Tragicomédia de acionistas
Hoje as coisas caminham melhor. Mas as assembléias já serviram de palco para muitas das histórias tristes (ou engraçadas?) nas relações entre controladores e minoritários no Brasil

O que uma anta, um revólver e uma escolta policial têm em comum? Por incrível que pareça, essa esquisita combinação de elementos — digna de um roteiro de um filme de Indiana Jones — faz parte das histórias vividas por advogados nas assembléias de companhias brasileiras, quando tiveram de enfrentar as mais patéticas descomposturas dos controladores a fim de defender os interesses de seus clientes. Exagero? Longe disso. Caso esteja perto de algum desses profissionais, pergunte a ele se, nesse tipo de reunião, nunca passou por uma situação constrangedora, como a de ser segurado na portaria da empresa por um longo tempo, sob o risco de ficar de fora de uma votação importante. Quantos deles já não depararam com um perfil de majoritário que adota uma interpretação própria para a Lei das S.As bem na hora de o minoritário eleger o seu representante no conselho fiscal?

Sim, as assembléias brasileiras já viveram tempos difíceis. Nas linhas a seguir, os leitores conhecerão alguns relatos reunidos pela Capital Aberto para ilustrar o quanto o desrespeito aos direitos dos acionistas era prática comum pelo Brasil afora, anos atrás. Hoje, não dá para dizer que o mercado está totalmente livre de vivenciar situações desse tipo. Mas, certamente, são muito mais improváveis de acontecer.

Comecemos pelas lembranças do advogado Marcos Chaves Ladeira, sócio da área empresarial do escritório Pinheiro Neto. Não lhe pergunte como sobreviveu às três viagens feitas para São Félix do Xingu, no sul do Pará. Pelo estatuto da companhia, era nesse município que ficava a sede da empresa, isto é, o local obrigatório para a realização da primeira assembléia geral de acionistas naquele fatídico ano de 1994.

Nessa ocasião, Ladeira representava um grupo de minoritários que desejava propor formalmente uma ação de responsabilidade civil, acusando os próprios controladores de má gestão. Por aí se vê que os acionistas majoritários não tinham a menor intenção de facilitar as coisas para ele. O nome da empresa, ele prefere não revelar. Mas diz que quem era da região conhecia bem a história de um doutor que chegava à cidade de terno, gravata e pasta embaixo do braço e alugava um monomotor para levá-lo até uma fazenda distante. “Como era época de queimadas, às vezes, perdíamos a rota por alguns instantes já que a fumaça atrapalhava a visibilidade do piloto”, conta o advogado, que passava quatro horas sobrevoando a selva amazônica até chegar ao endereço que constava no edital de convocação.

Da primeira vez que aterrissou na fazenda, levou um susto com o lugar que chamavam de sede — um galpão, cujo telhado e o banheiro improvisado eram as únicas provas de que aquilo um dia fora uma residência. Sem se intimidar, seguiu rumo à tapera. Mas, para sua surpresa, não havia ninguém na assembléia, além de uma anta e um boi pastando na grama. Quem pensa que seu trabalho havia chegado ao fim engana-se, pois Ladeira teve de voltar à cidade e, no dia seguinte, procurar um cartório para deixar registrado oficialmente que esteve presente na tal reunião. “Lembro que havia galinhas no balcão do escrivão.” Feito o registro, só lhe restava voltar a São Paulo e aguardar uma próxima tentativa de apresentar a ação de responsabilidade civil. Meses depois, uma outra assembléia foi convocada, e novamente o advogado partiu até São Félix do Xingu.

Contudo, a mesma história se repetiu: no lugar de advogados, diretores ou outros acionistas, de novo, apenas a anta estava presente na sede da empresa. Só na terceira vez que o encontro foi agendado, os controladores decidiram comparecer ao galpão da velha fazenda. A assembléia, por fim, aconteceu, e Ladeira conseguiu fazer constar em ata que seu cliente propunha uma ação contra os controladores. Por mais que a iniciativa não tenha recebido a maioria dos votos, só o fato de essa ação aparecer na ata representou um avanço nas futuras negociações do escritório em prol dos minoritários.

