Caixa de surpresas
Caso Arcelor-Mittal coloca em xeque a eficácia dos estatutos que protegem minoritários em trocas de controle

Tida como a mais eficiente forma de eliminar os desalinhamentos de interesses gerados pelo prêmio de controle, a oferta pública feita a todos os minoritários no caso de venda da companhia (tag along) aparece hoje no estatuto de toda empresa que pretenda captar recursos no mercado de ações. Em versão muito melhor que a da Lei das S.As — que garante aos detentores de ações ordinárias apenas 80% do preço recebido pelo controlador em caso de venda da companhia — ela se consolida nos novos estatutos sociais como um direito de todos os acionistas (ordinaristas ou preferencialistas) e na proporção de 100%. Em casos específicos — como o da Arcelor Brasil — chega a ser ainda mais completa. Vai além do conceito de “alienação do controle acionário” para contemplar uma idéia maior e mais atrativa para os investidores, a de “poder de controle”. A diferença, embora sutil, pode ser decisiva. Por esta redação, a oferta se aplica também a situações em que qualquer acionista conquiste o controle de fato (embora não, necessariamente, de direito, ou seja, com a maioria do capital). À esta altura, é provável, o leitor já deve estar convencido de que os investidores conquistaram o paraíso do tag along que sempre sonharam, certo? Sim, mas só na teoria. Na vida real, o que se viu recentemente é que as letras dos estatutos sociais não conferem nenhuma garantia de satisfação.

O caso que deixou isso muito claro envolve a mesma companhia do estatuto modelo citado acima: a Arcelor Brasil, cuja controladora, a Arcelor na Europa, até então uma companhia de capital pulverizado, foi adquirida pela indiana Mittal Steel. Para quem não acompanhou a história desde o começo, eis um breve resumo: no dia 25 de junho, a Mittal desembolsou € 25,6 bilhões para adquirir a Arcelor S.A, siderúrgica global com sede em Luxemburgo e filiais espalhadas por vários países, entre eles Bélgica, França, Canadá e Brasil. Aqui, ela é dona da Acesita e da subsidiária que leva o mesmo nome. Após a venda, os minoritários desta última se viram no direito de bater na porta dos novos controladores para exigir o cumprimento da cláusula “ideal” prevista no estatuto. O artigo 8º do documento dizia: “a alienação do bloco de ações que assegure a um acionista (…) o poder de controle da companhia, direta ou indiretamente, (…) deve ser contratada sob a condição (…) de que o adquirente concretize uma oferta pública de aquisição das ações dos demais acionistas, de forma a lhes assegurar tratamento igualitário àquele dado ao alienante.”

Foi aí que os minoritários perceberam que, na hora H, as coisas não seriam tão simples. A Mittal negou que tivesse havido alienação de controle, batendo no ponto de que fora uma “fusão entre iguais”. Os investidores minoritários insistiram, foram à CVM, e a autarquia confirmou a posição: a OPA seria mesmo obrigatória, conforme o estatuto. Vencida a primeira briga, logo veio a segunda: quando a Mittal finalmente anunciou a oferta, o preço passava longe das expectativas dos investidores.

Se o tag along em questão viesse de uma aquisição direta de controle, seria pouco provável que o valor esperado pelos investidores saísse diferente daquele apresentado na oferta: a regra seria receber o mesmo preço pago pelo novo controlador, e ponto. Porém, por se tratar de uma transferência indireta de controle, abriu-se um vácuo em que nem a lei, nem o estatuto, diz o que deve ser feito. Em tese, para que se caracterize o “tratamento igualitário” mencionado no artigo 8º, o preço do tag along no Brasil deveria ser proporcional à parcela que couber à subsidiária no valor pago pelo controle da Arcelor Europa. Mas como calcular quanto a subsidiária representa nesse todo?

LADOS OPOSTOS — Foi justamente neste ponto que os minoritários brasileiros e os empresários indianos foram por caminhos distintos. Os primeiros consideraram que essa conta deveria feita com base no valor de mercado das duas companhias. Para a Mittal, a base deveria ser o Ebitda. A diferença entre os dois, sim, é bem representativa. Nas contas dos investidores, cada ação sairia a R$ 51. Nas da Mittal, R$ 34.

