Soltos demais?
Comparamos as regulações de EUA e Brasil sobre a atividade dos bancos coordenadores nas ofertas públicas e concluímos: aqui temos bem menos regras para prevenir os conflitos de interesse — ou alertar os investidores sobre eles

Pouco se comentou sobre o fato de Unibanco, ItaúBBA e Citibank terem atuado como coordenadores na oferta pública de ações da Redecard — empresa em que, juntos, detinham 96% de participação. Mas o que haveria para dizer sobre essa operação? Trata-se de uma situação permitida pela Comissão de Valores Mobiliários (CVM) e prevista pelo código de auto-regulação da Associação Nacional dos Bancos de Investimento (Anbid). O mesmo ItaúBBA passou por uma experiência semelhante, em março de 2006, quando liderou o processo de IPO da Duratex, em que a Itaúsa possuía 86% das ações ON. Há quem veja, porém, um conflito de interesses em casos como esse, na medida em que os bancos coordenadores da oferta — que têm responsabilidades perante o ofertante e o mercado — são sócios da companhia que faz a oferta ou, até mesmo, os próprios ofertantes.

Nos Estados Unidos, a interpretação para esse tipo de risco virou pauta para a criação de uma regulação da National Association of Securities Dealers (Nasd) que, entre outros temas relacionados a conflitos, define como deve ser o comportamento do banco coordenador, numa emissão pública naquele país, quando a instituição tiver relações societárias com a companhia ofertante. Segundo a Rule 2720, se isso ocorrer, a ofertante em questão deve contratar o que eles chamam de underwriter independente qualificado, isto é, um banco externo, cuja responsabilidade é supervisionar todas as etapas da oferta pública — da due diligence à elaboração do prospecto. Em 1999, quando o Goldman Sachs liderou o IPO de seu próprio banco, a operação passou pelo aval de quatro instituições externas, entre elas os concorrentes Merrill Lynch e Morgan Stanley.

Em 1999, quando o Goldman Sachs liderou o IPO de seu próprio banco, a operação passou pelo aval de quatro instituições independentes

A Nasd é rigorosa em suas regras. Não é permitido, por exemplo, que um underwriter coordene sozinho uma oferta, de ações ou dívida, da própria instituição, de uma afiliada ou de uma companhia com a qual o banco ou pessoas associadas a ele tenham conflitos de interesse. Para configurar o conflito, a Nasd enumera diversas situações, entre elas a que a instituição financeira ou a gestora de recursos (asset) filiada tenha mais que 10% das ações votantes da companhia ofertante. Gregory Gnall, do escritório de advocacia White & Case, em Nova York, explica que o objetivo dessa regra é garantir, principalmente, que haja imparcialidade no cálculo do preço do ativo e, assim, evitar que o underwriter tenha a motivação extra de aplicar um sobrepreço à oferta.

A Nasd é rigorosa em suas regras. Não é permitido que um underwriter coordene sozinho uma oferta dele próprio, de um afiliado ou empresa com a qual tenha conflitos

A Capital Aberto tentou ouvir a opinião de Unibanco, ItaúBBA e Citibank sobre a maneira como a legislação norte-americana lida com a distribuição pública envolvendo partes relacionadas, mas os três preferiram não se manifestar a respeito. Dentro da regulação brasileira, todos cumpriram corretamente a recomendação da Instrução 400, da CVM, que exige a menção ao potencial conflito com destaque no prospecto. A Redecard trata do tema na seção fatores de risco: “Não se pode garantir que os coordenadores conduziriam a oferta de forma imparcial devido ao fato de fazerem parte dos mesmos conglomerados dos acionistas vendedores”, adverte o documento da Redecard. No caso da Duratex, não houve o mesmo alerta. Mas cabe ressaltar que, além do Itaú, outros dois bancos coordenavam a oferta: o Banco do Brasil (apesar de a Previ, fundo de pensão dos funcionários, ter 14% das ações PN da companhia) e o Credit Suisse (sem nenhuma participação relevante na empresa).

MAIS DIFERENÇAS — A distância entre as exigências e os padrões de disclosure brasileiros e norte-americanos aumenta quanto mais de perto se observa as regras da Nasd (série 2700) e da própria Securities and Exchange Commission (SEC). A pedido da reportagem, a professora da Escola de Direito da Fundação Getulio Vargas em São Paulo, Érica Gorga, que também ministra o curso Governança Corporativa Comparada na Cornell Law School, nos EUA, selecionou outros itens da lei norte-americana para ilustrar essas diferenças. De início, ela lembra que a Nasd — apesar de ser uma entidade privada — tem poder de vetar a oferta caso o comportamento dos agentes de mercado não esteja de acordo com as suas recomendações. “Em muitas situações, não basta só informar os conflitos. É preciso que eles simplesmente não existam”, afirma a especialista.