É nos rincões do Brasil que costumam acontecer os episódios mais hilários envolvendo advogados e assembléias

A região amazônica também é a lembrança que vem à mente do advogado Rogério Lessa, sócio-diretor-geral do escritório Demarest, quando perguntado sobre suas experiências em assembléias curiosas na sua carreira. Certa vez, representava o controlador de uma companhia cuja sede — isto é, o lugar onde, teoricamente, deveria acontecer o encontro com os acionistas — era num galpão sem qualquer infra-estrutura, na cidade de Belém. Por causa da grande distância com São Paulo, ele propôs ao advogado do minoritário a alteração do endereço da assembléia-geral (AGO) para a capital paulista, já que ambos mantinham escritórios vizinhos, na Rua Líbero Badaró, no centro. “Chequei com os demais acionistas e verifiquei que apenas ele e eu iríamos comparecer ao encontro. Então, por que isso deveria ser feito no Pará se trabalhávamos um ao lado do outro?”, raciocinou Lessa.

O fato é que o representante do minoritário insistiu para que a AGO fosse em Belém. Lessa não discutiu e viajou até a Região Norte. A assembléia ocorreu numa garagem com uma mesa e duas cadeiras improvisadas, só com a presença dos dois advogados. Frente a frente, deu-se início à leitura da pauta do dia. De repente, o advogado do minoritário avisa que quer propor um voto em separado num dos itens apresentados. Lessa, então, pediu que escrevesse sua opinião numa folha para ser anexada à ata. Acreditem ou não, ele não tinha um pedaço de papel sequer. Como havia pego o avião sem nenhuma bagagem — afinal, voltaria no mesmo dia para São Paulo —, o procurador do minoritário viajou sem nada na mão. Resultado: o voto em separado não pôde ser efetivado. Lessa, que já estava descontente por ter sido obrigado a se deslocar até o Pará, apenas lamentou o despreparo do colega.

TERRA SEM LEI— É nesses rincões do Brasil que costumam acontecer os episódios mais hilários envolvendo advogados e assembléias. Pois não foi no interior do Maranhão que Moacir Zilbovicius, do escritório Mattos Filho Veiga Filho Marrey Jr. e Quiroga, ouviu de um controlador que o direito do voto múltiplo não valia por aquelas bandas? O ano era 1998 e lá estava ele desafiando o presidente da mesa a cumprir a Lei das S.As para conseguir eleger um representante dos minoritários no conselho de administração, a partir do que prevê o seu artigo 141. “Quando vi que não teria jeito de convencê-los, peguei meu telefone e avisei que chamaria a imprensa para informar o que estava acontecendo”, lembra Zilbovicius. Diante da ameaça, o presidente da mesa achou por bem esclarecer os majoritários de que a lei era válida em todo o território nacional. Só assim, a votação transcorreu normalmente.

Já na história contada por Márcio Tadeu, do Veirano Advogados, os controladores não tiveram a mesma compreensão: “Há seis anos, duas colegas minhas, que representavam minoritários com opinião contrária à dos acionistas majoritários, quase foram impedidas de entrar numa assembléia por causa de uma burocracia no prazo de envio da procuração à companhia. Depois de muito esforço, conseguiram chegar até a sala onde seria realizada a reunião. Mal terminavam de se acomodar, ouviram do controlador que elas deveriam se retirar. Diante de sua recusa, eles próprios decidiram sair daquele lugar. O mais absurdo é que, nessa fuga estratégica, deixaram as duas advogadas trancadas na sala, para terminar a reunião do lado de fora”. Assim que conseguiram escapar, as moças foram ao escritório de Tadeu para, juntos, pedirem à Comissão de Valores Mobiliários (CVM) o cancelamento da assembléia. A reivindicação foi aceita pelo órgão regulador.

A ousadia de quem confunde controle acionário com coronelismo foi testemunhada ainda por Luiz Leonardo Cantidiano, sócio do Motta, Fernandes Rocha Advogados. “Como diretor da CVM, em 1990, cheguei a mandar a Polícia Federal acompanhar os minoritários, pois havia a denúncia de que os controladores iriam ao encontro deles armados”, conta. Numa outra ocasião, no interior de Pernambuco, Cantidiano questionou a acionista controladora, dizendo que aquela senhora estava “faltando com a verdade”. O eufemismo, contudo, foi em vão. Quando mal terminava de pronunciar essas palavras, notou que um dos acompanhantes da acionista colocou seu revólver sobre a mesa e começou a gritar: “Não admito que um forasteiro fale assim de uma dama pernambucana”. Cantidiano devolveu no mesmo tom: “Dama ou não, só posso dizer que é uma mentirosa”. E não é que o capanga da mulher guardou a arma depois dessa?

