Concorrência pela fortuna alheia
Disputa entre bancos e family offices põe em debate a qualificação dos profissionais envolvidos no aconselhamento financeiro

As recentes operações de oferta pública inicial de ações (IPO) mostraram que têm fôlego para movimentar bem mais do que os pregões diários da Bovespa. Os acionistas que fizeram milhões com a venda de papéis na abertura de capital de suas respectivas empresas são clientes potenciais dos chamados gestores de patrimônio — que, hoje, devido à demanda por serviços de excelência neste segmento, não se resumem mais àqueles escritórios criados por famílias abastadas para servi-los com exclusividade em questões patrimoniais, chamados de family offices, ou mesmo àqueles concebidos para o aconselhamento de famílias diversas, os multi family offices. Nos últimos anos, este tipo de negócio vem chamando a atenção de grandes bancos e gestoras de recursos (“assets”), que também querem levar um naco deste filão em franca ascensão.

Mostrando bastante disposição para brigar pelos sobrenomes que carregam as mais exuberantes fortunas, os departamentos de private banking e as assets independentes assumem agora as vezes do próprio escritório de família, passando de parceiros a rivais dos tradicionais family offices, que até então contratavam os seus serviços para execução das aplicações financeiras. Dos dois lados, a promessa é uma só: prestar um atendimento diferenciado para as diversas questões que cercam famílias milionárias e fazer o seu patrimônio multiplicar por várias gerações seguidas. E é justamente aí que a discussão entra em outro nível: quem realmente tem cacife para conseguir este feito? Os gestores de recursos profissionais ou os consultores dos family offices?

Segundo a Associação Nacional dos Bancos de Investimento (Anbid), a mesma atividade de aconselhamento financeiro realizada pelas áreas de private banking é também praticada, há alguns anos, por consultores nos family offices. “Somos concorrentes, mas estamos trabalhando em bases muito diferentes”, diz Celso Scaramuzza, vice-presidente da Anbid, que também é responsável pelo private banking do Unibanco — o primeiro entre os grandes bancos no País a criar uma área de “wealth management”, batizada de Gestão do Patrimônio Total, que trabalha como multi family office. Segundo o executivo da Anbid, enquanto os profissionais dos bancos são submetidos a testes periódicos como a CPA-20 (instituída pela associação para aqueles que atendem investidores qualificados) e a CFP (referência mundial para designação de planejadores de finanças pessoais), os consultores dos family offices não passam por nenhum processo de avaliação.

A única exigência para esses profissionais é uma certificação perante à Comissão de Valores Mobiliários (CVM), atendendo à Instrução 43, segundo a qual a atividade de consultor pode ser exercida por pessoa física ou jurídica habilitada pela autarquia e com “comprovada experiência em atuação no mercado de valores mobiliários”. Mas essa instrução é de 1985 e, até hoje, não existe nada mais atual para regular a profissão. “Falta uma legislação clara para a atividade de consultoria de valores mobiliários”, concorda Luiz Felipe Lobiano, gerente de acompanhamento de investidores institucionais da CVM. Segundo ele, na ausência de uma nova instrução para a profissão, a autarquia tem recomendado, “aproximadamente”, o que é exigido dos administradores de carteira de títulos e valores mobiliários, conforme a Instrução 306. Em algum momento, diz Lobiano, a CVM pretende editar um normativo que também conceitue a atividade de consultoria.

Mas a Anbid não deseja esperar muito. “Vamos levar à CVM a Instrução 43 reeditada, para melhor especificar a atividade de consultoria de valores mobiliários, que, em muitos casos, está entre as atribuições dos family offices”, afirma Scaramuzza. Até 2008, a Anbid pretende também introduzir um novo capítulo no Código de Auto-Regulação de Private Banking para orientar a relação dos bancos com os family offices e identificar formalmente as suas respectivas responsabilidades, assim como as do cliente. Segundo Scaramuzza, em alguns casos, há family offices que atuam como consultores de valores mobiliários sem nem sequer ter obtido a certificação da CVM. “Há exemplos de family offices que não orientam adequadamente o investidor, principalmente no que se refere aos riscos, e o expõe a aplicações que não têm êxito”, diz. “Não queremos esperar que casos de investidores frustrados se acumulem para tomarmos alguma medida”.

