Suspiro do dragão
Ainda que tenha servido de pretexto para investidores realizarem lucros, a China está longe de representar um problema para os mercados globais

No dia 27 de fevereiro de 2007, as bolsas de valores do Ocidente acordaram sob forte tensão. A fumaça vinha do dragão vermelho. O índice Xangai, de um dos principais pregões chineses, ensaiava queda livre e encerrava a jornada com desvalorização de 9%. Dúvidas sobre os rumos da política econômica adotada pelo governo, reforçadas pelo boato de que o Estado aplicaria tributação de 20% sobre ganhos de capital, arrefeceram o apetite voraz do investidor chinês. O movimento também representou uma correção. Na véspera, o mesmo índice havia batido o recorde de 3.193 pontos. Nas semanas seguintes, porém, a Bolsa de Xangai voltaria a subir com desenvoltura. Afinal, não era um incêndio.

Ao contrário do que temiam investidores de várias partes do mundo, inclusive do Brasil, era apenas um susto. Na prática, o episódio mais serviu para mostrar que, embora se insira no quarto maior PIB do globo, o mercado de capitais chinês ainda é insignificante no contexto mundial — Xangai representa apenas 1% da capitalização mundial das bolsas — e está longe de refletir a robustez da economia do gigante asiático. Além disso, os investidores estrangeiros aptos a comprar ações por lá não somam mais de US$ 10 bilhões em recursos aplicados. Para a economista-chefe do Banco Espírito Santo, Sandra Utsumi, o próprio termo “mercado de capitais chinês” é uma definição incompleta: “É um mercado muito fechado e todo dependente do Estado”, diz ela.

Para ter voz por lá, é preciso nascer na terra de Mao. Estrangeiros encaram uma verdadeira sopa de letrinhas para investir no mercado acionário da China. Basicamente, operam na Bolsa de Hong Kong, negociando ações do tipo H. No continente, podem comprar ações do tipo B e enfrentam várias restrições para adquirir papéis do tipo A, os de maior liquidez e negociados na moeda local. Por conta da escassez de investidores externos, avaliam os analistas, o recente recuo dos mercados em escala mundial ocorreu muito mais por conta dos receios de crise na economia dos Estados Unidos do que pela suposta relevância de Xangai. “Falta consenso sobre a magnitude da desaceleração da economia norte-americana, que precisará ocorrer para trazer a inflação a um patamar satisfatório”, analisa o economista-sênior do Santander Banespa, Maurício Molan. Não se sabe exatamente, por exemplo, o tamanho do estouro de uma bolha no mercado imobiliário daquele país.

Dentro da China, os fatores que contribuíram para o baque foram muito mais especulativos. Além da perspectiva de tributação extra sobre os ganhos de capital, havia o temor de que o governo apertasse a alta liquidez vigente no mercado, fomentada por uma bolsa em plena escalada. Como mudanças na política econômica, quando anunciadas, ocorrem entre abril e maio, os investidores preferiram não correr o risco de esperar até lá: realizaram já no fim de fevereiro seus lucros, aproveitando a alta de 130% do índice Xangai no ano de 2006.

REAÇÃO EXAGERADA — Rodrigo Tavares Maciel, secretário-executivo do Conselho Empresarial Brasil – China (CEBC), acompanhou de perto o vaivém desse mercado. Estava no país asiático no fim de fevereiro. Segundo ele, um dos sinais de que o governo se preocupava com a corrida às bolsas foi a proibição de empréstimos em cartões de crédito para aplicações no mercado de ações. Outros foram os aumentos consecutivos da taxa de juros e dos depósitos compulsórios realizados desde o ano passado. “O que ocorreu em Xangai é resultado da disposição do governo para diminuir o crescimento e a liquidez no mercado financeiro. Isso levou à reação exagerada”, acrescenta Sandra Utsumi, do Banco Espírito Santo. De acordo com relatório do banco Merrill Lynch, publicado no dia 2 de março, a inflação, levemente em alta, serviu de justificativa para o aperto.

O recuo dos mercados mundiais ocorreu mais por conta dos receios de crise nos Estados Unidos do que pela suposta relevância de Xangai
No curto prazo, parece difícil pensar em guinadas no mercado de capitais chinês. Falta muita regulação para as bolsas ganharem o espaço que merecem

No curto prazo, parece difícil pensar em guinadas acentuadas no mercado de capitais chinês. “Falta muita regulação para as bolsas ganharem o espaço que merecem”, afirma Maciel, da CEBC. “Ainda não vimos nenhum plano que crie mecanismos para o seu desenvolvimento.” Uma das bandeiras mais defendidas é a privatização dos bancos, iniciada com mais vigor só recentemente. O Banco da Indústria e Comércio da China, o maior do país, movimentou US$ 21,9 bilhões em sua oferta inicial de ações (IPO) no ano passado, um recorde nesse tipo de operação.

Em artigo publicado em novembro de 2006 comparando os sistemas financeiros da China e da Índia, as analistas Diana Farrell e Susan Lund, do McKinsey Global Institute, afirmam que os dois paí­ses apresentam uma deficiência em comum: a excessiva intervenção do governo, que distorce a alocação do capital e, conseqüentemente, emperra o crescimento. “Na China, a maior parte dos investimentos nas empresas estatais, muitas com baixa produtividade, tem o objetivo de manter os níveis de emprego”, constata o artigo. O estudo indica que, em 2004, 83% dos bancos chineses eram estatais.