BARRACO COM ESTILO —Ainda que capitais como São Paulo e Rio de Janeiro abriguem narrativas menos engraçadas como as registradas acima, os participantes de reuniões realizadas nos grandes centros urbanos também têm lá suas histórias. Algumas delas são contadas por Rodrigo Ferraz, advogado e professor do Ibmec. “Já soube de muitos casos no Rio em que o advogado saía da assembléia correndo até um cartório com medo que um outro acionista chegasse antes e registrasse uma versão diferente da ata”, exemplifica. Ele lembra ainda de um velho golpe usado pelo controlador, quando mencionava, no edital de convocação, o item “assuntos gerais”. Mais tarde, era sabido que, com esse mecanismo, conseguia trocar um conselheiro, por exemplo.

No quesito das grandes cidades, Brasília ainda é campeã por ter sido palco de uma das mais famosas confusões em assembléia. Quem não se lembra da guerra travada na sede da Brasil Telecom, entre os representantes do Opportunity contra os demais acionistas do Citigroup e de fundos de pensão, pelo comando da operadora de telefonia, em maio de 2005? Estes últimos tinham conseguido uma liminar na Justiça para convocar uma assembléia geral extraordinária (AGE), com o objetivo de formar um novo conselho de administração da companhia. Mas, na hora H, eles próprios foram impedidos de entrar no prédio da empresa. Por causa de tantas barreiras para o acesso desse grupo à reunião — exigências burocráticas e esperas nas diversas portarias —, quando chegaram ao local indicado, as votações já tinham se encerrado. Há quem jure ter visto um advogado do Opportunity escapando pela saída de emergência do prédio, com a ata em mãos, para não encontrar nenhum minoritário pelo caminho.

Na época, Mauro Cunha, diretor de investimentos da Templeton, era gestor de um dos fundos que brigavam contra o Opportunity, mas deixou de assistir à briga em Brasília porque, justamente nessa ocasião, seu filho havia acabado de nascer. “Ficava orientando os advogados pelo celular, dentro da maternidade.” Entre os fatos que revelam a má vontade do controlador quando quer impedir um investidor indesejado de participar desses eventos, ele lembra de um caso ocorrido em 1999 que envolvia a subsidiária de uma grande multinacional com ações listadas no Brasil. Seu advogado havia reunido uma papelada de 11 mil assinaturas de acionistas com o intuito de eleger um representante no conselho fiscal. Na hora de entrar na sala, os membros da mesa fizeram questão de checar folha por folha daquela montanha de papéis, o que atrasou a reunião por três horas. Para Cunha, mesmo hoje em dia é possível que situações como as descritas acima se repitam nas assembléias brasileiras. “Há empresas que, simplesmente, não nasceram para ter o capital aberto”, sentencia. Diante desse festival de arbitrariedades, não há como não duvidar dessa tese.

Acionista fantasma elege conselheiro

Entre as contribuições que acionistas e advogados trouxeram para esta reportagem sobre os casos mais bizarros presenciados nas assembléias brasileiras, existe uma ocorrência que merece destaque por seu caráter, digamos, sobrenatural. Em janeiro de 2004, o investidor Marcos Duarte tinha participação em uma empresa de telefonia celular em plena fase de consolidação. Ao acompanhar esse processo, encontrou um erro no laudo elaborado para avaliar cada uma das operadoras que iriam compor a nova companhia. A fim de defender o seu ponto de vista, ele, que tinha uma representação significativa na empresa a ser incorporada, resolveu se candidatar a uma das cadeiras do conselho fiscal na assembléia. No dia da votação, estava certo de que assumiria o cargo, pois havia garantido um total de 30% dos votos com o apoio de outros minoritários. Qual não foi sua surpresa ao ver um outro candidato, simpatizante do controlador, levando a sua vaga por uma diferença de apenas 0,5% dos votos. Desconfiado, Duarte verificou a lista de presença dos acionistas que elegeram seu rival e descobriu que um deles havia votado sem ter pisado na assembléia. “Por um acaso, a alma dele veio até aqui e votou?”, disse aos membros da mesa. Começou, então, uma discussão sobre como era possível considerar o voto de uma pessoa ausente numa decisão daquelas. Afinal, se esse voto não fosse computado, Duarte teria conseguido se eleger. Depois de quase uma hora de bate-boca, eis que uma procuração do tal minoritário fantasma chegou ao local, enviada via fax, naquele minuto. “O ridículo é que o documento desse acionista dava poderes, justamente, a uma das secretárias do diretor financeiro da empresa para representá-lo”, conta. Foi a gota d’água. Duarte levou o episódio à CVM, e os controladores tiveram de realizar uma nova assembléia. Resultado: o conselheiro eleito com a procuração da secretária do diretor pediu demissão do cargo depois que a fraude ficou comprovada. Semanas mais tarde, na nova reunião convocada, Marcos Duarte entrou para o conselho, pois era o único a se candidatar na ocasião. (A.S.S.)


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