Para monitorar as operações, a associação requer dezenas de informações. Exige a menção de qualquer tipo de acordo entre um executivo da empresa ofertante e o banco, a informação sobre a existência no banco de algum proprietário de 5% ou mais das ações do emissor ou se ocorreram negociações entre o banco e a companhia, nos seis meses anteriores ao pedido de registro, que tenham resultado na transferência de títulos do ofertante. É bom lembrar que, nos Estados Unidos, conforme normas da SEC, as gestoras de recursos ligadas ao banco coordenador de determinada oferta (ou qualquer outra empresa afiliada do underwriter) não podem, salvo algumas exceções, comprar ações distribuídas até o encerramento da operação, nem mesmo títulos conversíveis nos papéis ofertados.

As exceções são as situações em que: as ações distribuídas sejam consideradas “superlíquidas” (cujo cálculo de liquidez é estabelecido na Regulation M da SEC); as assets compradoras do papel tenham carteiras que sigam um índice de referência no qual esteja incluído o ativo do ofertante; os fundos participantes da oferta abriguem 20 ou mais ativos diferentes, desde que nenhum deles ultrapasse 5% do PL da carteira; a empresa emissora esteja listada por meio da regra 144A; as ordens de compra ou venda sejam dadas por um cliente da corretora do banco. Condições semelhantes são impostas pela Nasd. Nos IPOs, as assets pertencentes ao mesmo grupo do banco coordenador só podem comprar a ação ofertada para fundos com, pelo menos, 12 meses de existência e que tenham uma política de investimento compatível com o tipo de ativo distribuído. Não é uma regra tola. “Essa exigência evita que o banco constitua um fundo de última hora só para dar vazão aos títulos que ele se encarregou de distribuir para o mercado”, esclarece Érica.

PERÍODO DE SILÊNCIO — Mas o que dizem os bancos brasileiros sobre a regulamentação brasileira e suas diferenças em relação ao modelo internacional? Considerando que a nossa legislação e autoregulação não são tão detalhistas na hora de fixar as regras para esse setor, estariam os underwriters adotando normas internas tão rígidas quanto as praticadas lá fora? Com exceção do Bradesco e do Banco Espírito Santo (BES), nenhuma das dez instituições financeiras contatadas pela Capital Aberto respondeu aos pedidos de entrevista. Representando o setor, quem atendeu a reportagem foi a Associação Nacional das Instituições do Mercado Financeiro (Andima). A Anbid também preferiu não se manifestar.

No BES, há um comitê de underwriting constituído para avaliar não só a qualidade da ofertante como a eventual existência de conflitos de interesse. Um exemplo de atuação desse comitê está na investigação feita, durante o processo de due diligence, do teor e do valor de quaisquer contratos assinados entre a companhia e o banco antes da oferta. Na avaliação de Alberto Kiraly, diretor executivo do BES Investimento, a prática interna adquirida pelos profissionais durante as operações de oferta pública desenvolve uma cultura que, muitas vezes, não é uma regra escrita. “Mas sua eficácia acaba cobrindo eventuais brechas da regulação.”

O Bradesco Banco de Investimento (BBI) também conta com um instrumento interno, o Comitê de Decisão, que observa eventuais ocorrências de conflitos de interesse entre a ofertante, a instituição coordenadora e as demais unidades do banco (corretora e asset). Sobre o fato de a lei e a auto-regulação estrangeiras serem mais detalhistas do que a brasileira, Denise Pavarina, diretora do BBI, lembra que o volume de regras no mercado norte-americano não foi suficiente para conter as fraudes contábeis naquele país. “Regra é bom. Mas melhor ainda é ter gente séria trabalhando. Onde há muita rigidez, sempre haverá alguém tentando burlar as normas.”

Conforme a SEC, as gestoras de recursos ligadas ao banco coordenador de determinada oferta não podem, salvo exceções, comprar as ações distribuídas

Para Luiz Macahyba, superintendente de produtos e relações institucionais da Andima, o fato de as entidades auto-reguladoras no Brasil adotarem recomendações mais conceituais, com menos detalhes, deve-se, em parte, à sua pouca capacidade de monitoramento. “É difícil dizer que uma asset pode comprar até determinado percentual do ativo, quando não se tem acesso aos dados sobre a carteira. Vale, então, o princípio de que tudo deve ser divulgado com clareza no prospecto.” Mas só informar basta? Ele acredita que sim. “O investidor conseguirá decidir quando todos os riscos forem mapeados.”

Ainda faltam meios para mensurar o grau de relacionamento entre o underwriter e a companhia que o contratou para a coordenação da oferta

CONSULTA PÚBLICA — Em maio deste ano, a Andima foi convidada pela Internat ional Organizat ion of Securities Commissions (Iosco) para participar de uma pesquisa mundial sobre o comportamento das instituições distribuidoras de ofertas públicas. Além de obter um retrato de como os bancos intermediários vêm lidando com conflitos de interesse em cada país, o órgão pretende usar essas informações como base para a elaboração de uma espécie de código de conduta internacional, que levará o nome de Statement of Principles for Market Intermediary Management of Conf licts that Arise in Securities Offerings. Com esse objetivo, o órgão enviou às entidades representantes do mercado de capitais dos países membros um questionário com 33 perguntas, todas acompanhadas de uma recomendação para cada atividade do underwriter no processo de oferta (veja quadro na página anterior).