CRIAR SINTONIA — A Associação dos Profissionais de Investimento e Analistas do Mercado de Capitais (Apimec) também acredita que a complexidade cada vez maior das operações de investimento em nível mundial, no foco de boa parte dos clientes dos family offices, exige uma alta qualificação de todos os profissionais envolvidos. Atualmente, o Instituto Brasileiro de Certificação dos Profissionais de Investimento (IBCPI), ligado à Apimec, aplica quatro exames (um de conteúdo nacional e três de conteúdo global) para conferir a Certificação Nacional do Profissional de Investimentos (CNPI), que funciona como pré-requisito para que o analista de valores mobiliários obtenha seu credenciamento na CVM. Os demais profissionais do mercado podem se candidatar à CNPI, mas ela não é obrigatória para o exercício da função. “Seria interessante que todos os profissionais que prestam consultoria em valores mobiliários obtivessem a CNPI e até a certificação internacional”, afirma Haroldo Levy, diretor geral do IBCPI, referindo-se à CIIA, concedida pela Association of Certified International Investment Analyst (ACIIA).

Tanto a Apimec quanto a Anbid garantem que o seu interesse em discutir a qualificação é apenas aumentar o nível técnico dos profissionais de investimento, especialmente quando o que está em jogo são as grandes fortunas. Scaramuzza afirma que não é intenção da Anbid barrar ou atrapalhar a atividade dos family offices. “Trata-se de um negócio que já garantiu o seu espaço no mercado e aqueles que trabalham com seriedade só tendem a crescer”, afirma. “Mas é preciso criar maior sintonia e comprometimento entre as atividades dos escritórios de família e dos private bankings para que o cliente não seja prejudicado”.



TRABALHO ARTESANAL — Em family offices tradicionais como a Janos Participações — responsável pela administração do patrimônio dos três sócios majoritários da empresa de cosméticos Natura —, o questionamento levantado sobre a qualificação técnica dos profissionais desses escritórios é recebido com certo ceticismo. “Deve-se tomar cuidado para que o exagero de certificações não acabe empurrando a prestação de serviços para os bancos, que têm uma grande dificuldade em personalizar o atendimento”, diz José Guimarães Monforte, presidente da Janos, ressaltando que tem registro na CVM, como prestadora de serviços de administração de carteiras. Na opinião de Monforte, o trunfo do family office tradicional — feito sob medida para os interesses de uma única família — é justamente o atendimento exclusivo, algo que bancos e assets independentes, no formato de multi family offices, não são capazes de reproduzir. “Essas pessoas precisam de um tratamento absolutamente personalizado, um trabalho quase artesanal, que não consegue ser prestado por um escritório que se apresenta como multi family office, mas cujo foco é a gestão de investimentos e a meta é o atendimento a muitas famílias”, diz.

Como exemplo, o Itaú Gestão Global de Patrimônio (IGPP), divisão de private banking do maior banco privado brasileiro criada em agosto de 2004, atende 60 famílias que tenham, no mínimo, recursos da ordem de R$ 50 milhões cada. Já sob a tutela do multi family office do Unibanco estão dez famílias que têm, pelo menos, R$ 30 milhões para investir. Para esses pequenos grupos milionários, mas que (ainda) não chegaram à casa do bilhão, não é interessante montar um family office próprio. Isso porque um escritório completo, com todos os profissionais à disposição e, alguns casos, uma estrutura para acompanhar os principais mercados de valores mobiliários em todo o mundo, exige um investimento estimado em R$ 3 milhões ao ano. Quem não pode se dar ao luxo de dispensar esse montante, recorre a um multi family office, no qual o pacote de prestação de serviços é negociado caso a caso. Esses serviços incluem, por exemplo, modelos de planejamento tributário, societário e sucessório, negócios imobiliários, além de assessoria em artes, cultura e filantropia (quando o cliente deseja investir em objetos de arte, ser reconhecido como um mecenas ou um filantropo).

