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Na contramão da governança
Lei das S.As ainda deixa vários espaços para o desalinhamento de interesses entre acionistas controladores e minoritários

 

No dia 15 de dezembro, a Lei 6.404, popularmente conhecida como Lei das S.As, comemora seus 30 anos entre as poucas unanimidades que unem os advogados voltados ao Direito societário brasileiro. Considerada à frente do seu tempo, ela traz dispositivos essenciais ao funcionamento de um mercado de capitais maduro — alguns deles testados apenas recentemente, como o que regula as chamadas ofertas hostis de aquisição de controle. Muitos dos pontos considerados em sua elaboração já vinham alinhados com os princípios ora chamados de governança corporativa, que, nos idos de 1976, ainda nem tinham nome, mas hoje ditam boa parte da percepção de valor atribuída a uma companhia. A aplicação de seus preceitos e regras, porém, por vezes encontra dificuldades criadas, em boa parte, por zonas cinzentas delimitadas em seu próprio texto. Apesar de não colidirem de frente, alguns de seus artigos podem ser considerados incompatíveis com as boas práticas.

Comecemos por um elemento básico de governança: a eleição de conselheiro. Pela lei, para que tenha a chance de eleger diretamente o seu representante no conselho de administração, o minoritário precisa reunir um percentual mínimo do capital da companhia: 10% do capital social para os preferencialistas, e 15% para os ordinaristas. Nos casos de companhias cujo capital seja formado exclusivamente por ações ordinárias, vale, segundo interpretações da CVM, o percentual de 10% dos acionistas que não façam parte do bloco de controle ou que não sejam signatários de um acordo de votos. O direito do acionista não-controlador de ter o seu representante no órgão máximo de decisão da companhia, portanto, está lá, muito claro. Mas lhe carecem dispositivos que permitam exercê-lo plenamente.

Para chegar a estes percentuais, são necessários mecanismos que permitam localizar os investidores. E, para se organizar, eles precisam ter acesso a uma lista com os nomes e contatos de todos os acionistas, que deveria ser fornecida pela própria companhia. Na lei, são dois os artigos — o 100 e o 126 — que podem ser utilizados como base para a solicitação da lista. Contudo, eles são contraditórios.

Pelo artigo 126, a participação mínima exigida para solicitar a lista é de 0,5% do capital total; pelo 100, não é preciso nem mesmo ser acionista. Outra contradição: o texto do 126 dá a entender que a solicitação da lista pressupõe o pedido de representação daqueles acionistas; o do 100 não fala sobre isso. Este, em seu parágrafo 1º, faculta à companhia repassar o custo de confecção da lista a seu solicitante. O 126 não diz nada a respeito. Nenhum dos dois artigos estabelece procedimentos padrão — nem para a solicitação pelo acionista, tampouco para a resposta que a companhia deve dar.

“É praticamente inviável que um acionista consiga arregimentar um grupo, já que as companhias têm liberdade para adotar uma série de manobras que retardem a entrega da lista” afirma Marcelo Barbosa, sócio do escritório Vieira, Rezende, Barbosa e Guerreiro Advogados. Ele defende que o instituto jurídico seja aprimorado para permitir o pleno funcionamento desse direito. “Para que o minoritário tenha certo conforto, é preciso que os prazos sejam claros e que o custo da lista não possa ser cobrado dele.” O tema foi objeto de uma consulta realizada pela gestora de recursos independente Investidor Profissional à Superintendência de Relações com Empresas (SEP) da Comissão de Valores Mobiliários (CVM), no final de 2005. Repassada pela SEP à Superintendência de Desenvolvimento de Mercado, a consulta da IP ainda aguarda resposta.

A questão do acesso à lista de acionistas é importante não apenas por conta da eleição de conselheiros, mas também porque pode garantir uma série de outros direitos como a convocação de assembléia geral, o pedido de exibição dos livros contábeis ou de instalação do conselho fiscal. A lista permite ainda brecar uma proposta de fechamento de capital ou solicitar a reavaliação do preço estabelecido numa oferta de aquisição de ações, por exemplo.