Especialistas engrossam o coro de que há necessidade de profundas reformas. Matthew J. Slaughter, professor associado de administração de negócios da centenária Tuck School of Business, escola de negócios da Dartmouth College, nos Estados Unidos, aponta algumas boas razões para a China levar a cabo mudanças como essas. Os investimentos estrangeiros ampliariam a produtividade das companhias locais por meio do estímulo à competição interna e da reprodução de práticas de gestão adotadas pelos grandes grupos multinacionais.

MUDANÇAS EM CURSO — De uma forma ou de outra, o governo tem migrado para a abertura, comenta Sandra Utsumi. No setor financeiro, medidas têm sido tomadas no sentido de aumentar a transparência e reduzir os riscos. A adoção de práticas de governança também é crucial e tem sido levada a cabo nas companhias. No caso chinês, o desafio se mostra ainda maior, uma vez que a maioria das empresas listadas nas bolsas é estatal ou controlada pelo Partido Comunista. Nesse quesito, a China perde feio para emergentes, como o Brasil, por exemplo.

“Não dá nem para comparar com o Brasil”, afirma a economista do BES. Hoje existe no País todo um arcabouço de adequação contábil e de procedimentos que garantem liquidez e transparência, diz ela. Contudo, no ranking divulgado em setembro de 2006 pela GovernanceMetrics International (GMI), agência norte-americana de rating especializada em governança corporativa, a China aparece em 42º lugar, apenas uma posição atrás do Brasil. No geral, os asiáticos se destacaram, negativamente, no número de companhias com a mais baixa pontuação. Foram sete empresas chinesas, contra três brasileiras.

Não é complicado entender o mau desempenho. O órgão regulador do mercado, chamado China Securities and Regulatory Commission (CSRC), foi criado em 1992. Seu manual de governança tem apenas seis anos. Ele obriga as empresas a reservarem um terço das cadeiras do conselho de administração a membros independentes e estabelece comitês de auditoria e de remuneração compostos apenas por profissionais com esse perfil. Um dos problemas, segundo estudo do Chartered Financial Analyst (CFA), publicado em março de 2006, é a indefinição do conceito de “independência”.

O Institutional Shareholders Services (ISS) é outro que se debruçou sobre os indicadores das práticas chinesas de gestão. Numa pesquisa conduzida pelo instituto, publicada há um ano, investidores citaram quatro desafios-chave na China: estrutura de propriedade e seus resultantes conflitos entre majoritários e minoritários, carência de diretores independentes, falta de regulação e de medidas para prevenir abusos e falta de transparência. Metade dos respondentes disse que os maiores riscos de investimento residem na governança corporativa. Mas o estudo do ISS também identificou avanços. Um deles é a extinção das ações não-negociáveis. Essa classe de papéis pertencia ao Estado (representava dois terços do total) e não era vendida nas bolsas. Por meio de um programa de conversão, os papéis passaram a ser ofertados a investidores.

A maioria das empresas listadas é estatal ou controlada pelo Partido Comunista. Nesse quesito, a China perde feio para emergentes, como o Brasil

CONTÁGIO REDUZIDO — Calcula-se que, em 2006, cerca de 3 milhões de pessoas físicas tenham aberto contas em corretoras a fim de investir nas duas maiores bolsas da China continental — a de Xangai e a de Shenzhen. Trata-se, portanto, de um mercado altamente especulativo, que vive um momento de euforia. Mesmo assim, acredita-se que ele seja ainda irrelevante para provocar, sozinho, turbulências no âmbito internacional. “Com o passar do tempo, os investidores foram percebendo que o porcentual de contágio chinês é muito pequeno”, afirma Maurício Molan, do Santander Banespa. Mais preocupante seria o desaquecimento de sua monumental economia. Para a economista-chefe do Banco Espírito Santo, tal situação tampouco é factível. Pelo menos não nos próximos meses. “Seria preciso uma recessão nos Estados Unidos, aliada à desaceleração chinesa, para termos um período de turbulências”, argumenta.

No início de março, o primeiro-ministro chinês, Wen Jiabao, anunciou a meta do governo em frear o crescimento do país de 10,7%, em 2006, para 8% até o fim deste ano. Essa hipótese é descartada por Rodrigo Maciel, do Conselho Empresarial Brasil-China. “Esse mesmo número mágico de 8% foi falado pelo governo no ano passado. Teremos de ver quais serão os mecanismos criados para conter o crescimento”, diz ele. Estimativas já anunciadas pelo Banco Mundial dão conta de que não será fácil atingir o objetivo. Segundo a instituição, o PIB chinês deverá subir 9,6% este ano.

De fato, os fundamentos chineses vão bem. Em fevereiro, as exportações cresceram mais de 50% em relação ao mesmo mês do ano passado, totalizando um superávit comercial de US$ 23,76 bilhões. O cenário favorável internacional contribui para espantar os maus presságios. “O Japão também veio com números muito bons. No quarto trimestre, cresceu 5,5%, um percentual extremamente forte. Os dados na Europa sugerem que o ritmo de crescimento está bom”, diz Molan, do Santander Banespa. Para ele, o problema não é a China. O que está “pegando” mesmo, reforça, são as notícias que vêm dos Estados Unidos. À luz das inseguranças que ainda dominam o mercado chinês, menos mau. n


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