges Bank, que administra dois fundos do governo da Noruega — o de reservas internacionais e o Government Pension Fund, que aplica o superávit obtido com a exploração de petróleo no Mar do Norte para financiar as aposentadorias dos cidadãos noruegueses. Com mais de 3,5 mil ações de companhias de cinco continentes em carteira, o Government Pension Fund é o maior investidor do mercado de ações europeu e ainda o único dos fundos soberanos a adotar práticas de transparência e governança semelhantes às dos grandes investidores institucionais privados. Uma vez por ano publica um relatório listando os investimentos por país (veja quadro abaixo), detalha a sua política de alocação de recursos no website e adota postura ativista, votando em todas as assembléias e defendendo explicitamente a não-adoção de defesas anti-takeover (poison pills), e os sistemas de remuneração de executivos atrelados à performance.

O PROTECIONISMO REAGE — As tomadas hostis de controle, aliás, são uma das grandes preocupações que começam a surgir na esteira do crescimento dos SWFs. Em meados deste ano, três líderes de países desenvolvidos afirmaram publicamente que iriam estudar medidas de defesa específicas para evitar que os fundos soberanos pudessem adquirir o controle de companhias nacionais. Angela Merkel, chanceler da Alemanha, Nicholas Sarkozy, presidente da França, e George W. Bush, presidente dos Estados Unidos, chamaram atenção para o assunto na semana em que foi anunciada a compra de participações no banco britânico Barclays pelo recémcriado State Foreign Exchange Investment Corporation, da China, e pelo Temasek, de Cingapura.

Merkel afirmou que Berlim iria estudar medidas legais para dificultar a aquisição do controle de companhias alemãs pelos SWFs, em linha com o que é feito nos Estados Unidos por meio do Committee on Foreign Investments. O órgão tem a prerrogativa de analisar as propostas de aquisição num período máximo de 30 dias, submeter as candidatas a uma fase de investigação adicional de 45 dias e, eventualmente, vetar as operações que ameacem a competitividade nacional. Sarkozy, mais radical, conclamou os países a pensarem em dispositivos para vetar qualquer possibilidade de transferência do controle para esse tipo de fundo. Bush utilizou a crescente participação dos SWFs no capital de grandes bancos e companhias internacionais para justificar a importância do processo de revisão que autorizou em julho e que deve ampliar o escopo da provisão ExonFlorio do Defense Production Act — que regula fusões, aquisições e joint ventures internacionais envolvendo companhias norte-americanas.

Conhecido por sua postura liberal, o Reino Unido disse que resistiria a qualquer possibilidade de instituir sistemas de veto a operações, ainda que fossem sistemas leves. O novo chanceler, Alistair Darling, afirmou em discurso público que seria um erro permitir que qualquer governo intervenha no curso das operações de mercado, mas ressaltou a importância de assegurar que os fundos soberanos também passem a operar de acordo com as regras dos ambientes em que agora participam, “adotando os mais altos padrões de governança corporativa e transparência”. A ressalva de Darling vem em linha com as posições do Fundo Monetário Internacional (FMI), do Tesouro norte-americano e da Comissão Européia (CE). Para essas instituições, o fato de os SWFs não divulgarem suas políticas de investimento, aliado ao significativo volume de recursos de que eles dispõem, traz novos riscos ao sistema financeiro mundial, especialmente pelo impacto que podem causar sobre a volatilidade dos ativos.

Outro efeito colateral da falta de transparência desses fundos é a prevenção a esquemas de corrupção entre os gestores. A questão colocou na agenda da próxima reunião do FMI, a ser realizada em outubro, um debate a respeito de sistemas de controle e divulgação para os fundos soberanos. Simon Johnson, economista-chefe do Fundo, lembrou que uma das causas para o rápido crescimento nos recursos dos SWFs é a política cambial adotada pelos países e seus respectivos superávits. “Como as atuais políticas não devem mudar no curto prazo, cresce a chance de fluxos financeiros cada vez maiores serem negociados por meio de caixas-pretas, colocando a estabilidade global em risco”, disse Johnson, reforçando a necessidade de concentrar esforços em iniciativas de estímulo à transparência em vez de recorrer ao protecionismo.