Sem medo da bolsa e de olho nos IPOs Se você tem uma fortuna, com certeza, não deseja que ela acabe nunca. Daí uma certa tendência a ser conservador nos investimentos, arriscando pouco (pelo menos, dentro dos seus próprios critérios para definir o que é risco). Com os clientes dos family offices a história é exatamente essa. “Muitos consideravam a aplicação em ações como sinônimo de risco, mas aos poucos estamos revertendo esse conceito e mostrando que é possível investir em bolsa sem sustos”, diz Celso Scaramuzza, diretor executivo do Unibanco Private Banking, que abrange o segmento de family office, onde estão reunidos 11 profissionais.Segundo Scaramuzza, até pouco tempo, as aplicações das dez famílias atendidas pelo Unibanco — que hoje somam R$ 1,5 bilhão — concentravam-se nos ativos de renda fixa, com apenas 2% a 3% destinados à renda variável. “Mas, hoje, a renda variável atinge 20% das aplicações e este percentual tende a crescer se tudo continuar bem, uma vez que a taxa real de juros vem caindo”, afirma o executivo, que também destaca a influência do grande número de IPOs, cuja demanda superou em “três ou quatro vezes a oferta”.

Há também um trabalho educativo junto ao investidor para mostrar que aplicar em bolsa já não exige o movimento frenético de “entra-e-sai”, comprando e vendendo ações. “Existem critérios bastante sólidos para escolher as ações de setores vitoriosos da economia — como energia, telecomunicações, infra-estrutura e siderurgia, por exemplo – e, a partir daí, selecionar as empresas líderes, que exibam uma política agressiva de dividendos combinada a estratégias de longo prazo”, afirma Scaramuzza. Tudo isso, segundo ele, é transmitido ao cliente. “Alguns têm apetite para acompanhar as aplicações e outros delegam completamente essa função”, diz o executivo.

No que se refere à alocação de recursos, o Unibanco adota um modelo de “arquitetura aberta”, ou seja, não há restrição para trabalhar com produtos de outros bancos. De acordo com Scaramuzza, isso acontece para evitar eventual conflito de interesses. “Não forçamos a compra de nenhum produto do Unibanco”, afirma.

A arquitetura aberta também foi o modelo escolhido por uma gestora independente que passou a prestar serviços como multi family office. Entre os investimentos administrados, 60% estão em renda fixa e 40% em fundos multimercados — sendo que, neste último caso, 25% são destinados a derivativos e 15% a ações. “Estamos observando uma migração forte para a bolsa”, diz um dos consultores, que prefere não se identificar: “Ainda estamos nos estruturando”, diz. Para ele, o ramo de family office surgiu como oportunidade. “Nós quisemos investir neste segmento para aproveitar a sinergia proporcionada pela existência de economistas na asset esmiuçando dados do Brasil e do mundo em busca das melhores aplicações, e das famílias clientes, recém-milionárias devido aos IPOs na bolsa e sem saber como aplicar o seu dinheiro”, afirma. (DNM)

“Nossa meta é que o cliente tenha sempre um benefício maior do aquilo que nos paga”, diz Emílio José Ribeiro Soares, sócio da Naopim, um multi family office que atende 15 famílias, detentoras de um patrimônio somado da ordem de R$ 300 milhões. O foco do escritório está no desenho da estratégia tributária, no planejamento sucessório e na organização patrimonial. Para a alocação de recursos, a Naopim fechou há poucos meses uma parceria com a Ad Valorem, nome fantasia da MDI Associados Consultoria e Assessoria em Recursos Financeiros, capitaneada por Miriam Saintive. “Temos um acordo de exclusividade: todos os meus clientes que desejam fazer alocação de recursos são indicados para a Ad Valorem, que também nos indica aos clientes que precisam de um family office”, diz Soares, que antes da parceria indicava os próprios bancos. “Não temos expertise para isso (alocação), nem registro junto à CVM”, afirma.