PARADOXO DA INDEPENDÊNCIA — Outro caso em que há conflito entre os conteúdos dos artigos da lei diz respeito à atuação dos conselheiros. São eles o 118, que regula os acordos de acionistas, e os 153 e 154, em que são tratados o dever de diligência dos administradores, a finalidade de suas atribuições e os desvios de poder. O parágrafo 8º do artigo 118 determina ao presidente da assembléia de acionistas não computar o voto de um conselheiro vinculado pelo acordo que contrarie a decisão tomada em reunião prévia de conselheiros. No artigo 154, a lei afirma que o administrador deve exercer suas atribuições no interesse da companhia, satisfeitas as exigências do bem público. O que deve fazer este conselheiro, então, quando o voto previamente estabelecido pelo acordo de acionistas não vai ao encontro — e o conselheiro tem consciência disso — dos interesses da companhia?

Na opinião de Adriana Pallis Romano, sócia do Machado Meyer Sendacz e Opice Advogados, o dispositivo limita o emprego do cuidado e da diligência que o administrador deve observar ao exercer suas funções, exatamente o que estabelece o artigo 153. Este é mais um caso de “complemento” feito pela reforma de 2001 que, no entendimento da advogada, piorou a situação que se tinha até então. Antes da reforma, essa obrigatoriedade até poderia vir expressa no acordo de acionistas, mas não era determinada pela lei. Já quem defende o artigo 118 centra seus argumentos na importância do acordo. “No passado havia uma grande dificuldade de fazer prevalecer as obrigações expressas no acordo de acionistas e esse artigo veio para lhe conferir eficácia”, diz Maria Cristina Cescon Avedissian, sócia do Souza, Cescon Avedissian, Barrieu & Flesch Advogados.

Com a revisão, esperava-se incluir regras que fossem mais favoráveis aos princípios de governança corporativa e que, por muito tempo, ficaram em segundo plano na agenda das companhias abertas brasileiras. “A intenção por trás das iniciativas era estimular investimentos a partir de uma melhoria nas condições de segurança oferecidas aos minoritários, mas, no meio do caminho, algumas tiverem efeito diferente do esperado”, comenta Adriana, do Machado Meyer. Um exemplo, na visão da advogada, são as vantagens patrimoniais oferecidas como contrapartida à inexistência do direito de voto para ações preferenciais, garantidas no artigo 17 da lei.

ESPAÇO PARA CONTRAVENÇÃO — O inciso I, que estabelece os critérios de prioridade para o recebimento de dividendos, fixa o valor mínimo em 3% do patrimônio líquido da ação. Se, após a distribuição desse montante, ainda houver lucro a ser distribuído, a prioridade é do ordinarista, que deve receber pelo menos o mesmo valor que já foi pago ao proprietário das ações preferenciais. “Dessa forma, a vantagem patrimonial só será efetiva se o patrimônio líquido da ação for alto”, afirma Adriana.

Também sobre a vantagem econômica dos preferencialistas no recebimento de dividendos, Marcelo Barbosa, sócio do Vieira Rezende Barbosa e Guerreiro, chama atenção para um outro ponto: a definição da parcela do lucro a ser distribuída, feita pelos artigos 193 e 198. Na opinião do advogado, o objetivo pretendido pelos autores da lei pode ser minado por disposições estatutárias que permitam manobras para diminuir essa parcela.

A lei faculta às companhias constituir as chamadas reservas de lucro, que são uma forma de reter parte dos ganhos obtidos como poupança para a continuidade da empresa e a preservação dos interesses de terceiros como empregados, credores e a comunidade em geral. A parte do lucro a ser distribuída aos acionistas, portanto, é a que sobra depois de constituídas essas reservas. Na visão de Barbosa, os critérios estabelecidos na lei para a sua formação são genéricos demais, o que deixa espaço para companhias com interesses desalinhados entre controladores e minoritários reduzirem a participação desses últimos nos resultados. “A lei abre caminho para a criação de reservas fixadas a partir de cláusulas abertas e imprecisas, que dificultam o acompanhamento e a fiscalização por parte do acionista e não lhe permitem ter claro se o dividendo pago reflete a distribuição mais plena possível dos resultados”, diz o advogado.

Mas é também esse tipo de liberdade conferida pela lei que, para alguns, deve ser vista como o seu grande predicado. “A Lei das S.As é muito bem estruturada e dá bastante flexibilidade para a estruturação dos estatutos, que podem ser adaptados a exigências específicas do mercado e acompanhar a evolução das boas práticas”, avalia Maria Cristina, do Souza Cescon. A boa notícia é que, pelo menos para aquelas companhias que pretendam captar recursos no mercado de capitais atual, não há muita liberdade para dispor no estatuto social cláusulas pouco alinhadas com os princípios de governança.


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