Quem questionou a Mittal recebeu como resposta que a quantia proposta foi calculada a partir de um critério estabelecido no próprio estatuto: o “tratamento igualitário” aos investidores. Nada melhor, segundo a companhia, do que utilizar o Ebitda como critério para medir quanto vale a parte da Arcelor Brasil no todo, uma vez que este havia sido o indicador usado para avaliar a Arcelor na Europa.

“É claro que esse não foi o único parâmetro, mas foi o principal”, diz o gerente de Relações com Investidores da Arcelor-Mittal, Rony Stefano, em entrevista à Capital Aberto. “Se você pesquisar em qualquer relatório de analista, verá que o Ebitda é a fórmula mais comumente usada para avaliar uma empresa no mercado”, reforça.

O argumento, provavelmente, teria sido aceito pelos minoritários se o valor da oferta saísse a contento. Mas não foi o que aconteceu. Por conta disso, a saída foi questionar se o Ebitda teria mesmo sido o principal indicador utilizado para avaliar a Arcelor Europa. Para isso, eles reuniram alguns argumentos. Em primeiro lugar, perguntam: por que o prospecto da oferta da Mittal registrado na Securities and Exchange Commission não indica que o Ebitda entrou no cálculo de avaliação do preço pago pela Arcelor Europa?

A Mittal explica que, num primeiro momento, não previa a realização da OPA no Brasil (ela sustenta que ocorreu uma “fusão entre iguais”). Logo, não via a necessidade de detalhar à SEC quais parâmetros foram usados para avaliar a empresa européia. E os minoritários rebatem: se o Ebitda foi a base do cálculo, por que o preço oferecido pelos indianos para a compra do grupo europeu subiu substancialmente (82%) desde a primeira tentativa de aquisição, em janeiro, àquela efetivamente realizada, em junho? Teria a projeção para o Ebitda subido tanto assim?, provocam.

Segundo o gerente de RI, na primeira oferta, a Mittal não elaborou um estudo tão completo como na segunda, quando foram calculadas novas possibilidades de parcerias, vendas e demais sinergias. “O preço ficou baixo, tanto é que os acionistas da Arcelor S.A recusaram a nossa proposta”, acrescenta Stefano. Na ocasião, a siderúrgica do bilionário indiano Lakshmi Mittal propôs pagar € 18,6 bilhões, € 10 bilhões a menos do que foi pago em junho.

Os investidores tentam provar à CVM que o preço pago pela Arcelor incluiu, na reta final, um prêmio pelo intangível, isto é, pela importância de comprar uma companhia que vinha sendo sistematicamente sua concorrente em tentativas de consolidação ao redor do mundo. “Nosso entendimento é que a metodologia utilizada para definir o valor da Arcelor S.A não foi a mesma aplicada à Arcelor Brasil. Por isso, o correto seria eles usarem um fato concreto, ou seja, o prêmio pago lá, de 82%, sobre o valor de mercado da ação”, pondera Renato Chaves, diretor de participações da Previ. O fundo de pensão é acionista da subsidiária brasileira junto com outros investidores nacionais — Dynamo, Centrus, BNDES —, além de estrangeiros.

Os minoritários também reclamam da forma de cálculo. Argumentam que, ao Ebitda da Arcelor Europa, foram somados diversos ativos não-operacionais relevantes, ao passo que, na subsidiária brasileira, não foi feito o mesmo. Dizem ainda que as sinergias, estimadas em US$ 1,6 bilhão, também aparecem somadas apenas na conta da empresa européia. Por fim, cobram respostas para o que vai acontecer agora, após o anúncio, em meados de novembro, da suspensão da venda da subsidiária canadense Dofasco. No Ebitda apurado para a siderúrgica mundial, a venda estava contemplada. A Mittal se defende dizendo que todos os ativos não-operacionais considerados relevantes para a Arcelor Brasil foram igualmente contabilizados. Sobre a diferença nos números de sinergia, esclarece que a união da companhia indiana com o grupo francês traz muito mais oportunidades de redução de gastos do que o estimado para a empresa brasileira. Quanto à Dofasco, afirma que a manutenção da empresa no grupo não gera uma mudança significativa no preço da OPA — menos de R$ 1 por ação.