MILHÕES E PROBLEMAS — Soares começou a organizar o escritório há cerca de sete anos, para cuidar do patrimônio da própria família, que tinha vendido sua participação na empresa de cimento Montes Claros. Conhecendo o modelo norte-americano de multi family office, resolveu atender outras famílias milionárias. Soares afirma que, apesar de seu atendimento não ser exclusivo, ele está muito próximo da clientela. “É um trabalho que envolve muita confiança, conquistada aos poucos com o cliente, que acaba ficando muitos anos com você”, afirma. Quando isso acontece, diz Soares, é comum que eles peçam opinião até para a compra do carro. “Nós entramos fundo na vida deles: sabemos tudo o que eles têm, quanto ganham, no que gastam”, diz. Ao que parece, a conquista de relações de confiança será o verdadeiro fiel desta balança.

Demanda por family offices reflete maior preocupação com governançaJunto com a multiplicação dos milhões na bolsa, o interesse crescente na oferta de serviços de family office veio a reboque de outro movimento: a importância de criar boas práticas de governança, tanto para as empresas de capital aberto, quanto para as famílias que as comandam. “O family office é hoje uma das maneiras mais modernas de se enfrentar a separação entre gestão e propriedade, tornando-a transparente tanto para a família quanto para o mercado”, diz René Werner, diretor da Werner & Associados, especialista em governança familiar e corporativa e consultor em desenvolvimento societário. Werner trabalha com as famílias milionárias, preparando-as para criar o seu próprio escritório ou para ingressar em um multi family office. Sim, porque antes de saber o que será administrado e como, muitas vezes é preciso conscientizar os membros da família a respeito do seu papel como acionista e da sustentabilidade do negócio no longo prazo.“É importante que um family office seja contratado ou estabelecido sob regras e princípios que delimitem claramente, por exemplo, o que é o caixa da família e o que é o caixa da empresa, quais os benefícios de cada um como acionista ou como gestor”, diz Werner, que não considera a maior oferta de serviços de family office um resultado direto do aumento do número de milionários. “O que estamos vendo agora é uma maior conscientização das famílias a respeito da diferença entre gestão e propriedade, dois conceitos que não podem mais ser confundidos em um mercado globalizado que exige cada vez mais transparência”, afirma o consultor, diretor mundial da Family Firm Institute, entidade norte-americana voltada ao estudo da governança em empresas familiares.

O advogado Eduardo M. Gentil, sócio da Trust Gestão Patrimonial, que presta serviços para family offices ou atende diretamente as famílias em diferentes tipos de planejamento — imobiliário, sucessório e societário —, também vem percebendo essa tomada de consciência. “Há sete anos, o trabalho dos escritórios de advocacia era, de maneira geral, muito mais reativo às disputas familiares, envolvendo empresas e heranças”, diz Gentil. “Hoje, busca-se exatamente o oposto, isolando o patrimônio produtivo do pessoal”, afirma.

Segundo Renato Bernhoeft, presidente da Bernhoeft Consultoria Societária, 65% das empresas familiares desaparecem por conflitos entre os membros controladores. O dado pertence a um estudo encomendado em 2005 pela Family Business Consulting Group International (FBCGi), ao qual a Bernhoeft é associada. O levantamento indica ainda que a média nos Estados Unidos é um pouco pior que a mundial: apenas 15% das empresas norte-americanas chegam à terceira geração. (DNM)


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