Para elaborar sua resposta, a Andima entrevistou cinco bancos, estrangeiros e nacionais, de portes diferentes, sob a condição de que não seriam identificados. A conclusão da entidade foi que, “em maior ou menor grau, as instituições financeiras (no Brasil) identificam a existência de potenciais conflitos de interesse quando dos processos de ofertas públicas de valores mobiliários, (…) embora os mecanismos de mitigação desses conflitos pareçam variar entre elas”. O relatório diz ainda que os bancos estrangeiros, muitas vezes, adotam procedimentos já utilizados em suas matrizes, que atuam com controles de riscos e de conflitos mais desenvolvidos.

Contudo, mesmo nas instituições com sede em outros países, a Andima observa que faltam meios para mensurar o grau de relacionamento entre o underwriter e a companhia que o contratou para a coordenação da oferta. “Os bancos não sabem dizer o que é estar bastante ou pouco envolvido com seus clientes, principalmente na alocação”, diz Macahyba. O levantamento ressalta ainda que o avanço da tecnologia da informação e o maior grau de maturidade do mercado brasileiro contribuíram para o aumento dessa preocupação ética. Mas foi consenso entre os entrevistados que os mecanismos para assegurar a eficácia dos processos adotados ainda merecem mais atenção no Brasil.

Para Felipe Claret, gerente de registro da CVM, o ideal seria acrescentar um pouco mais de detalhes nos anexos da Instrução 400, a fim de dar conta das dúvidas que surgem sobre o tema “conflitos de interesse” à medida que cresce a velocidade das ofertas públicas no País. “Não podemos nos comparar com a SEC, que tem uma estrutura gigante, opera num mercado mais evoluído e escreve suas normas desde a década de 30”, afirma. “Mas estamos evoluindo. A Instrução 400 foi um salto em relação à regulação anterior, de 1980.” Claret pondera que esse acréscimo de especificidades nas instruções deve ser feito com moderação, para que não se criem regras demais e isso acabe engessando o mercado. Para aqueles que se preocupam com os riscos de conflitos nas recentes ofertas, ele tenta tranqüilizar: “A CVM imputa muitas responsabilidades aos coordenadores, para que sejam claros e éticos nessas operações”, afirma. A dúvida é se um modelo mais baseado em conceitos do que em regras específicas funciona no Brasil.

Iosco sugere regulação para underwriter

Na era das corporações, saber quem é dono de quem se tornou uma questão fundamental. Nem sempre uma instituição afiliada está claramente identificada como pertencente ao mesmo conglomerado do distribuidor da oferta. Essa é uma das preocupações da Iosco, que, neste momento, planeja a criação de um código de princípios internacionais para disciplinar a atividade dos underwriters. Preocupado com as fragilidades na lei, o órgão estabeleceu, num documento divulgado em fevereiro deste ano, diretrizes para garantir a transparência na relação entre emissor, coordenador da oferta e investidor. Trata-se de um conjunto de recomendações que aborda não só o “como fazer”, mas também os meios para prevenir e mitigar conflitos.Uma das sugestões do órgão é a criação de um comitê de underwriting, com a presença de advogados, auditores e até membros independentes do conselho de administração do banco, para a análise e gestão dos conflitos. “As pessoas do comitê devem ter suficiente autoridade, autonomia e independência para tomar decisões não influenciadas por pressões comerciais”, diz o documento.A próxima diretriz discorre sobre a conhecida “chinese wall”, ou barreira entre as unidades do banco para evitar vazamentos de informação e tráfico de influência. Segundo o órgão, as pessoas envolvidas na operação deveriam ter acesso às informações só por meio de um sistema de autenticação eletrônica. Outras formas de garantir essa segregação seriam a colocação de barreiras físicas (com a separação de ambientes); a classificação dos arquivos, conforme sua relevância, para acesso exclusivo de determinados usuários; e a formalização de acordos de confidencialidade entre os envolvidos na oferta.

No quesito transparência, a Iosco afirma que informar a existência do problema é o mínimo a ser feito. Para essa ação ser mais eficiente, o prospecto deve explicar também o impacto do conflito na oferta, assim como os mecanismos que a instituição está usando para eliminar esse risco. A organização pede ainda que as equipes comerciais, incumbidas da venda das ações, sejam completamente distintas daquelas que lidam com o emissor. Isso evitaria a influência do investidor no processo de precificação do papel e da área comercial do banco nas recomendações de investimento. Por fim, a Iosco defende que o mercado deve extrapolar a legislação local, se necessário, para a proteção dos interesses dos clientes, sejam eles emissores ou investidores. (A.S.S)


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