Os investidores também reprovam o modelo escolhido para troca das ações no Brasil. Tanto lá fora como aqui, a Mittal oferece parte do valor em dinheiro e parte em ações. Mas há uma diferença: enquanto na Europa a cotação utilizada como base para cálculo da quantidade de ações foi a do dia da oferta (em junho), no Brasil a cotação de referência será à do dia 24 de outubro (data anterior à divulgação do valor da OPA) ou a obtida a partir da média dos cinco dias anteriores à liquidação da oferta. Como os preços estão em alta na Europa desde que a aquisição foi anunciada, a relação de troca é desfavorável para os investidores daqui — e tende a ficar ainda pior se as ações lá fora continuarem a subir.

JURISPRUDÊNCIA — Uma importante carta na manga dos indianos nessa briga é o fato de que, no Brasil, já houve um episódio semelhante. Foi a aquisição, em novembro de 2005, de 100% das ações do grupo espanhol Sidenor feita pela Gerdau. Na operação, a siderúrgica gaúcha levou, indiretamente, 58,4% do capital da Aços Villares, controlada da Sidenor, o que disparou a OPA para os minoritários com ON. Para calcular a parte do Brasil na Sidenor e chegar ao preço da oferta, a Gerdau usou o Ebitda das duas companhias. Mesmo sem um protesto dos minoritários, a CVM cobrou explicações e aceitou, em boa fé, a afirmação de que o Ebitda havia sido o indicador utilizado na negociação. Ou seja, mesmo não havendo um documento que comprovasse a utilização do Ebitda na avaliação da Sidenor, a declaração foi interpretada como suficiente. Nessa ocasião, o valor oferecido na OPA da Gerdau acabou ficando acima da cotação das ações da Aços Villares na Bovespa. Portanto, era pouco provável que algum minoritário reclamasse correndo o risco de receber menos.

Investidores tentam provar à CVM que o preço pago na aquisição incluía um prêmio pelo intangível, e não apenas a avaliação segundo o Ebitda
Oferta pública estendida aos acionistas da Aços Villares configura caso semelhante e foi aprovada pela CVM na época

No caso da Arcelor, novamente, a CVM vai se posicionar. Passados 30 dias do recebimento da oferta, o órgão requisitou à Arcelor-Mittal, em 25 de novembro, outros documentos que devem ser entregues num prazo de mais 45 dias. A autarquia, então, terá outros 30 dias para examiná-los e, a Mittal, 15 para prestar novos esclarecimentos se necessário. O conteúdo do que foi exigido é mantido em sigilo.

PODER DO XERIFE — Mas teria a CVM competência para determinar quanto deve ser o valor da OPA? Sim, na opinião do especialista Carlos Augusto Junqueira de Siqueira, que atuou na gerência de Operações Especiais da CVM e é autor do livro “Transferência do Controle Acionário — Interpretação e Valor” (FMF Editora, 2004). Para ele, toda vez que ocorrer a alienação indireta e, conseqüentemente, a necessidade de se calcular os valores dos ativos que se referem apenas à subsidiária em questão, haverá essa discussão. “Os controladores da Mittal usaram o Ebtida. Mas será que esse critério é o que melhor representa a participação da Arcelor Brasil no todo? Não necessariamente”, diz. “Ao mesmo tempo, os minoritários também vão apresentar a conta do que for melhor para eles. Então, cabe à CVM, que tem garantido pela lei e pela Instrução 361 esse grau de discricionariedade, entrar no mérito e definir o preço. Às vezes, o regulador pode ajustar o valor da oferta mexendo apenas nos elementos que o compõem”, afirma.

Independentemente da leitura jurídica que a CVM irá fazer, ficou claro que, quando a transferência é indireta, tanto o artigo 254-A, como as palavras “tratamento igualitário”, como o regulamento do Novo Mercado não servem de garantia para o minoritário levar a fatia que considera justa do prêmio de controle. O que se vê é que há grande chance de conflito, uma vez que sempre o novo controlador estará interessado em pagar menos, e o investidor, em receber mais. Está aí um tema que ainda vai trazer muito trabalho (e clientes) para os advogados do direito societário.


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