Líderes de países desenvolvidos estudam medidas de defesa para evitar que os fundos soberanos adquiram o controle de companhias locais

GOLDEN SHARES: UM PALIATIVO? — Aumentar a interferência do Estado na economia não parece ser uma resposta aceitável para lidar com os desafios impostos por mais essa novidade trazida pela globalização dos mercados. Especialmente para a Comissão Européia, cuja atuação é marcada pela luta contra os vieses protecionistas que volta e meia pipocam por seus países membros. Advertindo a França e a Alemanha que as opções divulgadas por elas ferem as regras da União Européia, Peter Mandelson, um dos diretores da CE, afirmou ao jornal Financial Times que “seria desastroso ver a apreensão com os fundos soberanos usada para criar instrumentos protecionistas que isolassem competitivamente alguns ícones europeus”.

O regulador do Velho Continente, no entanto, aventa a possibilidade de permitir que os países sob sua jurisdição possam adotar, como mecanismo para reduzir a sua vulnerabilidade, as chamadas golden shares — ações de propriedade do governo com poder de veto em companhias de indústrias consideradas estratégicas, como energia e defesa. A medida não seria autorizada utilizando uma diretiva que coloca nas mãos de cada governo o poder de moldar leis individuais seguindo o escopo geral determinado pela comissão. Desta forma, as golden shares seriam instituídas por uma regulamentação só, desenvolvida e supervisionada diretamente por Bruxelas. “Essas ações especiais devem refletir os interesses europeus como um todo, e não os de uma única nação”, disse Mandelson.

Ele também afirmou que as golden shares só devem valer para os casos de tentativas de aquisição por países em que a indústria em questão é alvo de barreiras. “O objetivo é garantir abertura de mercado recíproca, e não protecionismo.”

Outro elemento que explica a mobilização entre reguladores e governantes é o fato de alguns desses fundos já terem participações relevantes em gigantes européias. O Kuwait Investment Authority detém 3,1% do capital da empresa de aerodefesa Eads e 9,9% da British Petroleum; 14% do Standard Chartered Bank pertence à Temasek, de Cingapura; o fundo do governo do Qatar, que já tem 25% da J. Sainsbury, a mais antiga rede de supermercados do Reino Unido, fez uma oferta para adquirir o seu controle. Além disso, países sem grande tradição democrática planejam iniciar seus investimentos. Um levantamento realizado pelo banco holandês ING aponta Angola, Azerbaijão, Bolívia, Botsuana, Brunei, Cazaquistão, Nigéria e Venezuela como parte dessa lista.

Um estudo publicado pelo banco Morgan Stanley, com estimativas sobre o volume de recursos de que dispõem os SWFs, ajuda a entender o temor que eles têm provocado. Atualmente em US$ 2,5 trilhões, esse valor deve dobrar de tamanho até 2010. Stephen Jen, economista do banco que assina o relatório, espera que as reservas internacionais cresçam num ritmo muito menor que os recursos dos fundos daqui para a frente.

A consolidação da tendência intensifica os receios daqueles que, como Jen, do Morgan Stanley, acreditam que a migração de boa parte das reservas internacionais hoje alocadas em títulos soberanos (como os do Tesouro norte-americano) para ações possa prejudicar o mercado de títulos de dívida de longo prazo e afetar as taxas de retorno. Paulo Valle, diretor da área de dívida pública do Tesouro Nacional, não acredita nessa hipótese. Sua experiência no relacionamento com alguns desses fundos — como o GIC, de Cingapura, que investe em papéis do governo brasileiro — mostra que, “embora haja um processo de diversificação em curso, ele é guiado pela mesma postura conservadora que orientou a atuação desses fundos até aqui”. Ele enxerga com bons olhos a participação dos SWFs nos mercados internacionais. “Como são investidores de longo prazo, muito focados nos fundamentos de cada país, conferem estabilidade.”


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